quinta-feira, abril 27, 2006

O Princípio da Tangência (I)

Vozes que não a minha deram em tempos recuados origem ao Princípio da Tangência. Os primeiros elementos que a história recolhe ligam-no a verticalidade e a sustentação. Só no século III da nossa Era o Princípio da Tangência se passou a definir nos padrões da intransigência, da filantropia e da exactidão. Hu In Tau, célebre pelas suas reflexões cósmicas, laborava sobre todas as funções que poderiam ser retiradas da mente sem que se perdesse o sentido da realidade.
Nem sempre as vozes fundadoras são as mais fecundas. Por vezes enredam-se na própria vaidade e vêem o que não está em lugares onde o que está não é visível. Se hoje vamos tão atrás à procura da essência - como se no passado remoto houvesse mesmo uma fulgurante explosão de ideias, de sonhos e de verdades - é apenas porque precisamos de acreditar num fundamento que se sustente em desconhecimento plausível.
Hu In Tau negava o paraíso. Para ele o progresso era o sentido do tempo e nada havia antes que fosse acima do agora.
Houve vários séculos que passaram até haver tempos e homens que de novo vertessem a sua orgânica atenção sobre a Tangência e os seus princípios. Por vezes é necessária uma catástrofe para que se desvie o olhar do correr complacente do rio. Mas não foi assim com a Tangência. Fa Tchu Min, poderoso Senhor de exércitos e cavalos, decidiu, aos trinta anos de idade, depois de uma tarde a esgrimir a sua preciosa espada, percorrer os mesmos caminhos de que nenhum dos contemporâneos se lembrava.
Não há registo das razões que levaram Fa Tchu Min a abandonar o aconchego de um lar poderoso para se dedicar à via zelosa do espírito e da indolência. Fora Fa Tchu Min um homem de letras e teria escrito pesados volumes de poderosa argumentação. Mas a potência dos dias tinha-lhe legado artes menos sublimes e de difícil entendimento. Logrou por isso - o, quiçá, mais envolvente dos arautos da Tangência - inscrever na sua mente e perante o obtuso desconhecimento de todos os que o rodeavam e seguiam, a mais completa e elaborada corporização do Princípio da Tangência.
Só no século XIX há notícia de outro caso de competência semelhante ter ocorrido, desta vez num indivíduo de origem e nome desconhecidos que, a partir do nada e de nenhuma evidência, construiu - se assim se pode dizer - a derradeira das versões do Princípio da Tangência. Vários estudiosos se têm dedicado nas últimas décadas a tentar identificar esta estranha e oculta personagem, no intuito de melhor a revelar aos olhos do nosso tempo. Mas tudo indica que terão de passar alguns séculos para que ele possa ter um nome.

Artur Torrado

Pérolas (III)

Quando é que não é Dia da Mãe?

domingo, abril 23, 2006

Determinismo

Não é totalmente verdade que eu procure a totalidade. Por vezes procuro apenas uma parte e espero que o todo venha depois, como consequência, como evidência. Quando digo tudo, e tenho consciência que não tenho consciência de estar sempre a dizer tudo, faço-o como um reflexo, não por reflectir mas por agir reflexamente, sem chegar a pensar, sem chegar a saber o que digo. Em tudo o que nos cerca - e este nos é sintomático de eu não querer ficar sozinho - há tudo o que a maior parte das vezes consideramos nada. Se eu procurasse a totalidade - se eu só me contentasse na ausência de exclusões - teria dito que há tudo o que todas as vezes consideramos nada.

É verdade que me incomodam as sobras. É verdade que antes de tudo procuro que tudo tenha uma explicação que não deixe pontas de fora. É verdade também que de tudo o que encontro me preocupam mais as coisas que não estão ainda inscritas na minha totalidade.

Mas não é totalmente verdade que eu procure a totalidade. Até porque não me resigno aos totalitarismos. Até porque fico sempre à espera de mais. Até porque nunca aceitaria a completude nem o fim.

Interessa-me sim o todo. Assim como me interessam as partes. Mas quando vejo uma parte, quando se amontoam à minha frente partes e mais partes, peças e mais peças, elementos e mais elementos, o olhar e o pensamento desesperam de encontrar um significado que os integre, sem sobras, sem excedentes, sem restos.

Mas não é totalmente verdade que eu procure a totalidade. Há a pulsão de montar o lego, e tirar do caos tudo o que ele possa ter escondido. Há a pulsão de criar significado onde ele quer estar oculto ou inexistente. Não interessa, então, como se chega à totalidade, da mesma maneira que não interessa reconhecer a totalidade.

Um total é sempre um sub-total. Depois de concluir continua tudo por acabar. Uma peça mais e o espaço continua vazio. Tudo o que se soma, tudo o que se multiplica, tudo o que se acumula, tudo o que se deseja, é apenas e sempre o início.

