terça-feira, setembro 26, 2006

Principício

O princípio só se vê depois, quando a calma devastadora do tempo se ampara mansamente na memória. Voam, nessa altura, os pássaros sobre os ninhos rotineiros e aí aprendem a submissão ao passado. Ainda assim, encontra-se beleza na perspicácia insolente da intuição e acredita-se, através de variáveis ocultas, na bondade de um criador insuportável.

Vi, em tempos, horizontes melhores, mais apetecíveis. Tinha neles a esperança de que o fim não fosse logo a seguir à ilusão. Era tempo de construir e eu não sabia, porque a lava quente ainda queimava a superfície assombrada pelos exemplos ocultos. Não tinha medo nem método. Ingeria o acaso como se fosse alimento espiritual e subia às alturas apoiada em moléculas quimicamente belas. Saltava sobre o real porque a verdade era tão evidente como o riso que soltava impune no fim da noite, ao nascer do sol, antes de adormecer.

O princípio é o que se marca na memória como sagrado. Nem se sabe o que se sabe ou se o que se sabe aconteceu. É princípio por necessidade; para marcar o tempo e o espaço; para relativizar e proteger do desconhecido. É esta a prática absurda do tempo: esquecer. Porque a prática absurda do homem é lembrar.

Quis, lembro-me que quis, guardar de cada instante da vida uma marca que provasse que eu tinha estado lá. Quis vestígios para proteger a memória da sua volubilidade. Sinais que soubessem em cada nova leitura localizar as formas transversais da certeza. Documentos capazes de reconstruir na sua dimensão própria o esvair anárquico dos sentidos.

O princípio percebe-se tarde demais. Cai sobre nós pelo temor do seu oposto e conserva-se como talismã da oposição ao caos. O princípio chega à noite, quando a escuridão cega as vozes que deixaram de saber, e bate levemente na janela fechada. Pergunta, com um sotaque desconhecido, a causa da desgraça e o feitio arrepiado dos sonhos. Parece mesmo interessado em saber o que se passou entretanto.

Não é verdade. Ele não quer saber o que me aconteceu. Procura apenas a sua glória. Procura outra vez o naco de carne apodrecida que traduz em manjar. Ele não sabe que deixei no meu caminho pedaços de luz que não é capaz de ver. Torço a razão das coisas e penso-as para meu gozo. Jogo. E é com o jogo que ultrapasso o tempo e cumpro a missão que não me deram.

Beatriz Teresa
(post anterior)

segunda-feira, setembro 25, 2006

Outro

No lado de lá da montanha já começou a chuva.
Sei, por que me chegou o cheiro novo da vida a sair da toca.
Também ouvi os trovões e as frases curtas das aves.
Senti até na pele o efeito de uma certa razão profunda para desejar.
Provas demais de que esteja já a chover no lado de lá da montanha.

Os passos pesam mais na lama.
Não é ainda mas sei que em breve o percurso será mais doloroso.
É assim e assim será.
Como as manhãs e o vento e a sombra e o efeito anímico de um corpo belo - belo pelo efeito anímico que provoca num corpo.
Mecânica do cosmos e mecânica dos sentidos.
Química da mão que dobra sobre si e ampara o corpo no bordão.

Poderia ter-me ocorrido não aceitar.
Poderia ter-me ocorrido procurar outro destino, outra perturbação.
Poderia ter-me negado a permanecer no meu caminho, na minha solicitude.

Sei que não o pensei porque não quis.
Tive ao meu alcance outra forma de liberdade e outra forma de dor.
Era apenas uma ligeira mudança na bifurcação dos caminhos e teria ido para outro céu.
Sei que não o pensei porque não quis.

Seria agradável dizer agora, com a forma arrogante que mereço, que escolhi o melhor.
Seria agradável porque talvez o meu rosto perdesse por momentos a sisudez da indiferença.
E eu sei, por ter aprendido na infância, que os músculos chocalham soltos quando nos rimos.
E também sei que poderia dizer tudo o que quisesse, fosse ou não verdade, fosse ou não aquilo que sentia.

Acontece, e os factos são os meus guias, que estar aqui, nesta sequência solitária de passos, é apenas resultado da forma arredondada como a chuva cai, hoje do outro lado da montanha, amanhã aqui sobre mim, gelada e desconfortável, à espera de de novo ser alguém numa figura viva qualquer que a beba.

Sísifo

A dificuldade de ler (59- C5/P2)

- Estás a fugir à questão...
- Um especialista é um profanador da intimidade das coisas. Num certo sentido é um pervertido. Daria até um óptimo título: "a perversão do especialista". Ou: "a especialidade como perversão".
- Íamos no diafragma...
- Quando o especialista se vincula à sua especialidade e leva a sério o carácter de saber todos os pormenores do seu saber - que pela própria definição tem o restrito alcance da sua área de especialização - torna-se inevitavelmente unidireccional. A sua obsessão passa a ser devassar a intimidade do seu objecto de estudo.
- Conhece-te a ti mesmo...
- Ah! Especialista em mim!
- Sim. Obsessivo com a tua própria coisa. Quero dizer: tu como teu próprio objecto de especialização. Tu a olhares para ti o tempo todo.
- Seria interessante... Concordo. Seria interessante. Mas sabes que prefiro especializar-me em ti.
- Tretas...
- É verdade. Pode ter sido de ti que partiu esta minha ideia de associar a especialização e a intimidade. És tu que juntas estes dois mundo que parecem tão distantes.
- Tretas. Tu não te interessas pela minha intimidade. Tu não queres saber quem sou.
- Claro que quero. Talvez só isso me interesse...
- És uma besta...
- "Às vezes passo horas inteiras, olhos fitos nestas braseiras...".
- Solta-me!
- Eu tento perceber-me, Cláudia. Nisso tens razão. Os meus impulsos têm uma causa que me ultrapassa. Mas é apenas naquilo que te diz respeito. Pode muito bem acontecer que precise de ti para chegar ao conhecimento que preciso de ter de mim. És a minha porta de entrada.
- Deixa-me ir embora. Solta-me.
- Quando te conheci eu era um menino. Em todos os sentidos. Fizeste-me homem. Em todos os sentidos.
- Grande merda que eu fiz!
- Não sejas modesta. Eu tinha os olhos completamente tapados. Eu estava todo tapado. Não era ainda gente. E provavelmente sem ti, ainda hoje não seria.
- Não és! Podes ter a certeza. És uma besta.
- Não digas isso. Também para ti esta experiência é gratificante.
(continua)

