segunda-feira, julho 31, 2006

Violentamente

Não, de facto não consigo fazer-me ao gesto que devia ser. De facto não altero um milímetro do meu jeito para empurrar o destino para longe. Não, de facto não sei voltar a ser o que não sei se alguma vez fui, por não saber ou por não querer ou por não saber como querer. De facto não me ocorre nenhum facto que tenha qualquer importância capaz de mover a importância dos factos e imprimir no papel branco do futuro um selo branco de autenticidade.

Os factos são coisas assim obscuras que aparecem a ilustrar as teorias para aqueles que têm sentido prático perceberem alguma coisa por exemplo. Os factos vêm sempre depois de já não serem esperados e resolvem todos os problemas de interpretação de uma assentada: levam os que não percebem a perceberem que percebem mesmo que não percebam e os que percebem a perceber que afinal não percebem porque é que perceberam.

Perceber é, em si, um acto místico, como um sonho, como uma desavença conjugal, como o içar de uma bandeira, como o plantar de uma roseira brava. Fica-se com o significado entranhado na carne à espera de um golo de um destilado forte acima de quarenta graus. Depois de perceber falta aceitar.

Um dia, com tempo, com paciência, com determinação, com desejo, com infelicidade, com tédio, olharei para a palavra aceitar com a atenção que ela merece. Porque assim à primeira vista parece-me uma palavra cheia de potencialidades. Talvez ela me esclareça sobre este drama interminável dos factos; sobre este proverbial imposto de dizer não antes de saber; sobre a origem e destino de perceber o que é perceber; e sobre o tempo, a paciência, a determinação, o desejo, a infelicidade e o tédio que é necessário para olhar com olhos de ver para aceitar.

Há entre as palavras um concubinato que as faz, ao encontrarem-se, gerar mais palavras. Dizem, os que esperam desesperadamente os factos para perceberem, que isso torna o mundo imperfeito, complicado e irrisório. Que seria melhor as palavras ficarem por aqui, definidas como diz o livro e sem mais para dizer, nem escrever, nem contar. Percebem, portanto, nos factos a obrigação que estes têm de cumprir o que está escrito e não subir nem descer do patamar lógico de o centro do mundo estar devidamente identificado.

Mas - o tal mas - perceber a partir dos factos é um banal jogo de lego, despir e vestir a Barbie, empurrar a bola com o pé que está mais à mão, e o homem, a ser em algum ponto diferente da matriz essencial que o gerou, gostará de subir um pouco mais sobre a planura inconsciente da matéria e considerar que sobre os factos, sobre as potências que envolvem os factos, acima da luminosidade que demonstra a potência, flutuando sobre o fogo que gera a luz, estarão pormenores de ser que não vieram de lugar nenhum, que não são sobras de nenhum passado e estão aqui por razão nenhuma.

É assim que percebo as coisas, com ilustrações, com desenhos ininteligíveis, com moldes em plasticina. Foi um erro da natureza ter distribuído a torto e a direito noções elementares de consciência. Todos os factos pesam, todos implicam todos e a seguir a cada hesitação aparece um caminho cortado pelo abismo. O meu esforço é apenas tentativa de não ser confundido com um folha arrastada em doce violência pelo vento.


Artur Torrado

A dificuldade de ler (31)

O agente da mudança é uma unidade de elite. É escolhido segundo critérios de exigência inacessíveis ao comum dos mortais. Natasha Kent é uma agente da mudança com a experiência de quase quinze anos de actividade ininterrupta. Na época em que foi recrutada, por ter concorrido aconselhada e recomendada por um histórico agente da mudança, os níveis de exigência eram ainda maiores e a média mínima de admissão rondava o 9,835* numa escala de zero a dez. Hoje Natasha Kent é uma profissional reconhecida embora só e apenas dentro do seu meio muito restrito dado o carácter secreto das suas funções.

A nossa sorte, do ponto de vista narrativo, evidentemente, é Natasha Kent preferir gozar as suas férias no inverno, ao invés da maioria dos seus concidadãos que escolhem o verão e a época mais bonita de Londres para sair da cidade, deixando-a entregue aos visitantes japoneses e portugueses. Podia dar-se o caso de Natasha, Peter e Elsa serem os únicos habitantes habituais a permanecer na cidade se isso não constituísse um situação insustentável do ponto de vista da verosimilhança. E apesar de sabermos que a realidade não é, por vezes, verosímel, quando a transpomos para a narrativa temos que acrescentar-lhe o mínimo de estranheza para que o leitor não tenha que esforçar demasiado o seu orgão de crença. Assim sendo, as probabilidades de intersecção permanecem baixas mas dentro do possível.

Era uma tarde de verão. Nem muito quente, nem muito fria, nem muito húmida, nem muito seca, nem limpa, nem muito nublada. Franz tentava demover a sua equipa de vendas de usar palavras menos próprias para com a concorrência: "Eu sou o chefe e por isso o único com capacidade técnica e moral para insultar os meus estimados adversários". A equipa de vendas não concordava. "O insulto," - dizia Anthony - "é uma arma popular, deve ser deixada nas mão de quem a sabe usar e o chefe há-de reconhecer que não tem a prática necessária, nem uma iniciação credível nesse campo. Não está em causa a capacidade técnica, mas o seu MBA não o preparou para adjectivar com precisão quando se trata de denegrir. Apenas o ensinaram a dar uma boa imagem das suas coisas. E o que é preciso agora é destruir a imagem dos outros." (continua)

* 9.835 no original

Torcato Matos

sexta-feira, julho 28, 2006

A dificuldade de ler (30)

Capítulo II (versão zero ponto sete)

Há uma mulher que se cruza com Peter quando este está sentado sobre uma pulseira de diamantes à espera que a noite caia. É uma mulher jovem - naquele sentido em que uma mulher é jovem desde que mantenha à sua volta um aroma peculiar - loura natural com o cabelo rudemente pintado de negro baço, um olhar confiante e decidido, roupa cuidadosamente desleixada, moderna, de andar largo marcando o ritmo do salto, agitando as formas soltas e propondo ao olhar de quem passa desejo, cumplicidade ou inveja. Vive na parte norte de Londres, num apartamento de duas assoalhadas, uma delas com vista para um jardim público de dimensões assinaláveis, a maior parte das vezes ocultas ao olhar por um nevoeiro militante, e mais não deve ser dito porque se trata de uma personagem com uma missão secreta, quer neste caso quer em muitas outras histórias em que tem participado, bastas vezes sem o devido reconhecimento.
É sempre complicado para quem narra, encontrar a equidistância necessária entre o facto, a narrativa e a verdade. Não seria justo que esta mulher - Natasha Kent de nome - tivesse a sua intimidade devassada pela rotina de uma história, podendo pôr em risco a sua segurança, o seu amor-próprio e, não menos importante, a sua qualidade de vida, apenas pela futilidade de dar a conhecer ao leitor pormenores episódicos de uma vida absolutamente igual às outras se retirarmos as questões mais ligadas à acção e ao modo de ganhar o pão de cada dia. Dá-se então a conhecer o que é relevante e omite-se o que é banal. Delimita-se a zona da verdade de maneira a respeitá-la como um absoluto e uma meta. Salvaguarda-se o particular para garantir o universal.
A mudança caracteriza-se, em Natasha Kent, pela procura sistemática, portanto disciplinada, do intervalo mínimo de tempo necessário para que um determinado objecto, em dada altura muito familiar, se torne um objecto suficientemente estranho para poder ser querido de novo. Natasha Kent é, portanto, uma agente da mudança. Tem cartão de identificação válido até 28 de Outubro de 2017, embora tenha que adquirir semestralmente uma vinheta de garantia anti-furto. O cartão dá também direito a descontos nos armazéns Aroldos às terças e sextas e refere ser Natasha Kent do sexo feminino, olhos verdes, cabelo louro, 69 polegadas, 154 libras, nascida na Rodésia a 28 de Outubro de 1967. É uma agente secreta na medida em que ninguém sabe que ela é agente secreta. Sabemos que é uma agente da mudança mas apenas podemos suspeitar que é uma agente secreta da mudança. O seu trabalho é claro. Move-se rapidamente pela cidade de Londres - por vezes noutras cidades - em busca de objectos que se enquadrem no perfil predeterminado pelos seus superiores hierárquicos.
(continua)

Torcato Matos

quinta-feira, julho 27, 2006

A dificuldade de ler (29)

