quarta-feira, maio 31, 2006

Ofensas (1)

Em mil novecentos e oitenta e dois disse-lhe, já não me lembro por que razão, que lhe queria emprestar o "Escuta, Zé Ninguém!" de Wilhelm Reich. Ela recusou dizendo que não se sentia o público alvo do livro.
Ikivuku

sexta-feira, maio 26, 2006

Brancura

Constrói-se uma dor na ausência. O espaço do vazio é lugar onde há uma coisa que não está. Há, então, para o vácuo, uma história. Um antes e um depois. E uma memória.

Vejo, quando vejo, o que está e o que não está. Leio, sobre a superfície opaca, letras de dimensão nula que a cor das superfícies identifica com a diferença.

Não quero enganar ninguém: o meu tema hoje é o nada. Não quero que se pense que há aqui alguma coisa escondida que se não percebe. De facto não quero que se pense.

Por vezes, em textos menos claros, aparecem palavras que parecem ter coisas para dizer e que criam a ilusão de haver alguma coisa por detrás. Dessas vezes o meu propósito, algo infantil, é enganar, fazer ver coisas que não existem nem sequer na minha imaginação. Aparece, nesses casos, um vulto ténue, que se insinua nos pensamentos e faz crer - pura crença, portanto - que é alguma coisa, que respira, que age, que mente e saltita na forma pouco perspicaz da velocidade.

Hoje é diferente. Falo da própria entidade que não existe e que, por isso, está mesmo por detrás da palavra que se omite. Não querendo dizer nada que não seja, digo, desde já, que o que digo não é.

Percebe-se que o meu obscuro mito é a honestidade. Percebo eu, pelo menos, quando, como agora, quero justificar-me de não saber. Não há justiça nenhuma no acaso. O que é o mesmo que dizer que a única entidade justa é a contingência.

Se eu tivesse um pouco mais de génio - e deixo em aberto a sua conexão com a inexistência - ousaria subtrair das palavras, aquelas que de uma maneira ou de outra já estão mortas.

Eu revelo: a minha frase fundadora é: no princípio era o verbo. De cada vez que digo, ou que o verbo se diz em mim, estou a substituir nada por vazio absoluto. Vazio dissoluto.

Gosto do verbo. Gosto de absurdas categorias gramaticais, códigos usados para esconder o que se quer mostrar. Gosto que sobre os lábios ocorram súbitas oclusões que fazem dar ao gesto sinais já antes perdidos.

Não há solução para o problema da ausência. Pede-se a um objecto que permaneça no seu lugar dando-se-lhe com hipótese de vida uma prisão. Espera-se portanto, deseja-se, que o que está continue e não se ausente de ser verdade.

Há objectos rebeldes. Decidem por si o lugar onde não estar. Criam lacunas no empilhamento regular dos horizontes. Fluem sempre a uma certa distância do olhar.

Hoje era dia de não afirmar. Também não era dia de negar. O meio termo ficou perdido no lugar estranho e o avanço foi confirmado por uma carta anónima.

Mais tarde ou mais cedo tudo se sabe. Essa é a esperança repartida em múltiplos de sete pelo olhar opaco da insistência. Não interessa nada que nada tenha interesse. No fim, seja isso o que for, não há-de restar nada também.

Consegue sempre provar-se o impossível. Existe, dizem que existe, um processo fiável de olhar para o passado e reconhecê-lo. E aquilo que não é, tanto pode estar no passado como no futuro. Digo eu que hoje tinha a intenção de me deitar cedo sobre uma metamorfose de que há muito deixei de gostar.

Há quem diga que nada se propaga à velocidade da luz. Poderia ser um mero jogo de palavras. Mas não é um mero jogo de palavras: é um jogo de palavras.


Prólogo

quarta-feira, maio 24, 2006

Pérolas (V)

Não sei se é perceptível. Mas esta pérola fez-me lembrar este texto:

"...

Saio depois da cozinha e vou até ao quintal dar de comer à Pequena. Chegou trazida pelo Fernando, que a encontrou num jantar de Natal na vila há alguns anos, a vaguear por entre as mesas do restaurante, ainda pequena. E Pequena ficou em mim, mesmo que tenha acabado por crescer. Vejo nela o coração aberto que o meu filho Fernando sempre teve, trazendo-a para casa e dando-lhe um tecto onde se proteger e onde, ainda hoje, enrolada na mesma manta de há anos, dorme

- Dorme, Pequena.

digo-lhe eu todas as noites quando fecho a porta do barraco e a protejo do breu que a noite traz.