Torcato Matos

domingo, setembro 24, 2006

A dificuldade de ler (58- C5/P1)

Capítulo V (versão um ponto zero)

- AAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHH!
- Que é que se passa?
- Dei um grito.
- Que é que aconteceu?
- Nada.
- Então porque gritaste?
- Apeteceu-me.
- Apeteceu-te gritar!?
- Sim, apeteceu-me dar um grito.
- Assim, sem mais nem menos?
- Sim. Um grito espontâneo. Sem razão aparente.
- Assustaste-me.
- Não era minha intenção.
- És um estúpido!
- ...
- Se foi sem razão aparente é porque houve uma razão...
- É uma questão filosófica. Há sempre uma razão. Quero dizer que para todo o efeito há uma causa.
- E qual foi a causa?
- Do grito?
- Claro! De que é que estamos a falar?
- Hum... Uma rápida e intensa expulsão de ar dos pulmões que aproveitam uma posição particular das cordas vocais e a abertura da boca.
- Essa é a causa do grito!?
- De uma maneira muito sucinta é a sua causa directa.
- E o que é que te fez expulsar o ar dos pulmões com essa pressa toda para aproveitar a posição particular das cordas vocais e a abertura da boca?
- Tinha os pulmões cheios de ar que tinha acabado de inspirar. Faço isso muitas vezes.
- Sim, eu também. Mas porquê a pressa?
- Foi o diafragma. Foi. Fez muita pressão e expulsou o ar.
- Compreendo. Serás capaz de me dizer então porque fez o diafragma essa pressão toda, assim de repente?
- Hum... Isso já são pormenores técnicos que me ultrapassam. Acho que o diafragma é um músculo, estás a ver? Comporta-se como qualquer músculo, mas não sei pormenores, digamos que já é uma questão demasiado íntima. Ou especializada. Estou a escrever um texto em que demonstro a íntima relação entre a intimidade e a especialização.
(continua)

Torcato Matos

quarta-feira, setembro 20, 2006

A dificuldade de ler (57- C4/P9)

"O se que digo é reflexo e não condicional. Ver a própria imagem reflectida no infinito, num corpo que se oferece voluptuoso para o desejo de desejar sempre novo desejo e a cor da pele a avermelhar a potência da loucura. Já nada agora me ocorre como certeza e ao mesmo tempo já não me destrói a ilusão. Passei a saber que o lastro perdido da infância vem a correr de novo para se soltar em gritos de alegria que agora acompanham os gritos do prazer. Depois de ser como era é outra coisa ainda.
Há no desenrolou todo o aroma da verdade. Há tempo, há espaço, há acontecimento, há sensação de movimento, de pressão crescente sobre o corpo. Há fluxos se vontade a assomarem, ou vontades a perderem-se como o momento em que o soldado cercado já não pode resistir mais e pondera sem razão nem sentido a capitulação, a entrega do corpo e da arma ao inimigo. Mas não se trata aqui do inimigo. Sou aqui o guerreiro que luta consigo próprio e procura o instante supremo em que o impulso vital torna de novo às imprudências do sonho.
Durou pouco este durante. Mas não interessa o que durou porque durará para sempre. Num universo gasoso é na solidez dos planetas que se forma a vida. Há a dureza de um lugar para que ele seja lugar e se identifique entre todos. É assim que eu vejo a oscilação natural da vida a ocorrer entre os dois pólos opostos da dureza extrema da rocha à suavidade displicente dos vapores. Durante o tempo em que dura uma história somos felizes. E quero que dure esta história. Esta esta a que me refiro é uma mulher que conheci aqui, durante este congresso, entre vós, enquanto trocávamos os nosso saberes, os nosso sonhos e os nossos projectos, troquei eu também os sabores, as sensações e o prazer com uma mulher que se não tivesse nome nem profissão eu chamaria rainha da LI. Mas há aqui algo de profundamente egoísta que quero partilhar convosco: quero-a só para mim. Troquei por estes dias a virtude enquadrada de um académico de renome pela margem do plano adjacente à aceitabilidade. E ao dizer-vos isto tenho a consciência de estar a cumprir um mandato da minha vontade, contra tudo e contra todos. Contra todos e contra as mais coerentes ansiedades.
Foi assim a semana que vos descreve este congresso. Não foi talvez esta a maneira mais correcta de o ver. Nem a mais literária. Nem a mais profissional. Ficará por ser a mais humana. A mais fragilmente humana. As minhas preocupações literárias vão todas para a inutilidade. Sete dias passam muito depressa e esquecem-se muito depressa. Interessa que pelo caminho encontremos palavras que sobrem e sejam as necessárias para levar nos bolsos para o caminho e para os momento de pausa, quando, nos nossos locais de trabalho nos lembrarmos do inesperado acaso que levou um respeitado professor de literatura inclusa a encontrar o amor numa jovem cozinheira estagiária que assava frangos como ninguém."
(continua)

Torcato Matos

terça-feira, setembro 19, 2006

A dificuldade de ler (56- C4/P8)