Sabe-me bem estar aqui a falar consigo Doutor. Embora eu saiba que já não me ouve. Sinto a sua respiração pesada de quem dorme com a consciência leve. Ainda é melhor assim: falo consigo, desabafo, e continua a não saber nada de mim, a ser um estranho, como convém. Desta forma não tem que fingir que não sabe. É a melhor estratégia: não saber, ignorar, estar a leste, ficar de fora, não ver, não ouvir, não ter que testemunhar nem fazer perante os outros uma figura qualquer de aparência. Depois de experimentarmos, depois de sabermos, depois de tomarmos posse de um elemento qualquer de informação, já não somos os mesmos. Ficamos sem condições de ser. Mais tarde ou mais cedo revela-se a nossa experiência, essa primeira vez que sendo a primeira pode ser a única mas se chama já e para sempre experiência. É ainda o corpo que nos trai. O corpo é terrivelmente honesto, dorme quando tem sono, grita de dor, quebra com a fome e seca com a sede, desarticula-se sem sensualidade, cai morto quando morre e esquece. Não há nada a fazer para o fazer passar por ignorante quando sabe. A mim parece-me, Doutor, que aquilo que sabemos, tudo o que sabemos, fica mergulhado nas células, passa a ser carne, e por isso não somos capazes de mentir com o corpo. Os meus dentes que agora tenho que proteger para me acompanharem enquanto aqui estou e vou comendo para me manter viva, serão a última coisa a desaparecer depois de morta. Se não me queimarem para que a minha matéria entre logo a seguir no jogo encantado da reciclagem biológica. Acredito na reencarnação, claro que acredito na reencarnação. A matéria de que sou feita já foi outros corpos - muitos, espero eu - desde que há vida. Há um pedaço de couve que comi hoje que ontem era couve e amanhã sou eu. É engraçado ver a vida assim: somos reciclagem pura. Nada do que nos faz veio de propósito para nós. No meu cabelo pode haver metais que já fizeram o cabelo de Parménides, de Átila, de Dante. Bah, eu só sou enquanto sou, enquanto estou aqui a falar consigo, mesmo que o Doutor seja o que é enquanto é e não me esteja a ouvir. Não há outro caminho e este tem pano para mangas. Fez-me bem falar consigo, Doutor, não é o mesmo que falar com uma parede; há um lado humano em si, mesmo que não me ouça, ou mesmo que já nem esteja nesta sala. Não tenho a certeza de o ouvir respirar. Pode muito bem ter-se ido embora, farto da minha conversa e dos meus problemas. Mas estou aqui bem e nem me apetece voltar a cabeça para tirar esta dúvida. Jogo nas probabilidades, no efeito devastador das palavras e na vontade de rir que agora chegou para me tirar este peso. O Peter não é meu filho, não o produzi, não o determinei. Não tenho como explicar esta preocupação. E não explico, não sei, não digo, não penso. Este lugar é bom, sinto-me bem aqui.
(continua)

Torcato Matos

quarta-feira, julho 26, 2006

A dificuldade de ler (28)

Capítulo I (retoma 2)

Não sei dizer de que ajuda preciso. Sei apenas, Doutor, que me sinto incapaz de recomeços e me assusta a ideia de perder outra vez o rumo, de voltar a sentir além da lágrima dolorosa da perda, o vazio intransponível de outro início, de voltar a soletrar outros nomes até que um me pareça aquele que acompanha a vibração do meu. Assusta-me, Doutor, ter de perder outra vez muitas vezes até haver uma vez milagrosa em que voltarei a ganhar. Houve um tempo, Doutor, em que acreditei que éramos mais do que o corpo que nos vestia, que havia fluidos extraordinários que ensopavam de alma a nossa carne; acreditei que tinha que haver mais qualquer coisa do que o acaso que particularmente nos tocava e acreditei também que de ser para ser se poderiam estabelecer pontes que transcendessem as propriedades físicas da matéria. Agora sei - dirá que acredito, o que é o mesmo - de sermos apenas estas células em efémera cooperação, que fazem uma unidade estranha e às vezes quase equilibrada. Sei que é este corpo que tenho que me determina e traz com ele memórias que me fazem eu, e me dizem o que sou, história de mim própria, caminho construído na sucessão de contingências determinadas, acasos obrigatórios e erros criativos. Sei, sabendo que o que sei é acessório, que o meu corpo só amará outro corpo pelo corpo que o outro é e que todos os sinais de afecto nascem apenas dessa ramificação que se cria entre os toques em que a matéria se troca, o bafo, a saliva, a palavra, o sémen, o suor, o cheiro, o som, o grito, a luz, a forma, o peso, a electricidade, o magnetismo, as unhas, o cabelo, as lágrimas... O sólido, o líquido e o gasoso em vez da água, do ar, da terra e do fogo. Sei, Doutor, só agora, que é sobre isto que as palavras se constroem, e é sobre as palavras que se constroem os mitos, e é sobre os mitos que se constroem as ilusões, e é sobre as ilusões que se constrói o medo, e é sobre o medo que se constrói o poder, e é sobre o poder que se destrói o corpo, e se culpa o corpo, e se elimina o corpo, e se dá origem por decreto ao fluido inefável da alma. O que me vai doer, se o Peter se perder de mim, é o corpo, Doutor. Só o corpo. Ainda que eu precise de usar as palavras para falar dessa dor e as palavras digam coisas que parecem só ter sentido se o corpo não estiver presente. Será sempre um corpo que perde outro e fica, por isso, só, equidistante de todos os outros, sem aquele que lhe serve de ponte para a existência. No corpo que já não está serei viúva, ausência do próprio corpo que não é enquanto não tem alternativa que o faça ser mais do que um espectro.
(continua)

Torcato Matos

terça-feira, julho 25, 2006

A dificuldade de ler (27)

E o pior, Doutor, é não acreditar no regresso. O tempo só decorre num sentido, nunca tem retorno. Experimentei já voltar para trás à procura de objectos que tinha amado e percebi, à minha custa, a irreversibilidade do tempo. Sei que a seguir vem sempre um sofrimento maior e, mesmo sabendo, vou de encontro a ele como se arriscasse apenas um pequeno jogo de hipóteses em vez de laborar o vertiginoso horizonte das certezas e desfazer o que resta de pudor e dignidade. A história não se repete mas o sentimento e a dor são sempre os mesmos; e mesmo que gritemos que não conseguimos transmitir o que sentimos - porque cada um sente à sua maneira e de acordo com a sua história - acontece que todos sabemos do que cada um fala quando diz da angústia que lhe vai apertando irracionalmente o coração, e partilhamos como que uma prática universal que parece permitir o 'com-sentir' das emoções, nos casos em que as paixões domesticadas não se interpõem a filtrar os impulsos que impedem o cínico caminho do horror.

Interrupção II

Haverá petróleo em Marte? Os cientistas têm aumentado a pesquisa no sentido de descobrir o planeta mais adequado para - num futuro eventualmente distante - transferir a população da Terra para o corpo celeste que apresente melhores condições de sustentabilidade e permita manter um elevado nível de vida. Os cientistas conseguiram ainda mais dinheiro para fazer mais investigação e fazer mais teorias e construir mais máquinas de perceber. Há anos, as primeiras referências indicavam a necessidade de procurar num outro sistema solar, dado parecer evidente que neste os planetas eram demasiados inóspitos e só com muito esforço, muita adaptação, seriam viáveis. Por isso se procurava noutros sistemas da nossa galáxia um habitat de catálogo, chave na mão, pronto a usar. Hoje pensa-se de outra maneira. Os constrangimentos de ordem material, espiritual e humana empurram para uma solução mais adaptativa. Vai ser necessário muito esforço, muita disciplina, muito sacrifício para criar lugares habitáveis. O professor Gao Xingjian, especialista em sociologia pós-geo, sintetizou os conceitos que estão subjacentes a esta reviravolta epistemológica: "Antes acreditava-se que no futuro - hoje, portanto - seriam possíveis sociedades igualitárias, o que - hoje sabemos - não veio a suceder. Tal facto fez emergir uma reflexão mais integradora das diversas funções sociais. Que fazer com tantos miseráveis? Que fazer com tanta mão-de-obra humilde e barata? A minha ideia, que, como sabem, me valeu o prémio Nobel, foi entreter esta enorme energia braçal na construção de mundos. Salvam-se os ricos e ocupam-se os pobres. Um equilíbrio de uma beleza oriental."
(continua)