Prólogo

sábado, abril 22, 2006

Pérolas (II)

O ponto de vista de Judas. Fica-se com a consciência encurralada...

Postsete

Claro que me assusta o excesso. Dizes isso como se fosse natural que eu atirasse a minha vida pela janela só porque um impulso, um mero impulso, me deitou, por instantes - sabes o que são instantes - as mãos ao pescoço e me quis, não sei se o deva dizer assim, subitamente perdido, subitamente ausente, destino para outro lado, para outra questão, para outra finalidade. Claro que me assusta não saber que passo é o próximo. Não estou a falar em aventuras no espaço virtual, no espaço protegido do não me toques, do agora mato-te eu e depois matas-me tu a mim. Falo da realidade, do pouco de realidade que ainda existe, pelo menos para nós que nos habituámos a ter tudo, mesmo tudo, mesmo que estejamos sempre a gemer por nos faltar alguma coisa. Ignorância, ignorância consentida, ignorância querida. Claro que me assusta exagerar os meus gestos e perder depois disso a respeitabilidade. Que é isso de respeitabilidade? Também não sei. Sei que hoje é uma coisa feia, fora de moda, mas é também isso que me impede de embarcar totalmente em gestos irreversíveis. Está bem, a palavra certa pode ser esta: irreversibilidade. Sei de coisas irreversíveis, sei de ir e não voltar, sei de sonhar e depois cair em buracos que não têm fim e ficar, por isso, aterrado, enterrado no lodo de uma falsa sensação. Há lugares na terra, muitos lugares, talvez a maior parte dos lugares, em que todos os dias as pessoas que lá estão desafiam a irreversibilidade dos momentos e esperam, apenas esperam, que haja um momento de sorte e isso basta-lhes, parece-me a mim que isso lhes basta. Aliás, não têm oportunidade de saber sequer que existem outros mundos em que o desafio do instante é inventar desafios para o instante seguinte; em que está tudo previsto do nascimento até à morte e cada instante vale apenas o tédio de um capricho mal sucedido ou o difuso prazer de acrescentar mais um objecto à lista da fortuna. Ainda assim, ocasiões supremas de sofrimento, as falhas do elevador e do aquecimento central. Não, não sou capaz de arriscar fora dos parâmetros porque o meu risco é sempre um risco mascarado, uma imitação para consumo confortável na comodidade dos aposentos reais. Sei que te ofendo porque sentes que não estou a falar de mim mas de ti. O problema de conversarmos é sempre esse: cada palavra é uma ofensa; cada frase é um insulto; cada gesto é uma imprecação. Sei das tuas aventuras, sei que corres o risco todos os dias de te matares, pelos venenos que ingeres, pela maneira como vais pelas estradas, pelos lugares selvagens que visitas suspenso do confortável cartão de crédito. Sei das maravilhas da natureza que visitas nos lugares onde às vezes se contam sangrentas batalhas, aventuras uma imprevidência convencido da tua impunidade. Mas a mim o excesso assusta-me. É o meu sangue que teima em sentir que é igual ao daqueles que se debatem no lamaçal, no pântano - lembras-te? - que sustenta esta nossa animada fartura. Sabes bem a que me refiro. E eu sei que não adianta. Argumentas que tens apenas uma vida e esperas dela tirar tudo o que puderes, e depressa. E nada serei capaz de dizer que tenha qualquer sentido contra isso. Porque para me defender teria que ir buscar razões completamente fora de moda; razões que já demonstraram estar erradas como errado está tudo o que não se pode medir pela acumulação de mais e mais valor e poder. Como vês não gosto de excessos e por isso sou incapaz de dizer tudo o que pode ser dito, todo o excesso das palavras que possa falar abertamente do excesso que há neste excesso de ter.

Aibieme

Rastilho

Em toda a tua vida cometeste apenas um erro.
Em toda a tua vida houve apenas uma vez em que escolheste o caminho errado.
Um desvio apenas.
Um lapso.

Não sei quando nem o quê.
Não estava lá, no momento, a lucidez nem a vontade.
Ocorreu apenas o passo dado, no lado distinto do que devia ser.
Foi um pouco ao lado nunca saberei de quê.

Fizeste o teu momento, encaminhaste os passos para o plano que sobrava.
Viraste à esquerda quando era para virar à direita.
Subiste num momento em que era imperioso descer.

Nada é claro no desenvolver dos instantes e dos mistérios.
Nunca se propõe que o destino seja uma coisa pré-definida.
Mas está lá sempre o caminho projectado por um desenhador louco no início dos tempos.

O teu erro poderá ter sido um sonho.
Um pensamento que por desatenção vagueou fora do propósito.
Estiveste, por momentos, ausente da consciência histórica e trocou-se o efeito físico pelo metafísico.