Esta uma é a conferência que aqui nos reuniu e uniu, e levou o nosso espírito para o desabar consequente da imensidão. Voltar a casa, agora, é como que um retorno do infinito e por isso eu não vou. Vou ficar. Vou permanecer neste lugar sagrado, nesta ideia sagrada, neste saber divino que agora me recobre e me fascina para todo o sempre. Revelou-se-me aqui o mundo num corpo feminino, num corpo literário que bebido até à última gota me inebria a alma e a razão.
Digo visão como podia dizer milagre. Subo ao topo da hierarquia dos sentidos e recorro a cada instante à tentativa de me perguntar se é verdade. Quero saber. Quero saber tudo embora não queira saber, não me interesse saber e me apeteça acima de tudo pensar o que sei como o devaneio especial que me tomou. Sou agora imune à sombra. Sobrevivo ao fogo e ao gelo, e sobreponho a tudo os desejos, o amor e a paixão.
Quero com integrada dizer da minha totalidade, de já não ser uma manta de retalhos, de já se não poderem perceber em mim os granulos elementares de que era feito. Operou-se em mim a transmutação. Passei de água a vinho, de lua a sol, de excremento a ouro, de coisa a Deus. Agora que a tenho, que a vi, que a possuí, já não sou partes mas todo. Entrei no Olimpo pela porta grande e sentei-me na liberdade eterna da loucura. E o do que pronuncio repetido, repete a música celestial, marcha nupcial de uma vontade que eu julgava morta e que por força das letras, por força de um rosto de olhos semicerrados, por força de um corpo que se ofereceu no calor em brasa, renasceu, reviveu, ressuscitou.
Agora o que, porque há sempre um que. E por que causa hei-de eu lutar senão a causa do regresso ao paraíso perdido. Se repararem é sempre no passado que está a perfeição. Todas as teses, todas as religiões, todos os sistema de pensamento, todas as filosofias, todas as promessas dos políticos se referem a um regresso à perfeição do passado. Foi lá atrás no tempo que as coisas se portaram à altura de criar o ser humano perfeito. Depois as coisas não correram bem. E é por isso que nós aqui estamos, para dar um novo alento ao mundo, às letras e às funções afirmativas do corpo. Queremos agora iniciar uma nova história depois da história ter morrido de morte natural.
É aqui que o aqui faz sentido. O lugar que é nosso é o lugar a que chamamos mundo e a forma regular dos corpos que dançam sobre a dureza impune da Terra que ao mesmo tempo alimenta e se alimenta do alimento que produz. Ciclo de sentido e ciclo de lugar, aqui onde estamos porque onde estamos é sempre o nosso aqui. Viemos para sentir e depois de sentir estamos a celebrar, sentindo ainda o claro-escuro da incerteza a brilhar no alpendre iluminado da satisfação.
(continua)

Torcato Matos

segunda-feira, setembro 18, 2006

Pérolas (XIV)

Uma nebulosa teoria de grupos que me agrada...

Almofada

Tenho pena que não haja aves no ar.
Ouço asas a bater e acredito que o voo se tenha levantado do rastejar indefinido.

Ainda não sei em que é melhor voar que rastejar, estou apenas no início da minha pena.

Referia-me eu às asas das aves quando pensava, porque pensava, em voos rasantes, coladas à indefinição do recorte da paisagem.
Voos sobre as águas.
Asas a bater com violência nas rochas e penas a soltarem-se em voo no ondulado ininterrupto do acaso.

Queria apenas saber como se respira nas alturas, quando se está a sair do intervalo estreito e ansioso, da gaiola genética que nos conformou.
Há vestígios aqui de espaço superior e apenas ousamos ter pena de não ser diferente.
É penoso pensar que não vale a pena.
E é penoso ousar fugir da prisão, condenados à capital pena do capital poder do capital.

Capitalizar ou capitular poderia ser a divisa da nova bandeira.
Nova?
Não tão nova como a novidade do humano a perseverar sobre uma inocência pendente de ilusões em cadeia.
O núcleo de uma bomba que explode ao ritmo do sopro e da respiração, reduzindo o dizer à repetição da fórmula e da norma, do segredo que transita uniforme até se tornar verdade.

É pena que seja assim. Pena dura que já não voa na asa quebrada do pote de ouro.
Não me mace com coisas complicadas que isto de viver faz-se com uma perna às costas, e um braço ao alto, e a cabeça assomando no canto inferior esquerdo do início de tudo.

Partimos do princípio com a intenção de começar de novo.
Soletramos as letras dos letreiros abandonados e queimados pelo calor do sol, onde estão inscritas as proibições antigas substituídas pelas proibições mais recentes das novas liberdades.
Aqui já ninguém voa.
As asas são quebradas à nascença com alegria numa festa de anúncio de todas as liberdades e de todas as satisfações. Tudo nos será dado.

Quando não sei rio-me de não saber; quando não tenho rio-me de não ter; quando não sou rio-me de não ser. Substituo uma pena escura por uma pena colorida e papagueio engrandecido o hino da diferença igual à diferença mais igual que houver.
E comparo, claro que comparo, meço, peso, avalio, calculo e volto com a revolta que outrora adquiri a preço de custo num bazar chinês.

Poupo os tostões e o pensamento à frente das imagens que já decidiram ser-me essenciais.
E eu fico a olhar, ocasionalmente opaco, ocasionalmente adormecido, sem pena, nem penas, apenas com pena de não ter certezas sobre a intrigante natureza do espaço elementar.

Prólogo

domingo, setembro 17, 2006

Astro-terapia

Assim como há sempre uma primeira vez, também há uma última vez para todas as coisas. É uma lei da natureza e contra as leis da natureza não de pode fazer nada.