Torcato Matos

segunda-feira, julho 24, 2006

A Hilda

Temo dizer certas palavras como se ao dizê-las se pudesse quebrar um encanto e voltar contra mim forças estranhas e poderosas, capazes do bom e do mau e caprichosas quanto baste para me tiraram com a mão esquerda o que dão com a direita. Nestes momentos recordo Hilda. Imagino-me de novo com ela como aconteceu quando a mereci, há muito tempo, no auge, digamos assim, do meu potencial de sonho.
Conheci Hilda, como acontece nos milagres, não na altura em que mais precisava dela mas quando cresci o suficiente para a compreender. E mesmo assim foi demasiado cedo porque se soubesse o que sei hoje teria ficado com ela para sempre. Assim ela o quisesse também.
Naquela altura morava numa cidade grande, maior que esta, ou pelo menos parecia-me muito maior que esta, porque circulava com um rio dentro e isso dava-lhe uma dimensão de corpo vivo que tem sangue e veias e artérias, não era só o empilhamento de motores de combustão interna a derramarem desesperadamente moléculas envenenadas. Num dos lados da cidade havia um jardim de uma dimensão que eu nunca consegui esgotar e um dia, um dia inteiro, decidi, ou decidiu o acaso por mim, faltar às aulas para pensar enquanto percorria a passo os caminhos entre as árvores, entre os pássaros, entre os esquilos, entre os cisnes, entre algumas pessoas, poucas, umas mais estrangeiras que outras e entre elas Hilda, sentada, absorvida num livro que não era bem um livro, como ela me explicou depois de termos trocado olhares coincidentes de curiosidade e começado a falar do sabor agradável daquela brisa que afinal não soprava porque o tempo tinha parado por uma razão qualquer que ainda hoje, estes anos todos depois, não percebi.
Hilda era tão estrangeira como eu, estava ali apenas porque queria estar e tinha adquirido essa sapiência sobrenatural de saber e fazer o que queria, ignorando, sem se forçar a ignorar, disputas de alma ou questões internas de decisão ou hesitação.
Eu sei que já amava Hilda antes de a encontrar naquele jardim improvável e de ter tido com ela aquele diálogo impossível. Se ela me tivesse confirmado que era uma deusa - como ingenuamente lhe perguntei - em vez de ter aberto ainda mais aquele sorriso de conforto absoluto, eu teria embarcado naquele momento na sua nuvem de eterna transcendência. Depois ficamos calados, contemplando o movimento regular das copas e o vogar delicioso dos cisnes.
Dos meses seguintes não tenho mais imagens que as de Hilda. Depois achei que poderia haver algo ainda melhor. Pareceu-me que não me bastaria ficar pacientemente a escutar o arfar cauteloso dos arbustos à passagem das crianças alegres. Queria oscilar entre esses momentos bucólicos e a guerrilha atribulada de me confrontar com o inesperado. Hilda não se perturbou no seu afazer pacificado e deu-me a entender que eu fazia bem. Deixei-a no mesmo banco do mesmo jardim a ler ainda o mesmo livro que, como ela me mostrou, não era bem um livro.
A ausência de Chris, de quem não sei há alguns meses, parece ter colocado aqui em casa a imagem de Hilda a procurar no seu livro de significados ocultos, as frases de que não sabemos o fim porque se perderam com a erosão do desejo. Hilda pode mesmo ter sido uma deusa que tive o privilégio de conhecer e que hoje, tarde demais, continuo a procurar como aconteceu anos mais tarde quando voltei ao mesmo jardim, ao mesmo banco, e aí encontrei ensanguentada uma pomba branca.

Ivo Cação

('post' anterior de Ivo Cação)

A dificuldade de ler (26)

Eu sei que não sei dizer com objectividade o que me prende ao Peter, nem sei se posso encontrar alguma coisa de partilhável no que sinto, para poder, por momentos, ser coerente a minha precisão de pensar que não tenho que sentir o que outros esperam que eu sinta ou que me habituei a pensar que é costume sentir. É provável que precisemos de alguns pontos comuns para comunicar. Deve ter havido em algum momento da evolução um compromisso entre a liberdade e a comunicação: para partilhar o que sei tenho que me sujeitar às regras da partilha e ser um pouco menos livre do que seria se não tivesse essas regras. O Peter é para mim um compromisso, nada mais nos liga que uma palavra qualquer que teremos dito um dia já avançados na bebida e no prazer e no jeito saciado com que as palavras saíam sem entraves nem dissonâncias.

O que temo agora, Doutor, é que os acasos da rua o tenham apanhado na sua perversidade e os afectos da atenção o tenham prendido a uma estaca qualquer de certezas e absolutos. Temo, Doutor, que uma voz um pouco mais astuta lhe tenha segredado propósitos extraordinários para uma vida, e em vez da sua proverbial aversão aos provérbios tenha agora encaminhado o sentido para uma forma de missão outra que a de não ter missão alguma. Confesso que estava relativamente bem com a sequência inútil de nada acontecer, de os dias serem tão claros e possíveis como as noites, de, sem fogo de artifício, ir preenchendo os instantes com movimentos milimétricos na sua simplicidade e no seu alcance, mudanças de cor só visíveis para olhos muito atentos e perspicazes, tudo devidamente enquadrado por um lugar fixo que espera sem enfado o nosso regresso e onde se coordenam uma pequena dose de conforto e de segurança, lugar de retorno, coito dos jogos opacos que a interacção social exige. É isso que temo, Doutor, a perda, voltar ao fantasma de não ter um recurso prático a que chamar sítio do meu sonho, e não sei, Doutor, não sei se isto que sinto é um sentimento meu ou o desgosto de ele poder já não ser o que eu sinto, desilusão portanto, falha, outra vez, da perspectiva e desta dificuldade insane em perceber a dinâmica do tempo, dos afectos e dos desejos.
(continua)

Torcato Matos

sábado, julho 22, 2006

A dificuldade de ler (25)

Teria eu certamente de amar a loucura como toda a gente, mas eu não quis, eu sabia que isso era possível mas não procurei essa parte deslocada da vida. Não me interessa o lado não lúcido; arrepia-me estar, ainda que por instantes, na presença de factos que não são factos, pensamentos que não são pensamentos, virtudes que não são virtudes, ilusões, mentiras, truques, falhas de perspectiva; não me interessa o que não é, quero apenas que ele seja então esse ser que eu construí com os dados mínimos das primeiras pinceladas e ver aí a absoluta indiferença pelo sentido geral, pela cultura geral, pela ideia geral, pela maneira geral, pelo estado geral, pela média presumida de lei que dita cada valor e cada ansiedade e ainda que nós não queiramos enfileirar pela mesma medida de generalidade; fica quase sempre a ideia desalinhada e louca de ao não pertencer ao grupo, pertencer pelo menos ao grupo dos que não pertencem ao grupo, encarrilar com qualquer coisa, mesmo que estranha, mas nunca ficar à chuva, não recusar o chapéu que há sempre para encobrir um qualquer desencaminhado que se estranhe no lugar a que não sabe pertencer; nada de ficar de fora da taxonomia, nada de ousar misturar o trigo com o joio, nada de afectar os indicadores de confiança que são muito sensíveis à diferença, porque pode perturbar a indiferença militante e de um momento para o outro o rebanho tresmalha e os rendimentos de quem rende tornar-se subitamente menos rentáveis. Eu encontrei o Peter como se fosse o milagre impossível. É certo que isso já me acontecera antes. Mas ganhei experiência, aprendi a olhar melhor para a textura do primeiro impacto e a recusar o que se parecia às anteriores desilusões. Aprendemos ao mesmo tempo que esquecemos. Esquecemos os factos mas ficam as impressões, os métodos, as intuições, os impulsos de defesa. Peter é diferente demais, é a pedra que escapou ilesa ao rolar furioso do rio e chegou a mim ainda sem as marcas do tempo, sem as pressões das tempestades, sem a avidez incontrolada da fome. O Peter nunca me fez sentir como uma coisa que pode ter um dono.
(continua)

Torcato Matos


sexta-feira, julho 21, 2006

Alcance

Sente-se que a terra treme.
O alcance de uma bomba é sempre curto.
Um grande passo para um homem, pequeno passo para a humanidade.
Não se sente em lugar nenhum a não ser na curva logo a seguir ao lugar da morte.

Ontem soube que ninguém queria a salvação para o seu vizinho.
É agradável viver num mundo assim em que não se chega a sentir o pior.
Há uma margem bem definida e fica-se do lado de cá para o que der e vier.

Em todo o caso, seja qual for a insolência do tempo, o desvio de grandeza é sempre ínfimo.
Ninguém tem alcance na voz para se fazer ouvir para além da sua resguardada solidão.
A arte cénica do gesto hiperbólico também só é vista nas primeiras filas da plateia.
O aroma da violência não vai além do arame farpado que define o redondo da vala comum.
E o sabor da morte, quando chega, é intransmissível.

Poderia ser diferente?

Ontem fiquei a saber que os gestos humanos são encenados por especialistas.
Também ontem, numa tarde de emoções avulsas, se revelou o aspecto recorrente do medo e a evolução maciça do desespero.

Não há apelos a fazer, nem instruções ritmadas, nem gestos purificadores.
Não há soluções empacotadas, nem fórmulas químicas de correcção.
Não há modelos aperfeiçoados, nem justiça, nem sementes mágicas.
Não há pistas, nem praias, nem desembarques, nem almoços, nem gritos.
Não há processos arquivados, nem poder tolerante, nem saber gratuito.

O que há, é esquecimento.
Pura evanescência na memória, ou rumores perdidos e renovados.
O que há, é ver outra vez a mesma cena, já com outra matéria nos olhos e outra luz no horizonte.
E esquecimento.
E medo de perder, de ganhar, de sentir, de tremer no momento da perturbação.

Aconteça o que acontecer é irrelevante.
O sofrimento é uma coisa pessoal, reprimível, funesta e indeterminada.
Nada ocorre sobre a inocência bruta do rio que segue o seu desleixo próprio de milhares de anos de história sem pesadelos nem consequências.

Poderá não existir substantiva diferença entre o encaminhar rotineiro das vidas e a flutuação caótica das ondas a remar indolentes com a maré, razoáveis no seu mister e transparentes no horror que lançam sobre as outras formas de existência.