..."
(pág. 96 de "Todos os Dias" de Jorge Reis-Sá)

sexta-feira, maio 19, 2006

Saliva

O meu único ódio é o vento.
Talvez seja exagero chamar-lhe ódio.
É uma impossibilidade de entendimento.
Não o escuto, não lhe dou ouvidos, não o atendo.
Não o quero nem compreendo porque me persegue.

No esforço rotineiro de subir a encosta, no complicado sistema de satisfação que construí, rola uma inconsequência em que acabo sempre por descortinar o vento.
Sopra sobre as árvores à procura de distâncias que não compreende e arruma os meus sentidos em lugares de exaustão e de impaciência.

Um dia, há muitos anos, provavelmente há muitos séculos, perdi o sentido do gosto.
Num rasgo de impossibilidade, morreu-me o prazer de saborear.
Não foi num momento mas em vários.
O sabor das coisas passou a ser uma paisagem visível a cada vez maior distância.

Poderia ter ficado cego ou surdo.
Mas as bárbaras ocorrências da sorte viraram-me contra o vento e contra mim.
De cada lado de uma fortuita sombra surgiram então memórias de sabores que já não sabia.

Não é justo que culpe o vento, eu sei.
E sei também que nunca serei justo para além de uma pequena proximidade do ódio.

Soube em tempos que o ódio nascia do medo.
Depois esqueci e preferi que o medo nascia do ódio.
Depois, muito depois, procurei razões e justiça e braços abertos que se fechavam sem razão nem justiça.

Só odeio o vento.
Embora seja menos do que ódio isto que sinto pelo vento.

Inevitavelmente procuro uma gradação nas palavras.
Comparo-as, reduzo-as a significados menores ou a espaços vazios que possam entusiasmar-me.
Odeio o vento mas amo a palavra vento que soa bem aos meus ouvidos e parece querer cantar.
Respiro a palavra vento.

Seria bom que as palavras existissem sem aquilo que dizem.

Sísifo

quinta-feira, maio 11, 2006

Vagas

Poderia pensar que o sol me incomodava. Torcidos que estavam os dias e os sentimentos parecia que a escuridão haveria de proteger os sentidos.
Mas não aconteceu assim.
Não voltaram os fantasmas e o sono foi calmo, a própria consciência adormecida, encolhida na suavidade fácil da almofada. Não tenho ainda notícias claras de que o medo fez a viagem de regresso. Sinto-me acompanhada nas minhas teorias da pobreza. Não percebo porque isso me anima tão pouco. Deveria ser agradável sentir a proximidade.
Mas procuramos desesperadamente a popularidade, a aprovação da maioria, mesmo sabendo que a maioria aprova por não pensar, apenas pela vaga sensação de que deve seguir nesse sentido. Custa que a sintonia se faça com tão poucos.
É dramática a ilusão que vou encontrando nas maiores certezas. Tudo o que vai fluindo é apenas o rasgo aproximadamente inútil de um gesto que se perdeu em flagrante delito de impaciência. Não me restam muitos caminhos no meu desengraçado processo de ilusão. Passo os dias e as noites embriagada de potenciais. Tudo assente na vaga solução de nada poder acontecer ainda que venha a ser uma agradável surpresa.
Nem me engano nem desengano. Supero cada instante como se fosse heroína, sabendo de antemão que é apenas a letra garrafal que ofusca o fracasso, pensando ao mesmo tempo que esse fracasso é de facto um sucesso inacessível às maiorias e aos acasos do momento.
Não adianta muito - não adianta nada - toda esta lamentação - admitindo que isto é uma lamentação.
O pormenor é sempre um desgosto. A alegria é a coisa global e abstracta, a coisa pública, a fachada do edifício que morre lentamente. A alegria é a potência do tempo, sinal apenas de ocasiões inexistentes, forma a conformar aspectos de inegável vazio.
Não tenhamos ilusões, a perda, o lado da desgraça, é a essência, o detalhe que encobre cada superfície pintada de fresco, macrocosmos do nada, envolto em ilusões vagamente alicerçadas em desconfiança e pudor.
Nada se é fora do incómodo de ser. Difusas luzes podem, por momentos, questionar o nada e a decadência. Outra vez o potencial de não ser. Divagações entrecortadas de legitimidade e afirmação. Nadas que se sobrepõem à sensação e à certeza.
Não adianta querer reforçar o medo, tudo é informe e destroçado na origem da própria confirmação.
Já não me peço significados nem decisões. Limito-me a despachar cada dia como se fosse um dejecto e pego no segundo seguinte com luvas esterilizadas.
Não há forma de o desejo permanecer coisa desejável. Vira-se o olhar para o lado e lá está, de novo e ainda, o peso de uma consciência perdida.
Ignoro. Agora ignoro tudo. Agora quero que me não digam nada do que se está a passar. Quero a ignorância, a ideia vaga de que poderia ser de outra maneira. Prefiro ficar só com a minha difusa imaginação. Fecho os sentidos. Encerro a actividade para um inventário infinito.

