terça-feira, novembro 29, 2005

A Chris (II)

Confesso ter acreditado que a Chris se iria embora assim que chegassem os dias frios. A minha casa, um terceiro andar em Mem Martins, tem as mesmas condições da maioria dos apartamentos do país, isto é, nenhumas, para resistir a baixas ou a altas temperaturas exteriores e fica-se na dúvida se nesses dias não se estará melhor na rua. Claro que não é um problema apenas das habitações. Basta pensar na premiada Gare do Oriente onde, de certeza, ninguém pensou uma vez que fosse que se destinava a pessoas.
Apesar do protocolo de Quioto a Chris está-se nas tintas para as emissões de CO2 e mantém os aquecedores ligados vinte e quatro horas por dia atirando, com a maior das calmas, o meu dinheiro para a rua através da paredes mal isoladas.
Não há dúvida que a Chris veio para ficar. E começo a sentir a pressão de me parecer que estou a mais na minha própria casa. Vou para a varanda, a única do prédio que ainda não tem marquise (o que faz com que os vizinhos já me olhem de lado), fumar o que penso sempre ser o último cigarro e olho, com alguma inveja, para as varandas dos outros prédios fechadas pelo alumínio, da felicidade e harmonia que imagino inundar aquelas casas apenas por não terem que compartilhar o espaço com uma Chris.
O Hilário, que nas raras vezes em que não tem que fazer toma umas cervejas comigo na padaria da D. Albertina, depois do trabalho (do meu trabalho porque ele está no desemprego e passa o tempo todo a fazer uns servicinhos para os três ex-sogros), pergunta-me com o seu ar trocista, quando me queixo, porque é que não ponho a Chris a andar. E eu venho para casa a pensar nisso. Para ele a coisa é muito fácil de resolver. Arranja sempre uns esquemas e não se detém a pensar nas consequências disso para o resto da humanidade.
Não há dúvida que sou um coração mole. Vejo como ela está a condicionar a minha vida e não sou capaz de tomar uma atitude. Ponho-me com pensamentos lamechas: coitada da Chris, que seria dela, sem amigos nem amigas, com aquele feitio difícil, ninguém a quer aturar, nem os pais nem os filhos que negam sempre ter alguma coisa a ver com ela. Não sou capaz de a pôr a andar.
Tirando o consumo de electricidade, os canais do cabo e a alimentação excessiva, a Chris até nem tem feito muita despesa. Para ajudar até já só toma dois banhos por dia. Cheguei a sentir que talvez ela até estivesse a querer colaborar. Acreditei.
Mas agora anda outra vez com os olhos a brilhar. Projectos, diz ela, um bocado megalómanos. Coisas em grande para se manter ocupada e ir disfarçando a insipidez da vida afectiva. Quer mudar todo o chão da casa porque daqui a dez anos já não estará em condições, mudar as cortinas para materiais mais modernos e vistosos, e pôr um computador em cada compartimento para ficar uma casa tecnologicamente avançada e preparada para o futuro. Fiquei chocado. Já a vi várias vezes com aqueles olhos e brilhar de ideias maravilhosas e da merda que deram.
Além disso a Chris sente-se muito bem. Sente que tem o futuro garantido. Os potenciais presidentes, os potenciais governos e o estado de espírito dos concidadãos são uma garantia.


Ivo Cação
©
Dias que voam

sexta-feira, novembro 11, 2005

Literatura Láite: uma lista por desordem cronológica

(proposta restante no dias que voam)