Sísifo

A dificuldade de ler (24)

Capítulo I (retoma)

Quando conheci o Peter senti que era agora, que esta era a oportunidade, finalmente, de alguém que não era como se esperava que fosse, e que tinha, parecia-me a mim, um coração, assim uma coisa amável, que sentia em conformidade mas não estava preso a nada nem sentia com as situações do dia a dia relação ou remorso; vogava pela vida como se já soubesse da sua inutilidade e não parecia incomodado, e eu achei que esse poderia ser o formato adequado para encaixar as minhas sucessivas desilusões; parecia, e era, uma indolência benigna, uma condescendência com a evidente materialidade da vida; subia as escadas da casa que eu queria nossa e dizia ao chegar, com arrepiante sinceridade que já não tinha medo de se afogar no ar embaciado que respirávamos os dois ao mesmo tempo, dentro da mesma casa, e que o meu cheiro, que a princípio lhe tinha provocado algum temor, era agora uma coisa familiar que até podia ser benigno quando ele não sentia, pelo cheiro sim!, que me dominava a angústia e as moléculas da minha pele se escapavam pela pressão interna do desespero. Senti, com ele, outra vez, que era desta vez, que o quadro se compunha, que tinha aqui ao pé a dureza arrepiante do imponderável revestida de uma forma que sendo reconhecível não era da mesma espécie que várias vezes me quisera tornar pedaço humano morto e enterrado; acreditei, acredito, que qualquer expressão particular havia que me não enganava nesta ocorrência singular de homem que primava por não saber a que me referia quando não me referia a outra coisa que não ele próprio e assumia que entre nós, entre o corpo dele e o meu corpo, havia, de facto, uma união que não era tradutível em sinais universais e buscava nessa particularidade de único a suficiente harmonia de ser ao contrário do que até então eu conhecera que parecia sempre feito da matéria oscilante de um espelho que tenta reflectir em cada gesto um outro gesto já usado e aprovado pelas normas e pelas associações que impunemente governam e arregimentam o mundo. Só depois eu quis saber quem era o Peter, buscar pelo seu corpo marcas de identidade, encontrar nas suas palavras e nos seu tiques impressões digitais de um eu que escapava sucessivamente à lógica, à certeza, à prudência, à consciência, à posse...
(continua)

Torcato Matos

quinta-feira, julho 20, 2006

A dificuldade de ler (23)

Não é importante que eu diga os lugares onde as coisas aconteceram, nem os nomes das pessoas, nem o modo como se desvaneceu a minha raiva; não interessam as datas, a altura do ano ou que paixão me movia; não vale a pena referir os nomes, os apelidos, as alcunhas, os estilos de vida ou a falta de estilo das vidas, tirando agora o Peter que é o que agora interessa, porque é o homem que agora tenho ou é o homem que agora me tem ou não é uma coisa nem outra porque não sei que chamar a esta ausência de espaço entre nós quando estamos à distância e a angústia que se forma quando o vejo a dormir fora do meu tempo, fora da minha forma de ser, e não sei, Doutor, não consigo perceber o que o move agora, o que o leva para os seus amigos, para a sua noite, para a sua definição de mundo que não se aparenta a nada do que até aqui tive que cumprir; e fico à espera, Doutor, e não sei, não sei se vale a pena, outra vez...

Interrupção I (pequena intercalação no capítulo)

Há informações que levam a crer que o destino não está traçado. Disseram isso no noticiário das 18:00h. Baseados em estudos realizados nos últimos doze anos numa rede de universidades do país, os cientistas Edward Morgan Forster e Nadine Gordimer, apresentaram um extenso relatório onde confirmam tudo o que não se sabia nem estava demonstrado no relatório preliminar apresentado há cinco anos no décimo sétimo Congresso Internacional de Saúde Ambiental, Políticas Alternativas e Geriatria Animal. "Desta vez fomos ao fundo da questão e conseguimos dados surpreendentes que terão impacto imediato na perspectiva que o homem tem sobre si próprio" foram as palavras com que o Dr. Forster iniciou um longo discurso que poderá deixar o país em estado de choque. "A próxima fase da investigação - a que apenas falta o adequado financiamento para ter início - irá, esperamos nós, demonstrar a existência de Deus com o mesmo grau de confiança com que agora demonstrámos a fragilidade do destino". Wall Street reagiu mal ao anúncio e a generalidade das acções tiveram recuos da ordem dos sete por cento. A Dra. Gordimer, confrontada com a questão bolsista, reagiu de imediato declinando quaisquer responsabilidades uma vez que mais importante do que a vida económica é a vida espiritual e o conhecimento da verdade. Entretanto, todo o sistema hospitalar britânico entrou em alerta amarelo, no temor de uma súbita onda de tentativas de suicídio.
(continua)

Torcato Matos

quarta-feira, julho 19, 2006

Cedo

Percebi cedo que é muito mais fácil quando não se quer.
Cedo demais. E cedo demais também.
Por não querer, cedo passei a ceder ao querer que não era meu.
Porque era mais fácil. Foi isso que percebi cedo demais.
Cedo demais quer dizer antes de poder perceber que o que é mais fácil cedo, pode não ser mais fácil mais tarde.
Cedo demais quer dizer que não oponho resistência às vontades por não encontrar outra vontade para lhes opor.
Mais cedo ou mais tarde acabamos por ceder.
E eu que percebi, cedo demais, que era mais fácil não querer, percebi, tarde demais, que cedi demais.

Percebi, tarde demais também, que não era nada fácil não querer.
Embora em princípio, cedo portanto, parecesse que o mais fácil era não querer, percebi enfim, sem querer, que o não querer era difícil.
Se primeiro, e bem cedo, percebi ser muito mais fácil não querer, depois, muito depois, concedi que é muito difícil não querer.
Porque o que eu percebi já muito tarde foi que em todas as coisas há um antes e um depois e um antes e um depois antes e depois de cada antes e depois e assim sucessivamente.
E o que eu achei mais fácil tinha a ver com o depois porque ao não querer eu não tinha que me haver com as consequências de querer.
E ao querer, como percebi mais tarde - tarde demais - não cedo à vontade de não querer e fico, sem querer, indiferente ao fácil e ao difícil.

Percebi, concedo que nem tarde nem cedo, que antes cedia com facilidade e por causa disso era tudo demasiado difícil.
Parecia - e não posso dizer que perceba o que apenas parece - sempre demasiado cedo para dizer que bastava e sempre demasiado tarde para recomeçar.

Agora, enquanto não descubro coisas novas que possam, sem que eu o queira, alterar este desequilíbrio estável, agrada-me acreditar que não é cedo nem é tarde para tentar não ceder a esta vontade, que cedo percebi, de não querer por parecer mais fácil.
É uma questão de crer. Bom... mas isso de crer é outra história.

Prólogo

A dificuldade de ler (22)

Fugi, Doutor e fugi várias vezes. É próprio dos animais fugirem dos ambientes hostis, procurarem lugares que os aceitem ou, pelo menos durante algum tempo, lhes pareçam amigáveis, tolerantes, no mínimo lugares que os ignorem e os deixem em paz. E foi isso que eu fiz. Foi assim que andei de poiso em poiso, não propriamente à procura - o que é sempre uma maneira bonita de ilustrar o nómada - mas empurrada pela substância do acaso, ávida de corroer em cada humilde pausa, a textura delicadamente construída no interior de cada universo diferente que fui encontrando, e acreditando, e sonhando, e construindo, e perdendo... Mesmo no contínuo estado de perda acabei, sempre, por ser mãe, Doutor. Mulher com a matriz da maternidade, como se um poder superior determinasse ter que ser mesmo assim, com ou contra, em estádio de ser ou de parecer, em forma ou em conteúdo, em vontade ou em mera contradição de termos e de lamentações; sempre adiando o dia em que havia de ser por outra causa qualquer que não a de salvar, de trazer a vida na palma da mão, como uma planta que se cuida para ser outra vez razão nenhuma, outro arbusto a suportar os custos da sombra e a sentir ai, no desgosto de não ser e ao mesmo tempo não saber o que é ser, reservada a intenção para mais tarde, para quando fosse possível, para quando Deus quisesse, para depois de salvar tudo e todos, na impossibilidade flagrante de não continuar a dar apenas lágrimas como contributo à felicidade imaginada para todos.