Comprei hoje o sol pela última vez. Por questões de sanidade mental. Isto é, pela mesma razão que já me fazia evitar a compra do expresso. Radioso fim, portanto.
Sei que vivo num país a duas velocidade extremas e percebo que isso torne as coisas complicadas para quem quer perceber o que se passa, admitindo que ainda há quem queira perceber o que se passa. Mas estava convencido que a tacanhice mental se poderia alimentar placidamente com a floresta de revistas manhosas que se acomodam à sombra da televisão e do burlesco 'jet set'. Pensava eu, ingenuamente, que o circuito de esgoto se esgotasse em si próprio, saltitante e alegre, entre as emissões televisivas mentecaptas, as mentes sopeiras que grudam os olhos no écran, as revistas que mantêm magicamente a literacia a zero, a elite nacional que faz bichas de porches para comprar apartamentos na torralta e toda a risível parafernália que alimenta os negócios políticos, quando vejo a degradação mercantil empoleirar-se com toda a pompa do abutre experimentado na pasmaceira cinzenta e conformista do quarto poder.
Durante um ano o sol vai brilhar em todo o seu esplendor. É fácil perceber como os homens da publicidade vão pegar num título tão cheio de potencial: o sol brilhará para todos nós; o sol quando nasce é para todos; o sol na eira e a chuva no nabal; o galo negro; mais brilhante que mil sóis; o rissol; sonasol líquido; javissol; magnatas aos sol; a roupa a lavar e o sol a corar; solteiro e bom rapaz; de sol a sol; o nascer do sol; o pôr do sol; sol tropical; insolação; solnado e sol nada; vamos aquecer o sol; lugar ao sol; comunhão solene; sol e toiros; sol e sombra; óculos de sol; o sol da meia-noite; sol de inverno; o lol e a sua; sol vermelho; duelo ao sol; deus sol; eclipse do sol; sol de pouca dura...
Mas daqui a um ano, depois de distribuir talheres, livros, revistas, suplementos, cêdês, dêvêdês, enciclopédias, naperons, bolachas integrais, t-shirts, balões, guarda-chuvas, etc., dá ao sol um solavanco que o dissolve no solvente universal da pasta de papel reciclado. Talvez haja ainda dinheiro - que há lugares neste país em crise onde há ainda muito dinheiro - para um novo fôlego com um novo director muito experiente, ou novos colunistas, ou um sorteio de ferraris, ou mais talheres e livros e shampôs, ou notícias mais ousadas, mais diferentes, mais quentes, mais decadentes, mais entorpecentes...
Virá portanto o sol semanário a ser independente antes do diabo do tempo expresso. Como se sabe é perigosa a exposição ao sol a certas horas e o uso de protector é aconselhado. De qualquer maneira o sol não é culpado: o cancro já se instalou há muito.

Artur Torrado

sexta-feira, setembro 15, 2006

A dificuldade de ler (55- C4/P7)

O evento de que falo é esta grandiosidade de vos ter aqui testemunhas de uma nova era que eu sinto como uma nova oportunidade para o Homem. É aqui hoje que se enuncia o futuro, neste jardim inesperado de Pexiligais em que as palavras se fizeram corpo e que eu, nesta minha humilde pessoa, nesta irresistível fortuna, tive uma visão, e mais do que uma visão, uma audição, e mais do que uma audição, um aroma, e mais do que um aroma, toquei, e mais do que tocar, saboreei a subtileza total do divino. Daí o extraordinário extraordinário! Não há, não consigo enunciar outra palavra para o que é agora este momento, para o que foram estes dias, para o que vai ser a partir de agora cada um dos momento da minha vida. Nada se pode sobrepor a esta revelação. Agora estou aqui de coração aberto perante vós a demonstrar a minha decisão de tudo largar por uma única causa que se exprime numa única trindade: a palavra, o vinho e a mulher!
Digo dando-vos porque é meu desejo espalhar a generosidade. Nada mais interessa do que a dádiva, a oferta desinteressada de tudo o que se tem sem retorno, sem paga, sem comércio de vida ou de morte, pura transacção de partilha desenfreada em que nada é de ninguém e tudo é de todos. É no dar que está a essência do divino, na oferta brusca de inocência onde antes havia interesse e na misteriosa substância de ter como posse apenas a consciência. E dentro, claro, dentro do interior, acedendo ao íntimo e à condição inigualável de recusar a ocultação e transportar nas entranhas o segredo e a escuridão. Luz, meus amigos, luz em toda a parte, tudo à vista, sem esquinas a tapar a imprudência e com a imprudência a derrubar todas as arestas cortantes do prazer. O do de que voz falo é como uma nota de música. Porque hoje as palavras que me ocorrem, hoje e para sempre, são palavra musicais, violinos a tocar no cérebro divino, orgãos em uníssono a desbravar os espaços ainda virgens da sonoridade abstracta. Falo, portanto, para que se ouça uma música nova e se engrandeçam os sons como prova de alegria, esta vibração que agora nos submerge e nos leva para lá da nossa tentação de querer ser nada com uma aparência altiva. Estou aqui convosco para que eu também me transcenda e ilumine.
Nem tudo o que é possível é impossível. A minha experiência de homem de letras diz-me com voz sussurrada que é necessário ultrapassar as barreiras da morte. É necessário que sejamos capazes de dar alento novo à decadência e empurrar para fora dos carris a inércia secular do conformismo e da humildade. Cada uma das nossas células é uma vitória sobre o caos. Cada um dos nossos pensamentos é uma vitória sobre o acaso. Todo e qualquer acto de construção é uma vitória sobre o nada. Todo e qualquer símbolo que passe entre dois homens é uma vitória sobre o fim. Cada palavra que se escreve é uma vitória sobre o tempo.
(continua)

Torcato Matos

quinta-feira, setembro 14, 2006

Lógica

Ultimamente ando com excesso de lógica. Sei que é um mal comum, uma enfermidade de cura difícil ou mesmo impossível. Mas o pior de tudo é estragar-me o humor. Lixa-me completamente o humor. E quando o humor se estraga, estraga-se também o amor e todos os sentimentos terminados em 'or' excepto a dor e o rancor.

A lógica abate-se sobre o ser pensante mais ou menos entre os três e os quatro anos. Nessa altura é muito útil porque serve para perceber o circo e os desenhos animados. Depois, na adolescência - se for uma adolescência decente - a lógica vai para o galheiro e só volta a atacar mais tarde - tarde demais - quando o recurso ao crédito já atingiu valores insuportáveis.