Lado a lado seguem o destino e a consciência, alinhados no pudor e na insistência.
Há uma certa clareza no desejo, mas há também as regras e a estabilidade do sol.
Voam sempre os edifícios distantes no real e na sensibilidade.

Caminhaste sempre na tua recusa da imobilidade.
O erro foi apenas um, definitivo por isso, inevitável porque submisso aos tremores da consciência.

Não há ciclos.
Tudo emerge novo de novo.
Pálidas flores que agora brotam são diferentes das pálidas flores dos anos passados.
E a chuva - estas gotas inocentes de vida - é a que agora cai e que agora molha.

Tiveste o teu tempo de fraqueza.
Falhaste a ocasião em que o teu olhar estava ocupado em vão.
É mesmo assim.
É sempre um erro que nos traz a liberdade...


Sísifo

domingo, abril 09, 2006

Escritor gasoso

sexta-feira, abril 07, 2006

Amor?

Nitrato

- Parasitismo? ................................... (jp)
- Sufoco? ........................................ (elipse)
- Frio? ................................................. (MRF)
- Quando o verde acontece. ................... (bastet)
- Oposto de (isto). ........................... (semcantigas)
- Ó mas ele liga-me! ........................... (semcantigas)
- És feio, atreve-te! ..................... (escárnio e maldizer)
- ... qual é que era a pergunta? ............... (fausta paixão)
- Temos parada nupcial!!! ........................ (fausta paixão)
- Enleios na fibra? ....................................................... (jp)

Roleta russa

(para o Escritor Famoso V)

A cena passa-se num dado perfeito. Há um cubículo cúbico em reconstrução. Paredes sem estuque nem escuta, caídas e recuperadas de um ataque.
Uma mesa verde num chão plano. Além do dado, um baralho de cartas escritas a toda a volta com versos e infiéis. Far-se-á uma contabilidade dogmática.
Duas câmaras e várias freguesias, ou uma apenas se for bem gerida, focam alternadamente os rostos sombrios de duas personagens que podem ser dois homens, duas mulheres ou, preferencialmente, por uma questão de cotas, um homem e uma mulher ou uma mulher e um homem, para ser tão correcto quanto possível.
Admitindo que as personagens sejam capazes de dizer alguma coisa, escondem-se microfones e a câmara aproxima-se lenta mas continuamente de um rosto de cada vez. A não ser que aconteça alguma coisa inesperada. Nesse caso, os protagonistas devem ser devolvidos a instâncias superiores.
A foca deve estar imóvel e o móvel deve estar focado. Se isso não for possível, usar uma foca de plástico e deixá-la na sombra. Há uma expectativa mística.
Acima de tudo que ninguém se aperceba que existe um realizador. Para ele a câmara deve olhar de lado sem pestanejar. Só é oculto o que está à vista.
Um pouco mais abaixo ficam as luzes, junto a iluminuras do século treze. Não usar romanos nem romãs. Se não houver iluminuras disponíveis evita-se que as câmaras se desloquem acima do olhar humano. Não esquecer de desenrolar um novelo de lã de uma cor barata.
A mesa verde é pentagonal. As duas personagens esperam mais três. Ninguém sabe se vêm. É provável que isso não interesse. Tudo depende do ónus da prova.
Acima de tudo, no mesmo lugar do realizador, espera-se um acontecimento inesperado. Há cadeiras para todos: umas são genuínas, outras feitas em segunda época. A cadeira do realizador não conta mas terá escrito rodazilaer ao contrário nas costas para ser lido no espelho, como se fosse uma ambulância. Pode ser necessária. Um acontecimento extraordinário aponta para necessidades urgentes de socorro.
No nível imediatamente inferior, um pouco acima das cabeças sentadas, baloiça um pêndulo metálico de grandes proporções. Não sei para quê. Há-de ser uma metáfora difícil. Há-de haver na minha infância um pêndulo capaz de o justificar. Na superfície curva da esfera pendular estará colado um cartaz de uma promoção turística. O cartaz não deve ter mulheres nuas embora por instantes possa parecer que o cartaz tem mulheres nuas. Convém ter a sala aquecida.
Ao nível dos olhos de quem está sentado formam-se sombras oscilantes. As sombras sobrepõem-se por vezes aos rostos sombrios, tornando-os, por instantes, rostos sóbrios. Movem-se devagar imitando a câmara lenta.
À cota do plano do pano da mesa há fumo. Nada de cigarros. Apenas incenso chinês genuíno com cheiro a brócolos cozidos. A dada altura há-de cheirar a carne queimada. Talvez isso faça comover as personagens. Cheirar é como ver. Mas é mais envolvente porque é químico.
Sobre a mesa há duas garrafas de água exactamente iguais. Luso, Vitális, Serra da Estrela, Evian, Perrier, Pedras Salgadas, tanto faz. Tanto faz porque uma delas tem ácido clorídrico. A dúvida maior é se as personagens devem ou não saber qual o conteúdo da garrafa. Se souberem o drama é antes. Se não souberem o drama é depois.
Os cigarros estão no chão sob a forma de beatas pisadas. Mas as câmaras não olham para o chão. As câmaras olham sempre na horizontal: nem sobranceiras nem submissas. Fitam o horizonte à procura do tal inesperado. O perigo raramente vem de cima ou de baixo. É melhor as beatas não entrarem na história. Tudo pela dignidade.