Mas não é bem assim, Doutor. Estava a deixar-me ir pelas palavras. Por instantes pode ter parecido que estas fugas estiveram isentas de ódio e isso não é sequer pensável porque o que me moveu, juntamente com o medo e ao mesmo tempo que o medo, foi o ódio, puro e duro, firme de morte, revolta total contra a presença e contra a ausência, clima tonitruante de ira extrema e sangue enxameado de destruição, de veneno, de asco... Sabe como as emoções vão e vêm, sabe, somos todos assim, pesa-nos às vezes a alma com a importância que de repente um nada ganha e nos faz perder o sentido do real, e ficar o mundo inteiro pendurado pelo fio flácido de uma aranha mesmo à mão da nossa mão de justiça...
(continua)

Torcato Matos

terça-feira, julho 18, 2006

A dificuldade de ler (21)

O Doutor deve saber que não há muitos destinos possíveis para um mulher quando emerge nos vastos e maioritários espaços em que ainda se não deu forma a alguma desarrumação na geometria elementar das consciências, e quando digo que não há muitos destinos não consigo evitar pensar em apenas dois, na restrição binária do maniqueísmo nivelado pela morbidez mental de costumes - substâncias nauseantes a que se convencionou agregar sentido para justificar como justo tudo o que empalidece e esvai em nada o paradoxo da inteligência - que deixa como caminhos exclusivos e de sentido único, a perda sumária da dignidade no banquete dos prazeres ou a dor silogística da maternidade, Madalena ou Maria para sempre, rostos contraditórios nos extremos da fuga ao máximo terror de perceber e aceitar a diversidade do ser e do gesto, temor, sempre temor, terror, medo absoluto a vencer outro medo absoluto, luta constante com o aproximar da estranheza, culto dogmático da ignorância e da imposição, e medo, e medo, e humilhação, tudo por um pedaço de tempo próprio para sentir, sem nunca chegar a saber como; vida binária, ser e ter sem ser nem ter, e deixar o gosto inebriante da simetria, como na benevolência da rima e do gesto harmonioso, determinar a verdade, o belo, o bom, o sentido e a divindade. Foi por isso que fugi, que saí de lá, de ao pé dos lugares em que me sentia primitiva, desses lugares em que se acredita que a verdade é uma coisa que foi determinada num passado muito distante e onde agora nada mais nos resta que esperar que esse luxo abandonado regresse, sempre com este sentido de termos sido abandonados, deixados à nossa sorte por não termos sabido aproveitar o que valia a pena e termos optado não sei bem porque maus caminhos, mas certamente os mesmos limitados maus caminhos que uma humanidade fêmea pode tomar na sua essência de criatura a quem mais não resta do que perder-se ou cuidar devotamente da sua geração, dando-lhe por um lado razões externas para viver e alimentando por outro a sua amargura do resto que sobrou de uma intenção melhor que nunca se pode concretizar, ilibada mesmo assim de culpas se souber apreciar na dor o êxtase merecido e na dádiva da vida a vida como dádiva. Foi por isso que fugi, mesmo não sabendo que era por isso que fugia.
(continua)

Torcato Matos

segunda-feira, julho 17, 2006

A dificuldade de ler (20)

Nos desatinos de uma ocasião ficou o meu corpo preso à demência de gerar outro e só a sorte anónima de um habitat que fazia por se proteger do que era demais, segundo uma lei fatal que vinha de profundidades irracionais, ficou-se a meio do seu potencial num passe de dolorosa magia em que um gesto brusco e quase cirúrgico recolocou a vida na sua ensanguenta normalidade e me retirou a mim uma impureza que não podia ser por não estar prevista na lei a impunidade para os actos que não se deixam medir pela fraqueza ou pela força dos que podem e determinam. Fiquei também, e ao mesmo tempo, dispensada para sempre dos pesadelos do pecado como se o acto de morte tivesse sido ao mesmo tempo uma confirmação do meu baptismo de vida e uma carta de alforria para o prazer e para a isenção formal dos seus meritórios impostos. Mas eu era ainda demasiado jovem e já demasiado ressentida e tudo o que poderia vir a seguir estava contaminado de excesso e de negação e todo o passo que eu desse pelos caminhos que já estavam escrutinados de desrespeito por quem tinha ido além do que a moral pedia, como se cada acto feito à revelia da consciência fosse um teste mais à viabilidade orgânica de um ser que tinha que escolher na idade tenra o lugar social a que iria pertencer, colocando com a devida precisão a hierarquia elementar dos desejos e a formulação exacta das possibilidades - escolha portanto que não era escolha mas teste absoluto a uma natureza que era viável ou não, como aconteceu logo a seguir quando na fábrica aprendi a rejeitar, sem apelo nem agravo, o que não fosse de acordo com a norma e a aproveitar apenas o que encaixava no 'check list' rotineiro, deixando de lado, qual ditador desumano, o objecto em que um lapso milimétrico no erro de fabrico, tinha ensaiado uma condenável imperfeição - dizia eu, todo passo que eu desse, fosse por onde fosse, seria um falso alarme de outro passo que nunca seria capaz de dar.
(continua)

Torcato Matos

domingo, julho 16, 2006

A dificuldade de ler (19)

Tudo nesse passado se perdeu através de frinchas de portas que escutavam assobios repentinos de medo e da assombração pormenorizada que cada gesto de um pai que era ali rei para compensar as humilhações de um dia a dia desesperado e tinha para com o mundo que nos cercava e afogava, frases absolutas e inquestionáveis, leis divinas a somar às leis divinas que a mãe divulgava em provérbios assentes na verdade irrefutável da rima pobre que talvez se chame assim por ser rima de pobre ou se tenha tornado pobre por ser a rima das verdades que só interessam a quem deve permanecer pobre para todo o sempre a fim de que recicle habilmente os restos que vão caindo da soberba mesa de quem pode e eu não sabia que todo o destino está na infância e nada mais se pode acrescentar a esse pedaço de tempo em que as palavras ainda não se dividiram em múltiplos significados e que, mesmo o que sabemos é, antes de mais, o mais ineficaz dos conhecimentos a levar o sentido da existência para labirintos em que já se sabe que o caminho não tem saída mas mesmo assim se tenta na esperança de um milagre que também sabemos não existir, sendo um saber a que não damos importância porque temos de dar mais importância ao silvo embriagado da água que finalmente aqueceu e traz a potência de por momentos reduzir o desconforto de dias e dias em que não era possível senão encostar corpo contra corpo para sentir que o mundo não acabava ali naquele gelo que comprimia a difícil respiração e expulsava vapores nauseantes pela boca que no meio da tosse e dos fumos fabris ainda tinha um espaço mínimo por onde manter o sangue a correr, e o coração, coisa de textura mole e inadaptada, ousava admitir que havia um futuro reservado noutro corpo, sem saber como nem porquê, atento apenas aos esgares fortuitos das secreções e à movimentação estratégica das hormonas, inquietas de se fazerem sentir na formalidade doentia de quereres que não eram vontades mas pareciam, e que levavam a água ao seu moinho, isentas de responsabilidade e de medo de consequências, anestesiados os dons da moral e dos provérbios pobres de rima e requerida da altura de um abismo a urgência inestimável que dava para retirar do mundo o estado supremo da fascinação do instante e o arremedo instantaneamente gasto do prazer.
(continua)

Torcato Matos

sábado, julho 15, 2006

Pérolas (XI)

É reincidente. Uma padeira que chama os bois pelos nomes.

A dificuldade de ler (18)

- Este sabor, Doutor, faz-me regressar à menina de há muitos anos, ao amargor de saber que o que está para acontecer é sempre pior que o que já aconteceu e o som da broca, o agudo que entra pelos ouvidos, arrepio de vida a fugir por entre os dedos, dor insuportável antes do contacto, silvo de bala prolongado no tempo, à espera de um corpo que há-de encontrar mais tarde ou mais cedo, morto ou vivo, indiferente ao que não seja o próprio sofrimento e indiferente também à astúcia do tempo a recriminar os afectos e a perder as esperanças, abandonada já a infância, com uma certa pressa, não fosse o azar das questões internas provocar derrames alargados de lágrimas e de pensamentos na modesta casa em que as coisas só aconteciam motivadas por alguma pressão do exterior ou das bocas que se ouviam à passagem, ou que nem se ouviam mas ficavam nos ouvidos como se fossem ditas porque, para todos os efeitos, sentíamos que eram merecidas ou mesmo desejadas, que as questões que se punham a quem nem sequer tinha tido tempo para aprender a sonhar, quanto mais a soletrar as letras difíceis do alfabeto de uma virtude qualquer e em que, a cada momento que passava, parecia que o anterior tinha sido mais um degrau descido em direcção a um inferno ainda mais desumano, eram vagas emanações de uma retórica impiedosa, morta à nascença e deixada abandonada no caminho para que todos vissem a miséria como forma legal de dar à ilusão um espaço sensível e tributável, porque o problema maior era já termos visto o outro lado, sabermos, na nossa ignorância, que havia um lado de lá, rigoroso de promessas e ares misteriosamente limpos e de aparência salubre - atraentes esses lugares - mais não fosse porque eram outros lugares que não os do hábito da censura e da negação e de parecer, porque parecia, Doutor, que além do nosso casulo com cheiro a estrume, cercado de odores que carregavam a morte, havia lugares em que o nariz não se fechava na defensiva e aspirava como se se pudesse respirar realmente e sempre.
(continua)

Torcato Matos

sexta-feira, julho 14, 2006

A dificuldade de ler (17- C1/P1)