Havendo ajuda externa a lógica pode evaporar-se de novo. Mas já nada é como dantes. Passa-se a viver um processo a que se dá o nome técnico de lógica-latente. A maioria das pessoas chama depressão a um ataque de lógica. Fica-se estupidamente realista e a ver uma humanidade cinzenta, sem futuro, sem saída, insuportável e muito pior do que era no nosso tempo (o primeiro sintoma é admitir que este já não é o nosso tempo apesar de ainda sermos nós que estamos a pagar as contas e os impostos).

Na idade da lógica-latente - e pronto, é aí que eu estou - fica-se mal quando se tem ataques e não se fica bem nos períodos de latência. Mas o que é realmente irritante é ter consciência de que se anda com excesso de lógica. É mais ou menos como ter caspa. Ou sinusite. Até pode bem ser de origem alérgica. Ou não. Por que o excesso de lógica é um factor agravante para a alergia. Num sentido muito directo fica-se alérgico a quase tudo. Falo por mim, claro, que nestes períodos difíceis fico insuportável. Nem consigo ver a extraordinária recuperação que o país está a ter, nem ficar entusiasmado com os fantásticos lucros da PT.

Artur Torrado

A dificuldade de ler (54- C4/P6)

Considero que exigente se aplica aqui a todo o decorrer deste congresso. Exigimos aos oradores o máximo da sua potencialidade e à assembleia o máximo do seu espírito crítico e a todos os intervenientes que deram suporte estrutural, económico e alimentar uma funcionalidade que foi por vezes divina. E sei que não falo só por mim. Falo por todos e falo com a consciência do dever cumprido. Eu faço assim, cada um fá-lo como pode. O privilégio é, hoje, a minha palavra chave, o meu talismã. Aferido o meu tacto por uma espécie de nova juventude, vivi aqui estes dias uma catarse enigmática que me revelou potencialidades inesperadas. Confesso-vos que me sentia acabado. O meu casamento já tinha o prémio das bodas de prata e não era estímulo bastante abalançar-me a chegar ao ouro. Não sou um corredor de maratonas. Gosto de congressos assim rápidos e eficazes em que se põem em jogo as artes equívocas da sedução e o jogo cintilante das palavras. Olha-se, deseja-se e toma-se posse. Gasta-se em poucos dias o lucro acumulado num ano inteiro e olha-se para o céu com a alma de novo pacificada e o horizonte aberto. Tudo porque umas mãos delicadas souberam, como numa dança, rectificar um tempero no momento exacto em que os olhares se distraíam na mobilidade dos corpos.
De de pouco posso dizer. De de sei que estimula a pertença, localiza no espaço tempo e na memória os tempos que já esquecidos voltaram agora animados de uma intempestiva pertença ao recontro reencontrado dos corpos, sentidos já como amolecidos e destinados à efervescência infernal da morte. Houve aqui neste congresso, neste enredo que nos enredou uns nos outros e que me enredou particularmente a mim numa estranha cumplicidade com o sorriso envolto nas bochechas louras, avermelhadas pelas brasas quentes, intervenção do sobrenatural, manifestação inequívoca do alto. Digo agora fechar usando o tropo de querer dizer exactamente o contrário. A tradição da contradição que faço minha neste momento elevado em que me despeço de vós com a sensação de que estaremos a partir de agora cada vez mais juntos e eu a segurar o meu símbolo de vitória e de encantamento que neste acesso de loucura enólica não resisto a partilhar convosco, expondo com a máxima substância a minha alma e o meu sentimento, figura míticas também, até esta benevolente semana.
Como me soa mal este este que vem de leste e me leva para o oeste como um pôr do sol que me diz que é já amanhã que vou ser outra vez feliz. O meu ciclo de vida que agora quero que seja também o vosso, faz-me querer cada momento como um ocaso que renasce. Este salto que aqui dou em cima desta mesa, como se pertencesse ao clube dos poetas vivos, é para mostrar, para demonstrar, para induzir, para deduzir, para detonar uma esperança nova num mundo novo que deva tanto à literatura, como ao fruto da cepa, como ao fruto oculto no olhar feminino. Uma celebração, portanto. Uma refeição universal de paixão, volúpia e néctar.”
(continua)

Torcato Matos

terça-feira, setembro 12, 2006

A dificuldade de ler (53- C4/P5)

Fragmentos de um discurso amoroso pelo Dr. Isidro Medário, proferido como oração de sapiência no solene encerramento do 7º Congresso Internacional de Literatura Inclusa na localidade de Pexiligais, no concelho de Sintra, em Portugal, no esplêndido verão de 2006, num domingo, logo a seguir à hora da sesta.
"Meus caros amigos congressistas tenho o exigente privilégio de fechar este evento extraordinário, dando-vos, dentro do possível, uma visão integrada do que aqui se desenrolou durante esta semana.
Quando digo meus estou a referir-me à proximidade que me permitiu tomar posse da vossa amável simpatia e da euforia que se apoderou do meu ser ao pressentir no plano global e especialmente no plano particular a acutilância sublime dos gestos mágicos do amor. Ao dizer caros refiro-me primeiro ao cuidado que todos vós em mim despertaram, à atenção para que os vossos desejos e bem-estar fossem favorecidos, e em segundo ao preço exorbitante em que esta festa ficou, felizmente atenuado pelos exemplares patrocinadores de que destaco a empresa de telecomunicações que nos forneceu as camisolas, à cervejeira que a todos distribuiu vistosas havaianas e a Casa de Pasto "O lameiro" que nos forneceu a Cát..., perdão, os fantásticos e reluzentes frangos assados. Os cortes orçamentais que o governo tem generosamente distribuído, foram para nós um estímulo à imaginação e à adrenalina, dando a este fim de sessão o carácter épico que nos rejuvenesceu o espírito e a sagacidade.
A palavra amigos refere-se à cumplicidade que se estabeleceu entre nós e à profundidade orgânica que nos faz parte de uma mesma causa e nos sublima os desejos e as aptidões. Somos difusores ambivalentes de uma boa-nova literária e quadros emergente de um poder que poderá finalmente trazer ordem às nações e estabilidade às famílias. De congressistas posso dizer que é aquilo que aqui nos começou por reunir. Se começasse agora aqui uma prosa literária diria: «No princípio era o Congresso, e o Congresso era o início de todas as coisas.» E estou certo que assim denotaria os sentimentos que partilhamos pela cozinha, perdão, pela Literatura Inclusa e pela vontade que ela passe a ser o paradigma da supremacia da felicidade e do bom gosto.
De tenho posso dizer que é outro indício de posse que se apossou de mim nestes dias que se mostraram deslumbrantes na arte, no engenho e nos temperos especiais, no picante que levou a lavar a língua com abundantes e frescos líquidos. Nada como a literatura para nos incluir na realidade e trazer de novo a festa aos sentidos. O o vem sempre em português para articular o sentido e vem ainda mais a propósito quando se passa por ele como elemento erótico por excelência e símbolo do lugar máximo da satisfação do desejo."
(continua)