Beatriz Teresa

segunda-feira, maio 08, 2006

Dinâmica

Primeiro aprendemos que as histórias começam pelo princípio.
Fica, desde então, o vício paciente de esperar.
Sabe-se, por que sei, que mais tarde ou mais cedo haverá um momento em que tudo começa.
Alinham-se por isso as frases de uma maneira que possa parecer diferente.

Antes de tudo, interessa saber como foi que as coisas começaram.

Dizem que foi no mar.
Há muito tempo, depois de tempestades incompreensíveis.
Dizem que foi por acaso.
Num momento em que nada diria que havia coisas para acontecer.
Dizem que foi num instante.
Ninguém estava lá para apreciar a dor dos protagonistas.
Dizem ainda que não houve milagres.
Dizem também que só há milagres onde alguém os espera.

É fácil passar do particular ao geral.
Difícil é permanecer no particular e sentir contentamento com a prosaica realidade.
Fácil é correr velozmente pela simplicidade concertada da abstracção.

Agora que estamos aqui a olhar para a complexidade inútil das ondas e a medir o sentimento, que admitimos ter começado algures, num momento em que não estávamos atentos ao contador de histórias, façamos um amigável brinde a todos os princípios que ainda não sabemos mas sabemos que nos esperam, ainda que seja numa qualquer espécie de fim.

São válidos todos os caminhos para regressar.
Os sonhos já foram todos apagados pela incerteza.
Há vestígios comuns nos lugares onde já não conhecemos.

Voltámos, como sempre, sem saber aonde.
Nada interessa do que a memória conserva a não ser os desejos.
Dizem que os desejos começam todos no princípio...


Prólogo

domingo, maio 07, 2006

quinta-feira, maio 04, 2006

Postoito

Não, não é culpa. Volto atrás apenas com a ideia de aprender. Procuro entre os erros que cometi, aquele ou aqueles que foram mais importantes. Sinto que tenho o direito de saber. Procuro entre os erros aquele ou aqueles que melhor possam assumir significados e ser razões. Mas não é culpa. Como sabes, decidi abolir a culpa. Sentia-me demasiado só, demasiado carregado, ao assumir as culpas de tudo e de todos como se apenas eu tivesse errado. Era demais para um corpo só, para um corpo frágil, sem estrutura para ficar soterrado nas toneladas de resíduos que todos deitavam fora com a maior da volubilidades. Era demais. Não era eu que tinha de ter a culpa toda de tudo. Fiz, por isso, o mesmo que os outros: renunciei à culpa. Primeiro à culpa, depois à responsabilidade. Por uma questão de justiça. Por uma questão de sobrevivência.
Sim, eu sei que tu estás convencida que a culpa foi toda minha. Mas até aí ainda não cheguei. Ainda não sou capaz desse grau de pureza de te considerar a culpada de tudo. Isso ainda não consigo. Mas continuo a tentar. Sei que perco bastante tranquilidade em não conseguir essa ausência. Sei que estaria num outro degrau da realidade se conseguisse olhar para ti como causa única de tudo o que é mau e, assim, descansar de vez a minha consciência. Mas, por enquanto, tenho de conceder essa limitação da minha personalidade. Talvez venha daí o meu esforço em querer perceber o que se passou. Busco nos erros, epifanias. Busco nas falhas, sensibilidade. Busco nos desvios, reorientações. Busco nos desastres, o acaso. Busco nas fugas, a tua mão.
Disseram-me que era uma questão de tempo. Como o peixe que continua a crescer na imaginação do pescador que o apanhou, assim é o meu entendimento da história. Virá um dia em que não seremos mais do que estranhos. Estranhos mais estranhos que os que nunca se conheceram. É isso que esperamos do tempo, mais do que a cura das feridas ou a redução do medo. O que faço agora no passado, é espreitar cuidadosamente as gavetas nunca abertas e tentar apanhar os sonhos que voaram. O mais estranho é nunca te encontrar nesses lugares...

Aibieme