Capítulo I

- Vamos lá então ver como vão essas miseráveis cáries.
- Doutor, preciso de lhe falar do Peter.
- Então porquê? Ele continua a não querer lavar os dentes?
- Não é isso, é o nosso casamento que está em risco.
- Vocês são casados? Pensei que ele fosse teu filho.
- Pareço assim tão velha?
- Não. Por amor de Deus. Ele é que parece um adolescente. Também não se cansa muito com o que faz... Abre lá a boca.
- Estive a ler as cartas. E fiquei assustada. Ele aparece ao lado de Deus. Não sei como interpretar.
- Hum... Não te preocupes. Todos estamos junto de Deus. Abre a boca.
- Não tenho nada nos dentes, Doutor. Tenho a alma dorida.
- Está bem. Mas já que estás aqui deixa ver.
- Preciso de falar consigo. Preciso de falar com alguém que me conheça um pouco mais do que como leitora de cartas. Preciso de ajuda, Doutor. O Peter...
- Acredito, Elsa. Mas eu sou dentista, não sou psiquiatra.
- Não tenho dinheiro para psiquiatras, Doutor. A única especialidade em que o serviço nacional de saúde me dá o direito de falar deitada a custo zero é a odontologia.
- Mas eu não percebo a não ser de dentes. Dentes e gengivas, estás a ver?
- As coisas estão todas ligadas Doutor. O meu tormento é na cabeça. Preciso de falar.
- A parte que eu conheço da cabeça é a mecânica. Não é a psíquica. Os meus instrumentos não interagem com a alma.
- Isso é o que o Doutor pensa. A estabilidade familiar é óptima para combater a cárie. Preciso que me ouça, que se sente aqui atrás de mim e tome atenção ao que eu digo.
- É ridículo, Elsa. Eu sou um cientista, pá. Tu é que lês cartas e mãos e fazes magias. Eu leio o passado nos dentes e tento alterar o futuro deles.
- Uma parte da história está nos dentes e a outra eu conto mas preciso da sua ajuda.
- Tenho mais pessoas lá fora à espera.
- Isso não tem importância. Tenho que falar do Peter.
- Fala lá, mas depressa.
- Só preciso de uma coisa antes.
- O quê?
- Umas gotas de desinfectante na boca e um bocadinho de som da broca...
- Estás doida?
- Vá lá, Doutor. É muito importante. Mesmo muito importante.
(continua)

Torcato Matos

quinta-feira, julho 13, 2006

Dever

Devemos esperar simplicidade nas leis da física.
Exactamente como esperamos no amor e na alegria.
Para cada acto improvável criam-se à volta dos pensamentos auréolas de insanidade.

Deve haver uma equação a várias incógnitas para a loucura.
Soma-se, subtrai-se, divide-se e multiplica-se o resto pelo desejo.
E as incógnitas permanecem à superfície de uma exactidão imoral.

Deve haver um sistema indeterminado para calcular a moral da história.
Cada equação traz a indiferença perante a hipótese do olhar.
Cada variável agarrada a uma constante indefinição.
Cada termo compondo um princípio básico para o fim.

Devemos buscar a ordem na finalidade.
Cumprir os rituais que levam a dignidade à morte e sentir esta manifestação opaca do querer como uma épica manobra do medo.

Devem o ter e o ser sobrepor-se na sua branca nulidade.
Afagar a dor como companheira para amansar a fera escura e pura.
Preparar a arma e a vontade para perecer com mágica alegria.

Devemos esperar simplicidade nos cálculos.
Exactamente como esperamos simplicidade na nuvem e nas estrelas.
Para cada pensamento improvável ocorrem poderosos actos de demência.

Deve haver um momento irresolúvel em que a paz se instala.
Antes, agora, depois, no acordar seco da aurora inquestionável, precipitam-se os cristais amorfos do que parecia possível.
Eleva-se no ar a força fraca de não saber ler, nem escrever, nem contar com o passado nem com o futuro para nada.

Deve haver um eficiente e dedicado professor que nos ensine a não perder, a colocar sobre o prato da balança a massa atómica das partículas elementares da existência, a ver pelo tubo óptico o disfarce continuado dos elementos, a misturar no copo todos os ilíquidos pensamentos nucleares, a sondar com infinita prudência a inércia fraterna da matéria.

Devemos passar os dedos com suavidade contida na textura fina da pele que amamos e procurar em cada poro esse infinito que se ausenta a cada momento do universo fluído de viver.

Prólogo

A dificuldade de ler (16- P/P16)

Ele, Peter, tinha agora uma missão de carácter algo indefinido. Digo eu que nada tenho de omnisciente e preciso de me socorrer das fontes para não meter água.

Peço desculpa. O meu editor já me informou que a minha posição como narrador é muito ambígua e que eu devo tomar cuidado para não aborrecer ninguém com devaneios que só a mim dizem respeito. Por isso decidi que neste momento - que me soa a trágico - vou morrer como personagem desta história, passando a dedicar-me exclusivamente à elevada função que, num certo sentido, me é mais familiar. Os milhares de cartas que recebi até hoje a encorajar o meu interesse pela verdade, são quase unânimes na identificação da minha função como mero elemento de transmissão - reparem na cacofonia involuntária do 'ão' - da informação. Assim se dirá, daqui em diante, que o narrador participante jaz morto e enterrado.

O encontro que ele, Peter, tinha marcado com um certo desconhecido, com uma intenção ainda por esclarecer, tinha afinal acontecido com outro desconhecido que ele sabia agora chamar-se Bill e que o tinha salvo de uma cilada, pois outra coisa não era o encontro que tinha marcado com o primeiro desconhecido. A vida tem estas estranhas coincidências e Peter seguia, com estes pensamentos e pouco mais, na expectativa de conseguir que o seu passo largo e enérgico o colocasse em casa suficientemente antes de o sol nascer.

Elsa esperava-o, como sempre, com uma chávena de chocolate quente e um cálice de Porto. Davam-se bem. Não fora aquela dessincronia entre o dia dela e a noite dele e poderia até dizer-se que formavam o par ideal. Peter sentiu um esboço de ternura ao beber o chocolate gelado enquanto via os vidros do cálice espalhados e a mancha doce de vinho do Porto no écran da televisão. Mais uma razão para não gastarem uma pipa de massa numa frágil televisão de cristais líquidos.
(continua)

Torcato Matos

terça-feira, julho 11, 2006

Pérolas (X)

Um ai de fazer perder a respiração.

A dificuldade de ler (15- P/P15)

Devo reconhecer que a história fugiu, por instantes, ao meu controlo. Há na estrutura do acaso elementos desconcertantes e eu não sou pessoa de tratar indelicadamente os visitantes inoportunos. Mas neste caso, não é o caso deste acaso. Bill é um velho conhecido. Está descrito na maioria dos bons compêndios e pode ser considerado o arquétipo do bom selvagem que não teve nunca a oportunidade de o ser. Tinha como sonho de infância ser o Robin dos Bosques, roubando os ricos para dar aos pobres, mas a inevitabilidade da intervenção estatal na economia levou-o, tal como é próprio de um bom estado, a roubar a classe média para distribuir equitativamente pelos ricos.

Teve sorte, temos de concordar. Vive na altura certa em que existe um vasto mundo ansioso por ser roubado e que ainda agradece por isso. Mas a distribuição da riqueza é um fenómeno de cariz erótico: não tem sentido quando aderente à rotina.

Peter, ele próprio, nomeado Peter para o que der e vier, passou a sentir que tinha alguma coisa para fazer para além daquelas missões já gastas que de vez em quando lhe calhavam sem que percebesse porquê.

Mestre Bill tinha para ele uma missão que não era de rotina. Tudo indicava que desta vez o espírito revolucionário do Mestre iria transferir significativa informação do super-ego social para o id estatal. Tudo questões que transcendiam Peter mas, por isso mesmo, lhe davam um poderosa sensação de pertencer a algo mais do que a sua miserável evidência. Os passos eram agora lentos mas seguros. Tudo parecia fazer sentido e encaixar. A verdade histórica tinha, por uma vez, buscado uma concretização dentro do mais improvável dos seus membros.
(continua)

Torcato Matos

segunda-feira, julho 10, 2006

A dificuldade de ler (14- P/P14)

- Então como te chamas, pá?
- Diz-me tu o nome que hei-de ter.
- É justo. Vou nomear-te. Chamar-te-ás Pedro*!
- E tu, como te chamas?
- Eu? Boa! Nomeia-me tu. Dá-me um nome que passe a ser o meu. Ou adivinha o meu nome.
- Chamo-te chefe**.
- Hum... Não, muito convencional.
- Deus***?
- Eh pá, isso é uma blasfémia. Tenta outro. Imagina alguma coisa que a minha cara te lembre.
- Não consigo ver, está muito escuro. Apetecia-me chamar-te Bill****.
- Ok, ok. Bill, acertaste. Bill o rapaz do Filão Trópico. Que achas?
- Não percebo mas acho bem, Bill. Fica-te bem o nome.
- Vejo que nos entendemos. Pedro. Pedro Tocha *****! Este é um grande dia para nós e, terás de reconhecer, especialmente para ti.
- Agradeço-te a boa vontade Bill, és um cavaleiro****** às direitas.
- Como disse em tempos e com elevado sentido de estado um profeta do Apocalipse, “há males que vêm por bem”. A tua história era para ser outra. Sei de fonte segura - e eu sou um homem muito bem informado - que a tua história, a tua outra história, foi comida por um disco rígido. O sistema operativo******* falhou e da tua história ficou o que já estava escrito. Há portanto uma descontinuidade no espaço tempo e toda uma infinidade de possibilidades na tua mão.
- Perdi há pouco a oportunidade de ficar um homem rico por possuir um colar de diamantes.
- Estás a exagerar. Era apenas uma pulseira. Nada de especial, Pedro. Nada de relevante perante o futuro que te espera.
- Confesso que não te percebo.
- Por uma questão de relevância cósmica prefiro que me chames Mestre Bill********.
- Como queiras, Mestre Bill.