Torcato Matos

Mantras

Nada é suficientemente importante que daqui a dez minutos já não seja.
A hipótese de suicídio é uma garantia de que qualquer problema pode ser ultrapassado.
A maioria das pessoas passam os minutos uns a seguir aos outros a fazer disparates.
Eu também.
A solução é tentar reduzir a dimensão e a frequência dos disparates.
Mas é bom saber que não existe solução nenhuma ou que nenhuma solução é definitiva.
Não é certo nem garantido que um esforço agora reduza o sofrimento no futuro.
Mas é quase certo que um esforço agora em nada afectará o sofrimento e o esforço no futuro.
Li há pouco alguém que se perguntava sobre o que era o estrangeiro.
Eu pergunto o que é que é o esforço e o sofrimento.
Como é que se está sem isso?
Faça o que fizer morro mais cedo ou mais tarde.
Uma batalha que se sabe perdida não chega a ser uma batalha.
As batalhas desproporcionadas são sempre ridículas.
É isso que torna cómicas algumas lutas para manter a aparência.
“Olhem só como eu seria jovem se não tivesse envelhecido!”
“Admirem como eu seria magro se não tivesse engordado!”
“Vejam como eu seria rico se não tivesse nascido pobre!”
“Espantem-se com a minha sabedoria se eu não fosse um asno!”
“Reparem como seria a minha liberdade se eu não fosse um escravo!”
Tudo pode ser precisamente o contrário do que se pensa que é.
E vice-versa.
Teria sido melhor se eu tivesse arranjado um Deus só para mim.
Deus como segurança pessoal e intransmissível.
Este é o meu Deus, trata de mim para que nada me falte e eu possa passar alegremente por cima dos outros.
DEUS: Divina Empresa Universal de Segurança.
Atrás de mim virá quem fecha a porta.
Perigosas são as pessoas que não amam ninguém.
As que amam muito são inimputáveis.
Quando não tenho em que pensar e tenho tempo para pensar, penso no tempo.
Fico feliz por ao ser português ter um tempo tão ambíguo.
Pronto, consegui, já estou feliz.

Artur Torrado

segunda-feira, setembro 11, 2006

Fumo

Do alto da montanha sobe um fumo negro.
Hoje é, outra vez, dia de iniciar uma caminhada esgotante.
O sol queima e as sombras recuam secas para longe dos trilhos.
Há fumo negro no topo da montanha.

Os mais justos, os que consomem calmamente a vida a muita distância da fronteira, cantam a virulência trágica das paixões.
Recolheram, em tempos, dados sobre a reabilitação do sagrado e prosperam agora entre orações e pecados ligeiros.
É muita a distância que os separa do fumo no topo da montanha.

Na primeira curva do trilho que me conduz à soberba vista, discutem, peões, a natureza negra do fumo no topo da montanha.
Sinais de fumo.
Erupção cinzenta.
Cachimbo da paz.

Não é credível a fama da ausência.
O que não está pereceu, com ou sem razão, sabendo ou não que perecia à espera do significado.
São inúmeras as interpretações e sobre elas se farão outras que terão a sua ocasião de sucesso.

Há em todos os caminhos obstáculos deixados ao acaso pelo destino.
Não chega a ser um pesadelo porque é apenas um sonho.
O desejo de classificar nasce na junção das primeiras células.
Só depois vêm os outros desejos.

Cada passo é mais difícil que o anterior por ser o que se sente agora, por ser o que não precisa da memória.
O que passou, passou, desceu de vez às entranhas da satisfação e esqueceu os passos em falso.
De nada serve a história das coisas quando a atenção se fixa no cansaço absurdo das pernas.

Hoje é, outra vez, dia de encaminhar o corpo para a sua vontade.
De o deixar ultrapassar a dor para consentir o desejo.
Hoje é, outra vez, dia de reconhecer no calor abúlico do sol a mancha escura que vive e mata.

Partem tranquilas as nuvens.
Sabem de longe a cor que acompanha a fuga.
Reconhecem à distância o apetite diagonal da fé.
E vão-se as nuvens do horizonte, ficando apenas o negro ameaçador do fumo.

Não há enganos possíveis no percurso.
Por todo o lado estão indicados os limites.
Sabemos sempre onde estão definidas as fronteiras.
Cada olhar esclarece à exaustão a cor perfeita para cada identidade.
Na profundidade do trajecto nada é deixado ao acaso.

Hoje é, outra vez, dia de chamar rotina ao desagrado e disponibilidade à dor.
Encaminham-se os sentidos e ignoram-se os impulsos.
Pede-se a cada segundo que passe indiferente à angústia e à necessidade.
O sol é quente de terror.

Desvia-se com frequência o trilho da intenção primeira.
Às vezes vou por aí, como se soubesse.
Às vezes imagino que podia não ser assim.
Quem sabe, um dia...