A acção decorre a uma hora morta. A decisão é deixada ao acaso. Cada um age segundo a sua vontade. A protagonista poderá ser uma garrafa de água. Mas também pode ser o pêndulo. Ou o dado. Um dado novo é sempre perfeito. É muito improvável que depois do riso não ocorra um drama.

Diálogo exemplar:

PA é a personagem A; PE é a personagem E.

PX - O meu médico recomendou-me riso.
PX - O meu patrão recomendou-me produtividade.

Frases de reserva

PX - O meu pai recomendou-me juízo.
PX - O meu advogado recomendou-me prudência.
PX - O meu massagista recomendou-me actividade.
PX - O meu padrinho recomendou-me investimento.
PX - O meu tutor recomendou-me sexo.
PX - Na televisão recomendaram calma.
PX - Os meus professores recomendam-me estudo.
PX - O meu gestor de conta recomendou-me boas acções.
PX - O meu maior amigo recomendou-me viajar.
PX - O meu arrumador recomendou-me cocaína.
PX - O meu padre recomendou-me comunhão.
PX - O meu porteiro recomendou-me um alarme.
PX - O meu jardineiro recomendou-me água.


Artur Torrado

quinta-feira, abril 06, 2006

Pérolas (I)

Quem gostar de contos de fadas vá aqui. Quem não gostar também...

segunda-feira, abril 03, 2006

Divagação

Sobre o topo da colina há hoje um nevoeiro denso.
Nada se vê para além do alcance dos passos e o retorno da minha voz chega abafado pela cegueira da humidade.
Temo por isso que o meu trabalho hoje me não deixe chegar à satisfação.

São muitos os truques que o tempo inventa para tirar dos meus gestos o sorriso.
Ardiloso é o tempo.
Dá-se, para que nos lembremos das coisas antigas, mas espera que a ignorância chegue sempre primeiro.
Compra cada elemento da nossa memória a um preço de saldo e devolve apenas o que lhe convém para os seus inconfessáveis desejos.

Paciente é o tempo.
Está antes de nós e fica depois de nós e esquece-se de nós e continua sempre.
Não se pode confiar nele.
Em nenhum tempo.
Seja ele qual for há-de tentar que sejamos, mais tarde ou mais cedo pura ilusão.

Hoje fez-se um nevoeiro denso como que a tentar que eu desistisse.
É penosa a subida e o esforço duplica para vencer a dureza do caminho.
Partilho as gotas de água do meu rosto com as gotas do tempo, vítima e algoz lado a lado como velhos e inseparáveis amigos.
Mesmo no topo desta montanha, quase no topo, portanto, pomos o barco a velejar; por tão pouco.

Gosto de percursos teoricamente perfeitos.
É aí, nessa linearidade que o pensamento encontra atravessando os caminhos mais complexos, que sinto o valer a pena do existir.
Pega-se em símbolos, em artefactos rigorosamente inúteis, que não se comem, nem se bebem, nem nos dão continuidade, e constrói-se uma forma, ainda ausência, mas metamorfose sentida do nada.
Aos artifícios do tempo respondo com um sabor de sonho.

Haverá sempre muitos caminhos possíveis.
Todos bons e todos maus.
Todos inúteis e todos perfeitos.
Todos rigorosamente certos e todos caoticamente errados.
No fim, seja qual for, estará sempre uma frase a dar-me alento, um pássaro a sobrevoar impossíveis, uma nota de música a acomodar contrastes, um fio de aranha a sustentar-me, uma estranha ordem a desafiar-me, um incompreensível infinito...
Sei que nada disto vale a pena, mas sei que é isto que vale a pena.

No meio do nevoeiro, que eu olho em vez de ver, está o objectivo.
Não o vejo e por isso não sei se está lá, mas avanço, avanço sempre, fazendo do avanço o meu desejo.
Sigo cauteloso, temente à surpresa de um instante que quebre a magia de querer.
À frente, lá à frente, está o tal lugar que presumo meu destino.
Mas o meu destino só o saberei depois.
E...

Sísifo