* Peter no original; ** Boss no original; *** God no original; **** Bill no original; ***** Peter Tosh no original;
****** Cavalheiro no original; ******* OS no original; ******** Master Bill no original

(continua)

Torcato Matos

sábado, julho 08, 2006

A dificuldade de ler (13- P/P13)

Investigação, meus amigos, investigação. Pesquisa, pois claro, pesquisa. Insistência na procura das causas. Tentativas e erros. Muitas tentativas e menos erros. Persistência no alcance da verdade. É assim que se descobre. É assim que se vai em frente para chegar à essência das coisas. Especialização na recolha dos sinais relevantes, selecção dos cordelinhos determinantes e aí estamos nós na presença dos factos.

Ele acordou pela força nocturna da escuridão com a nádegas doridas e o pescoço torcido pela posição em que esperou pacientemente uma decisão adequada à estanha situação que vivera. Não fora eu um agente insuspeito da transmissão da verdade e arriscaria dizer que ele não se lembrava porquê. Mas não é esse o meu propósito.

Avançou de novo pela ponte ao encontro do encontro que marcara, esclarecida que estava a posição inadequada do sol. Escolhia aquela ponte em vez de uma das outras apenas porque anos atrás o vento lhe levara ali um boné hip-hop de estimação e havia sempre a hipótese... Estranhos são os caminhos por onde segue a realidade quando não sobram escapatórias para a consciência.

Tinha caído sobre Londres uma camada espessa de nevoeiro de baixa qualidade. Ele seguia o seu caminho com o mesmo à vontade de sempre, indiferente às circunstâncias especiais, indiferente à pressão atmosférica, à temperatura e à humanidade.
(continua)

Torcato Matos

Segue o cego e vês a vez

Quando o artista fala, deita pela boca fora muitos paradoxos. Ficamos por isso desentendidos mas a comunicação rola sobre a relva enxuta. A bola sobe sempre acima da iluminação dos holofotes e deixa por momentos de se ver. Do Vouga vêm as almas mais pacíficas à procura da morte. Do artista então ninguém fala porque é sempre um homem que domina o verbo. Partir? Para onde iremos agora que as flores do paraíso já murcharam todas com a indecisão do ministro. De Deus, a Quem o respeito é devido, podem sempre ser dadas as melhores referências. Bíblias gráficas, cheias de iluminuras, foram local de aprendizagem para gerações de monges copistas que deram ao tempo novo a sua razão de cor. E salteadores houve que se apropriaram dos tesouros da humanidade e a pouparam de se perder. Com tanto lixo tóxico acumulado que até já se fazem exposições de partes de corpo humano. De Caim, que sempre foi tido como má rês, pode dizer-se que teve a arte de iniciar as trevas ao negar-se à obediência. Cega de inveja veio a virtude mais tarde a esclarecer que a história pode não ter sido escrita dessa maneira linear. Mente quem teima em negar a importância da arte. Factos são factos e quem vai ligar às vis afirmações dos que perdem? A semente que foi lançada há milhares de anos, na noite angustiante dos tempos e dos passatempos televisivos, medra agora sob as formas alongadas do buraco de ozono. E a zona onde as coisas correm mal é sempre a norte do equador. Porque a dor do cavalo cansado – também conhecida como sopa de burro – cai da cela em que esteve preso à vida por instantes. Momentos de fulgor, certamente, desprezados pela rotina e pela junta de freguesia. Da loja mandaram hortaliças e pão centeio para fazer um caldo verde à moda de Paris. Ou dais à luz, tanto faz, porque hoje já não é sinal dos céus a chegada de uma cegonha sem gripe ao seu poste de alta tensão. Alta é também uma maneira fácil de morrer ao sair do hospital quando não há mais entretenimentos que façam correr riscos calculados. Numa folha de Excel, com meia dúzia de comandos, pode fazer-se a contabilidade do mais valioso e do menos. Mal fica quem não tem onde cair morto, embora depois pouco importe. Do estrangeiro vêm sempre novas e esclarecedoras definições sobre o que vale a pena. E o castelo dos Mouros já não fica no deserto da Arábia mas nas areias da praia. Mar por onde escorrem os últimos fios de água de uma secura universal da garganta. Funda-se uma nação para impor um novo ideário à vida e à expressão do prazer. De ler tanta coisa ficamos perdidos do sentido e da direcção em que a história segue. Um olhar que se quer pleno e gregário e orientado para o plano da razão. Pura não será a arte por causa da contaminação dos riscos que sobem de não saber onde termina o quadro comunitário de apoio. Moral da história: a arte é o dom de quem queria seguir à risca o esforço do acaso. Ocaso.


Artur Torrado

sexta-feira, julho 07, 2006

A dificuldade de ler (12- P/P12)

Quando cheguei a casa - apesar de isto não ter interesse nenhum - não consegui pregar olho. Ainda peguei no martelo e num prego mas o meu coração mole impediu-me com razões piegas. O universo tem a habilidade natural para incorporar as excepções. Quando aparece um vencedor o resto do mundo agrupa-se contra ele para o derrotar. Talvez eu me tenha vindo embora para não o ver perder.

Não vale a pena termos qualquer ilusão sobre o desenlace das histórias. Já nada acontece de relevante. Para sentirmos alguma coisa, passámos, os mais corajosos, a perfurar a pele com estiletes à procura da essência do prazer e dos ovos de ouro. Mas o remate dessa história já toda a gente conhece e aqui, neste momento optimista, há que ter esperança de a história não se repetir nem a moral ser sempre a mesma.

Tahar Ben Jelloun, dezassete anos, nascido no Reino Unido de imigrantes sobre-sarianos, residente num número ímpar da Portobello Road, com a tatuagem de um Tuaregue na nádega esquerda, apoderou-se da pulseira de brilhantes que tinha em cima um homem de vinte e cinco anos, magro e alto, mais magro que alto, com enorme e genética dificuldade em tomar decisões repentinas, pelas dezassete horas e vinte e cinco minutos do dia treze de Maio de mil novecentos e noventa e nove. Tanto o jovem como a pulseira são dados como desaparecidos o que significa que estão em parte incerta.
(continua)

Torcato Matos

quinta-feira, julho 06, 2006

A dificuldade de ler (11- P/P11)

É curioso como a curiosidade procura a razão irracional. É curioso também como o processo de pesquisa parte sempre de pressupostos conservadores. O jogo de cintura que os olhos fazem ao fixarem-se num brilho que os fascina é também uma manobra erótica. Pelo menos pode ser vista desse prisma sem que as cores se difractem.

Um corpo sozinho, sentado no descampado de um parque sobre uma pulseira com gotas de carbono puro, torna-se um alvo que não está em movimento. Nestas alturas os humanos agrupam-se. Reúnem-se em clãs, em tribos, em matilhas e em sociedades secretas.

Ele pensou vagamente que saber as horas lhe poderia ser útil. Poderia ser muito cedo ou demasiado tarde, que as nuvens não deixavam ver onde dançava o sol. Tinha uma ideia, também ela vaga, de que o dia, primeiro ficava mais claro e depois a luminosidade descaía quase até ao zero da noite. Mas faltava-lhe a experiência do dia para poder sentir-se à vontade.

Confesso que me aborrece ficar aqui à espera que o dia acabe para que então ele tome uma decisão qualquer que o tire da imobilidade. Adormeço de tédio estando aqui mais um segundo. Às vezes temos que saber desligar-nos das coisas mesmo que não gostemos delas.

Ele ficou bem. Deixei-o sentado, vigilante, atento aos movimentos ondulatórios dos outros, com um súbito interesse na vida, uma luz no olhar.
(continua)

Torcato Matos

quarta-feira, julho 05, 2006

A dificuldade de ler (10- P/P10)

Pode ter sido por associação de ideias que, de repente, a ponte acabou, abruptamente, como se um arquitecto louco - outra vez - tivesse concebido uma ponte louca para homens sãos usarem para mudarem de estado físico e psíquico.

Ele saltou os vários metros que separavam a plataforma elevada do passeio-margem que seguia entre as árvores, à beira da preguiça ensopada do rio, e caiu de pé sem ter rodado sobre si com um mortal à retaguarda. Falta sempre algum dote artístico aos heróis, que perdem por isso o respeito dos belos e ficam entregues à lágrima fácil das sopeiras.