Sísifo

A dificuldade de ler (52- C4/P4)

Stanislav Oreky prolongou o seu discurso por cerca de duas horas e meia e parou no preciso momento em que uma pedra arremessada de local desconhecido o atingiu certeira na alva careca. As suas últimas palavras do soberbo discurso foram dois 'ais' bastante secos e uns pingos de sangue mancharam a trigésima segunda de um total de setenta e nove páginas. A plateia dividiu-se entre os cínicos que acharam inaceitável Stanislav Oreky ter sido interrompido assim intempestivamente e os práticos que louvaram a irreverente iniciativa da organização, ao manter todo o evento a um nível elevado de suspense e diversidade temática.
Não é relevante referir o discurso do representante Norte Coreano a não ser pela lamentável falta de tradução simultânea. A plateia uniu-se num silêncio místico prestando a máxima atenção às incompreensíveis palavras do orador de que nem foi possível saber o nome. A testa alta e o gesticular entusiástico, com o olhar fixo num horizonte elevado, foram suficientes para prender a atenção e espevitar a imaginação de quem tentava desesperadamente encontrar um sentido na proliferação fonética que saltava das vigorosas e desnecessárias colunas de som. Ninguém chegou a perceber se aquele homem tinha alguma coisa a ver com a LI, mas mostrava um sorriso encantador ao som da palavra LI e ficou assim identificado também por LI o suposto especialista Norte Coreano em LI.
Stanislav Oreky ganhou sete pontos na sua alva cabeça e doze pontos pelas ideias novas que transmitiu à assembleia. A ideia dos pontos também tinha sido sua filha durante a 4CILI em Dinslaken. Cada conferencista tem direito a um cartão magnético onde são guardados os pontos obtidos em cada comunicação. A acumulação de pontos, para além do prestigio tem a vantagem de permitir usá-los em restaurantes de comida rápida, para aquisição de bilhetes de cinema ou para redução no custo das entradas em passagens de modelos de 'lingerie'.
O conferencista mais pontuado foi o Prof. Bó Di Bó, a maior autoridade chinesa em LI, tanto em termos formais como em termos práticos (o "Livro Cor-de-Rosa" de Bó Di Bó vendeu só na China - e foi mesmo só na China - acima de quinhentos milhões de exemplares). O Dr. Isidro Medário carregou-lhe o cartão com trezentos e vinte e sete pontos que se dizia nos corredores serem suficientes para adquirir uma camisola assinada por todos os jogadores da selecção. Não nos foi possível saber de que selecção, porque se tratava aparentemente de um boato.
O discurso de encerramento foi um momento alto em quase todos os aspectos. O Professor Doutor Eurico Tudela Eleutério estava visivelmente chocado com o discurso do Dr. Isidro Medário. Como já tinha ficado chocado com a inclusão de uma prova de vinhos na animação da última tarde do 7CILI.
"E onde quer que eu vá buscar os pontos para os oradores?" Fora desta forma brusca que o Dr. Medário tinha calado o Prof. Eleutério.
(continua)


Torcato Matos

Torres de Hanói

Devemos deixar o medo ir até ao fim. Gastá-lo como se gastam as solas dos sapatos, até que o pé comece a sentir a verdade do chão que pisa.

A primeira vez que senti medo não me lembro. Mas lembro-me de muitas vezes, depois. Dos sustos, da melancolia de não saber e do terror conformado de já saber.

O que aprendi com o tempo, com a indiferença do tempo, é preciso que se diga, foi a perceber como o medo se vai ocultando tímido por detrás de um medo maior. Vi vários medos aproximarem-se, festivos, encantados de me ver a perder outra vez a sobriedade e a tolerância, e vi como depois, saciados, recuavam por caminhos que eu passava a evitar.

Foi assim que com o tempo me confinei as esta casa. Perdi a noção dos arredores e passei a enfrentar cada milímetro de espaço como uma dose suplementar de infinito. Trocos. Valores ínfimos. Fico aqui a rolar sobre mim, percorrendo o mesmo desvio outra e outra vez, rezando aos deuses que estejam mais próximos.

Não é o medo que me afasta do real. Ou do total. Contento-me com as partes. Nem sei como poderia ser de outra maneira. Ou sei que não poderia ser de outra maneira. E isso também aprendi com o medo, substância que está quantificada, que se insinua discretamente nos poros abertos da aflição.

Partículas de medo. Partículas elementares. Grãos indivisíveis que estruturam o universo humano, com a bondade própria de quem tem força e a sabe usar. Razão, portanto.

Hoje apetece-me o enigma. Forjar incompreensão no meu destino; fomentar o descalabro da certeza; induzir em erro como se faz quando se cria um suicida, ou quando se cria um génio, ou quando se cria uma ilusão.

Devemos deixar o medo ir até ao fim. Mais do que outra coisa qualquer, é o medo que cria a sociedade. Medo e sociedade são sinónimos. De nada adianta que me expliquem que o medo impede o caos, porque eu sei que o medo vai até ao fim, até que se gasta, até que é substituído por um medo maior.

Um dia, um dia destes, qualquer dia, alguém ganhará o Nobel por mostrar como o medo é bom para a economia, como é bom para o progresso, como é bom para o amor. Como o medo é a substância ideal para lidar com as multidões, como o medo une os povos e as ideias, como o medo traz prosperidade e sucesso. Como o medo gera empregos e faz erguer casas e empresas e novas oportunidades de negócio. Como o medo aumenta a natalidade e faz as pessoas felizes.

Soube, há tempos, por acaso, ao folhear a necrologia de um jornal na papelaria, que o meu primeiro amor tinha morrido. Chorei ali mesmo, ao balcão, uma missa de sétimo dia com agradecimento cinco anos depois. Mesmo assim joguei na lotaria, para afastar o medo de não pensar no futuro.