Podia começar pelO Náufrago (TB) e ficar por aí mesmo. Era suficiente para levar para uma ilha deserta e lá ficar até ao fim. E tem música incluída. Mas como não vou para nenhuma ilha deserta, nem vou para lado nenhum, passo a outros (TBs) como O Sobrinho De Wittgenstein, o Betão ou a Perturbação. O autor de E Não Disse Nem Mais Uma Palavra ou Retrato De Grupo Com Senhora (HB) que já não se encontram em lado nenhum - o que não me incomoda porque sou muito egoísta - foi até hoje o único autor cuja morte chorei. Também teria chorado o autor dO Livro De Areia e das Ficções (JLB) se ele não me tivesse preparado com as suas fabulosas entrevistas. Na Corda Bamba (SB) fiquei para sempre com As Palavras (JPS) e O Castelo (FK) e ao Reviver O Passado Em Brideshead (EW). Tenho o Complexo De Portnoy (PR) - salvo seja - e O Meu Michael (AO) vai crescendo enquanto A Sibila (ABL) anda sobre O Fio Da Navalha(SM). Pedro Páramo (JR) tem Cem Anos de Solidão (GGM) para fazer A Obra Ao Negro (MY) nOs Cus de Judas (ALA). Bartleby (HM) é O Estrangeiro (AC) que nO Ano Da Morte De Ricardo Reis (JS) instala O Mal De Montano (EVM) no Império Do Amor (LCG). Era Bom Que Trocássemos Umas Ideias Sobre O Assunto (MC) mas a Aparição (VF) dO Delfim (JCP) e mais Três Homens Num Bote (JKJ) nO Vale Da Paixão (LJ) com O Contrabaixo (PS) resultaria nA Morte De David Debrizzi (PM) em casa dOs Maias (EQ) Se Numa Noite De Inverno Um Viajante (IC), O Vendedor de Passados (JEA), não trouxesse Mexilhão Para A Ceia (BV). Esta Noite Sonhei Com Brueghel (FB), O Jogador (FD) das Crónicas Americanas (SS)...

ABL - Agustina Bessa-Luís; AC - Albert Camus; ALA - António Lobo Antunes; AO - Amos Oz; BV - Birgit Vanderbeke; EVM - Enrique Vila-Matas; EQ - Eça de Queiroz; EW - Evelyn Waugh; FB - Fernanda Botelho; FD - Fiodor Dostoiévsky; FK - Franz Kafka; GGM - Gabriel Garcia Marquez; HB - Heinrich Böll; HM - Herman Melville; IC - Italo Calvino; JCP - José Cardoso Pires; JEA - José Eduardo Agualusa; JKJ - Jerome K. Jerome; JLB - Jorge Luis Borges; JPS - Jean-Paul Sartre; JS - José Saramago; JR - Juan Rulfo; LJ - Lídia Jorge; LCG - Luísa Costa Gomes; MC - Mário de Carvalho; MY - Marguerite Yourcenar; PM - Paul Micou; PR - Philip Roth; PS - Patrick Süskind; SB - Saul Bellow; SM - Somerset Maugham; SS - Sam Shepard; TB - Thomas Bernhard; VF - Vergílio Ferreira.

Zumbido


terça-feira, novembro 08, 2005

A Luciah

Sokolsky (spead)


Há um estranho pacto entre as bruxas e as coincidências.
Vêm ambas de um lado de lá do sonho.
E ambas existem mesmo sem acreditar.

Paris é uma festa.
Paris já está a arder.
Paris nunca se acaba.

Luciah encontrou-me cedo na infância, e olhei para ela como se fosse verdadeira.
Ela tinha todas as formas e mais as formas de mulher.
Parecia sempre ser uma coisa e era outra.
E mesmo essa coisa que ela era, não era ela mas outra coisa.

Luciah construía mundos e com isso construiu os meus mundos.
Dizia que Kafka era igual a Kapa, mesmo que fossem diferentes.
Que Cervantes era igual a Quixote e Sancho ao mesmo tempo.
Falava de deuses e humanos em pé de igualdade e criava falsos deuses assim como falsos humanos que eram igualmente verdadeiros.

Luciah traz-me todos os dias notícias frescas num prato aquecido com o fogo do inferno.
Traz-me anjos, santos e bem-aventurados aventureiros.
Exemplos do que se pode ser e do que se não é.
Sonhos que enchem o mundo como o ar que se respira.