Aos pés dele, sobre a dureza castanha da terra repisada, estava em reluzente abandono um pulseira de diamantes. Olhou à volta. Várias pessoas olhavam disfarçadamente, na expectativa de que ele percebesse que eles tinham visto mas ninguém mais percebesse o que cada um tinha visto. Porque o brilho era muito e atraía a atenção do mais desprevenido. Uma jovem loura que tinha os cabelos pintados de preto, seguiu o seu caminho na direcção dele, querendo parecer natural que não se desviasse nem um milímetro do seu caminho em linha recta, porque se se desviasse isso quereria dizer que tinha visto o mesmo que os outros, apesar de ela não saber que os outros também tinham visto e desejar que os outros não soubessem que tinha visto o brilho que viu.

Ele sentou-se no chão, as pernas pernas cruzadas e o olhar meditativo, sobre o incómodo da pulseira que tinha as pedras mais duras da terra. Sentado, nervoso, impaciente, dramático, tirou os óculos escuros e percebeu que afinal era dia. Alguns factos e algumas ideias poderiam ter feito sentido naquele instantes se o sentido fosse o que ele procurava.
(continua)

Torcato Matos

terça-feira, julho 04, 2006

A dificuldade de ler (9- P/P9)

Ele pensa com palavras. A ponte do rio é demasiado longa para se atravessar numa noite de verão. Ele pensa, com palavras, em voltar para trás, para o aconchego das pontes que se atravessam num ápice e devolvem o outro lado das coisas sem o gosto avermelhado da ira. "Um homem não desiste" murmura entre dentes apertados contra o esforço de seguir em frente numa ponte que ainda sobe por tardar em chegar ao apogeu da travessia.

Enquanto ele atravessa a cada vez mais longa ponte, ocorre-me que os ventos, a humidade, o cheiro poluído da água, a transpiração do esforço, o andar do relógio, a presença de um olhar inquiridor, o fantasma imperioso da torre, a força inconstante do vento, todas essas mudanças desconexas de contexto que desamparam o herói, podem desgraçadamente transformar um homem normal num louco imprevisível. Ou o contrário. Mas isto é apenas uma hipótese, uma opinião, uma achega à perplexidade que a cena propõe. E é preciso que ao sair do contexto não me perca em formalidades nem apanhe demasiado frio.

A ponte, como qualquer ponte, há-de chegar ao fim. Ele não tem pensamentos que cheguem para tão extensa travessia. Há certezas que se vão no caudal do rio e outras que se formam ou regressam do momento em que já tinham morrido. Ressurge nele uma vontade de outra margem e, no desespero, naquela proporção destemperada de gestos em que se esquecem os valores da lógica, pronuncia com delicada propriedade uma oração da infância que para todos os efeitos estava dada como perdida, morta e enterrada no lugar mais escuro da submissão.
(continua)

Torcato Matos

Esfera

É verdade que no cimo da montanha há uma miragem.
De lá, do cansaço da subida e do ar rarefeito, vê-se o universo como se fosse logo ali.
De lá, da pele áspera do frio e da secura, ouve-se a terra com se fosse paz.
De lá, da febre e do prazer da conquista, sente-se o corpo como se voasse.

Há na repetição dos gestos, louváveis secreções de sonhos.
Movimento balanceado do ritmo de ir sabendo do regresso e de voltar para não permanecer.
Sobem as certezas na flecha do tempo e da ambição.
Crescem como vulcões os sentidos da posse, da vontade, da insistência...

Todos os dias o mar entra alegre pela nesga apertada da rocha.
Baba-se de prazer com a espuma de estar a cumprir uma missão.
O mar sabe.
O mar sabe há muito tempo qual é a sua ordem e o seu destino.
Faz o que tem a fazer e não pede desculpa a ninguém.
Segue a sua vocação de saber ir e saber voltar.
Segue a sua intenção de ser livre porque imprevisível e insensato.

Quando, no cimo da montanha, as estrelas ficam ali próximas, à mão de semear, dispostas em formas clássicas e dispostas a serenar o espírito, penso que sou o mar, a desfrutar da praia onde entrei à força do músculo das marés.

Quando, lá no alto, o som ausente estremece nos meus pulmões limpos da cegueira e da fome, e o ténue risco que separa as nações se mostra imponderável, vejo-me a inundar os corais e a animar as cores infundadas das anémonas.

Quando, no topo, na sólida rigidez das pernas, gastas de ingratas caminhadas e quedas e regressos e medos e sonhos e impossibilidades, desejo-me sentido e calmo, sorvendo a lentidão solene de um balouçar prudente, encantador de sereias, de tempo e de servidão.

Todos os dias o sentido iluminado volta.
Pelas ruas crescem, à porta das casas, as ilusões.
Não é necessário esperar mais tempo para perceber que será sempre assim.

Mas não importa.
À porta de cada casa há uma razão própria e única para colher as flores.
Cada degrau passa por cima de toda a Terra.
Por muito alto que suba é sempre a mesma a distância ao centro.

Sísifo

segunda-feira, julho 03, 2006

A dificuldade de ler (8- P/P8)

Lembro-me de já ter escrito esta mesma sequência noutra história e de ter apagado, um a um, os caracteres alternadamente localizados à frente e atrás do lugar original, fazendo surgir uma outra história com ainda menos sentido. Mas já percebi que é assim mesmo. De cada lado de uma narrativa, nascem várias que a completam ou destroem ou se tornam figuras autónomas de uma espécie de texto fundamental do universo. Eu não participo; estou aqui, por acaso, a servir de capacho aos reis e aos príncipes.

Ele tinha uma ponte muito longa para atravessar. No lugar marcado para o encontro não encontrara ninguém, porque estava lá, inesperadamente, gente a mais, gente de mais, mais do que gente. Ele não sabia justificar o que é que havia lá, mas não era um encontro assim que o movia e por isso removeu-se ao encontro de outro encontro do lado de lá da ponte que naquele momento, por razões que agora desconheço, se sobrepunha ao Tamisa. Os rios correm sempre acima do nível do mar, antes de morrerem, antes de naufragarem.

Não era previsível uma ponte extensa para atravessar um rio estreito. Para ele era uma agradável surpresa saber que demoraria mais do que o desejado e mais do que o necessário. Nada interessa se não tiver o seu tempo próprio, se não se medir pela dificuldade expressa com que se identifica na marca de água, no estrondo da queda de um corpo no líquido viscoso da noite. É provável que ele tenha pensado isto, ainda que não o fizesse com estas palavras.
(continua)

Torcato Matos

domingo, julho 02, 2006

A dificuldade de ler (7- P/P7)

É provável, até porque é costume, que tenha passado algum tempo entre o instante em que ele adormeceu e o instante em que acordou. Tinha anoitecido e ela já não estava presente. Também não estava presente em nenhum lugar da casa escura. A sala consultório estava envolta na penumbra de fumos já gastos e a cozinha emitia as manchas pálidas da televisão acesa, mais do que suficientes para encontrar às apalpadelas bolachas integrais sem colesterol e uma cerveja familiar.

A torre da igreja batia as horas mas eram demasiadas para ele perder tempo a contá-las. Mau a matemática, passara a também ser mau a contar coisas, a enumerar os objectos e os acontecimentos. De uma boca destas não saem factos nem interpretações.

Saiu pela porta para poder saber o estado do tempo no alpendre antes de se meter à estrada. Havia sombras de folhas no local onde, no dia anterior - melhor dizendo, num dia anterior - tinha depositado, sem grande entusiasmo os restos imortais de uma coisa estranha que tinha sentido.

Ao chegar ao local do encontro já se tinha esquecido da importância que tem a noite para esconder os desejos. Havia muita gente naquele lugar e isso tornava difícil distinguir o que era luz do que era reflexo e do que não era uma coisa nem outra mas o simples desejo de ver. Tinha dito a Elsa que o medo era apenas um instante; não durava mais do que o instante antes de saber: e antes de saber era necessário o medo, para que cada acto fosse mais do que um simples jogo de cartas.
(continua)

Torcato Matos

sábado, julho 01, 2006

A dificuldade de ler (6- P/P6)

Perguntei-te apenas se me amavas, como se pergunta nos filmes, mas agora já percebi que não.” “O amor para mim sempre foi, só e apenas, o medo da ausência e o medo da presença. Todos os que amei até hoje foram os mesmos que eu magoei, e a todos eles receei magoar e a todos precisei de magoar. Não tive alternativa. Contigo não é diferente. Magoo-te todas as vezes que te digo alguma coisa e ficas magoado também quando ignoro o que me dizes e perguntas. É por isso que passei a ser absolutamente sincera sobre o que penso e sinto, mesmo quando não penso nem sinto nada. E se te digo que neste momento não sei dizer se te amo ou não, quase que te posso garantir que mal saias aquela porta sentirei o desejo absurdo do teu regresso e a angústia de não estares presente. É assim que eu sinto e é assim que eu sempre senti. Razão não tenho para sentir de outra maneira como não tenho para sentir desta.”

Ele, que não dorme nunca, entretanto adormeceu envolto no mistério de não saber se a amava, já que ela só o amava na ausência e ele na ausência nem se lembrava que ela existia. E as formas da existência e dos sonhos são sempre absurdas, inúteis em sentido lato, vertidas daquela intenção de sobreviver que vem de uma vontade interior inexplicável. Faça-se luz! E a luz fez-se.
(continua)

Torcato Matos