Beatriz Teresa
(post anterior)

domingo, setembro 10, 2006

A dificuldade de ler (51- C4/P3)

"Em primeiro lugar o 7CILI deveria aproveitar esta rara oportunidade de agrupar a fina flor da LI aqui em Pexiligais para impulsionar a criação de uma estrutura mundial capaz de coordenar os enormes desafios que o futuro próximo nos vai colocar. Só com uma estrutura dessas, que pudesse ultrapassar o carácter amador que nos tem caracterizado, poderíamos empreender com sucesso outras iniciativas com volumetria e ambição superiores às que têm até aqui sido desenvolvidas individualmente.
Em seguida o 7CILI deveria aprovar um plano de acção que tivesse como meta uma programação clara de normas sobre a boa leitura e sobre a boa escrita e fomentar a criação de um lobby que pudesse pressionar os governos e as instituições internacionais no sentido de as tornar obrigatórias e de uso generalizado.
Como escritor de LI não sou um burocrata e como tal não sei como fazer embora saiba como desejar. O meu apelo é para a responsabilização do escritor e para a protecção do leitor. O primeiro, se tiver conhecimento dos parâmetros a que tem que se submeter para não lesar o segundo, terá certamente todo o gosto em cumprir as normas e o segundo, desde que devidamente informado, passará a procurar as suas leituras não através dos tradicionais meios corrompidos da opinião subjectiva e subserviente, mas por índices claros e objectivos, devidamente informatizados. Os escritores sentirão que o seu produto não terá efeitos secundários imprevisíveis e sentir-se-ão protegidos contra os processos que o actual vazio normativo potencia. Os leitores não recearão aproximar-se de um livro e ser inopinadamente agredidos de maneira física, psicológica ou moral, como actualmente acontece.
A definição de uma norma ISO, que garanta a qualidade da escrita e dos materiais utilizados, pode ser um dos primeiros passos. A aplicação do conceito de ponto verde ao livro é outro passo essencial. A classificação das obras por índices de sustentabilidade é outro elemento fundamental.
Suponho que no futuro, o simples mencionar de que uma determinada obra foi escrita de acordo com a norma de qualidade ISO 9000 será garantia de se tornar num 'best seller'. A qualidade é, como todos sabemos, aquilo que cada um de nós mais procura. O mesmo acontece com os leitores que estão, evidentemente, ansiosos por delegar a definição de qualidade em alguém em quem confiem e que esteja para isso devidamente habilitado.
O conceito de ponto verde deve ser estendido às obras de LI pela razão muito simples de que o que chega ao leitor é essencialmente embalagem. Aquilo que eu escrevo, como qualquer escritor de LI, é uma ideia, um conjunto de matéria mental que necessita de um suporte que apenas acidentalmente é um livro. Nesse sentido é um suporte efémero ao contrário da perenidade do seu conteúdo.
A classificação por índice de sustentabilidade é uma maneira de dar ao leitor a oportunidade de escolher entre obras avançados, isto é que incluem aquilo que de mais actual a LI dispõe, e obras nitidamente desactualizadas, que em termos ecológicos já se podem considerar perniciosas para o bom ambiente da leitura."
(continua)


Torcato Matos

sábado, setembro 09, 2006

A dificuldade de ler (50- C4/P2)

Extractos puros da comunicação de Stanislav Oreky, poeta Estónio, traduzidos do original por Eurico Tudela Eleutério, especialista em cultura Estónia em geral e especialmente em Nwhorbh Nhad, escritor Estónio/Letónio transsecular, várias vezes quase-candidato ao Nobel, que permaneceu obscuro até aos nossos dias.
"Meus caros amigos da Literatura Inclusa. Tenho dedicado a minha vida, e especialmente a última década, a um sonho que tive ainda jovem, uma espécie de visão transcendente que me revelou a utopia de um dia, num futuro improvável, podermos ler um livro sabendo à partida que era literatura inclusa, isto é, boa e recomendável, saudável, sustentável, que não agredisse o ambiente nem fosse prejudicial ao bom entendimento dos povos. Na altura do meu sonho o meu país estava ocupado e os meus adversários afirmam hoje que eu só me preocupava porque estava em causa a minha liberdade. Quando lancei em 92 o meu livro «Frágeis são as estrelas», fiz questão de o acompanhar por um documento passado pelo Instituto Estoniano de Qualidade (IEQ) em que se garantia que todos os materiais utilizados, incluindo as palavras, estavam isentos de cloro, amianto e derivados tóxicos do benzeno. Essa atitude foi considerada revolucionária por uns e ridícula por outros. Penso hoje que foi as duas coisas ao mesmo tempo. Porque há vinte e quatro anos ainda não sabíamos nada sobre os perigos da literatura. Foi por isso uma atitude revolucionária devido ao seu carácter introdutório e foi uma atitude ridícula porque mostrou a minha ingenuidade sobre a diversidade de perigos que rodeia a LI.
Outra inovação que acompanhou «Frágeis são as estrelas» foi a edição conjunta de um manual de instruções. Se para a maioria dos livros é recomendável a existência de um manual que possa dar acesso ao bom entendimento das intenções do autor, de maneira a não gerar interpretações dúbias, para um livro de poesia esse manual é absolutamente indispensável. Seja como for nenhuma destas atitudes teve seguidores. Continuo a ser o único autor que, preocupado com a LI e com os leitores, associa a cada obra nova os elementos necessários ao cumprimento de normas que o futuro tornará elementares.
A generalização da protecção do consumidor vai levar, mais tarde ou mais cedo, à criação de organismos de protecção dos leitores. Eu sei que essa não é a função deste congresso que reúne essencialmente os produtores de LI. Mas devemos antecipar-nos às exigências dos leitores. Devemos estar um passo à frente. Devemos ser nós a definir os paradigmas. Temos sabido adivinhar estes anos todos as tendências da moda literária e propor, com bastante sucesso, LI capaz de despertar o entusiasmo dos leitores actuais. Temos também de ser nós a antecipar as exigências que o leitor nos vai fazer no futuro."

(continua)

Torcato Matos