Porque gosto então de Luciah se sei que é mentirosa?
Porque não passo eu sem as suas nocturnas fábulas rotineiras?
Pior que isso: porque vou, como um dependente, à procura das falsidades de Luciah?
Talvez por ser ela que faz de mim humano.

É Luciah que me traz à cabeceira a ligeira hipótese de considerar o viver como coisa aceitável.
É ela que flutua sobre a estrutural fantasia dos textos.
É Luciah o lado de cá de eu não me sentir um mero DNA reprodutível.

Cada vez que encontro Luciah, e em que ela a seu bel-prazer me faz, com as suas artes, oscilar violentamente entre o amor e o ódio, entre a paixão e a viagem, entre o medo e a sofreguidão, entre o poder e o vácuo, entre a música e o ardor do mérito, percebo que Deus, na sua superior sabedoria, criou Luciah para dar sentido a uma obra eternamente adiada.

Luciah, campeã da ironia, há-de morrer sem revelar os seus segredos!


Ivo Cação


sexta-feira, novembro 04, 2005

A Pathricia

Só este ano percebi porque é que odeio as férias. Muito simples: porque há o regresso. Noutras férias nem tenho saído de casa mas este ano aproveitei para me livrar da Chris durante umas semanas. Foi bom de mais não fora este retorno doloroso. No ano de Einstein, é nestas pequenas coisas que se descobre a relatividade. Se eu não gozar férias não tenho a sensação trágica do regresso à realidade.

A Chris continua por cá e parece que se instalou para ficar. A casa estava um caos quando cheguei. Resolveu começar a escrever um guião para um programa de televisão e por isso, diz ela, não tem tido tempo para manter a casa limpa e arrumada. Sonha ser uma mulher famosa e acha que a TV é o veículo apropriado. Eu aceno que sim, que ela faz muito bem em estar entretida, não acreditando que a ideia dela alguma vez seja aprovada. O programa vai chamar-se 'Vomitorium' e é um concurso em que o vencedor é o concorrente que conseguir maior quantidade de vomitado do júri.

Consolam-me as memórias das férias. Passei algum tempo com a Pathricia. Uns dias, poucos. Ela continua a não ser capaz de estar muito tempo no mesmo lugar. E eu a ter cada vez menos vontade de me mover.

Entre qualquer fim e qualquer princípio, entre qualquer prólogo e qualquer epílogo, entre qualquer pensamento e qualquer realização está sempre Pathricia. Conheci-a tarde, demasiado tarde como se costuma dizer. Não por culpa minha ou por culpa dela mas, como se costuma dizer também, por causa das circunstâncias. As circunstâncias. É difícil descrever as circunstâncias em que conheci Pathricia. Por isso o melhor é omiti-las, como ela própria faria por ser mais sensível aos ambientes e à passagem das nuvens do que à aparente fixidez das estrelas.

Se pudesse, assim num pequeno gesto de magia, reeditar as ocasiões em que sem me dar conta disso - sem medir o tempo nem o horário, sem pensar nem quase sentir, sem pesar nem quase respirar - sonhei a perfeição do ser, teria que ser com Pathricia. Foi ela que me revelou o estado inerte de tudo o que não se move; que me levou a perceber o voo como essência do existir e como ocasião da vontade. Com ela tudo está onde já não está; tudo se muda do momento para o momento seguinte, pouco antes de se estar a atingir o lugar do desejo. Em Pathricia todas as fases estão desfasadas, todo o tempo é assíncrono, toda a verdade é opinião, todo o sentido é ilusão.

Um dia, quando por qualquer razão me conseguir libertar destas pequenas, mínimas, miseráveis ligações que agarram os pés à terra que desconhecem; quando vir em cada pequeno pormenor do percurso um gigantesco emissor de júbilo; quando num curto gesto, ao passar a mão em afago sobre a parede fria sentir um tremor especial de milhares de efervescentes motivos de alegria, estarei apto a acompanhar Pathricia em permanência, na sua feliz deambulação eterna à procura de lugar nenhum.


Ivo Cação

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