terça-feira, outubro 31, 2006

A dificuldade de ler (70- C6/P4)

Nem sempre estamos preparados para a violência. Sabes bem que eu nunca estou preparado para a violência. E naquele sentido que tu costumas usar - e que eu manifestamente herdei - de dar às palavras a oportunidade de se revelarem, estou a ver-te a chamar a violência por um nome belo de uma mitologia qualquer, que os gregos ou outros trastes velhos que te viessem à memória, tinham adoptado para dar vitalidade a uma acção de contraste máximo. Pois eu vejo a violência como qualquer acto inesperado, qualquer coisa para que não estamos preparados, tudo o que destrói um cenário arduamente construído. Esta comunidade violentou-me ao primeiro contacto através de um cumprimento desajustado da minha necessidade. Matou no instante inicial a minha boa vontade. Liquidou com um golpe seco toda a minha ilusão.
Só te digo isto assim porque o teu olhar cáustico está ausente. Se estivesse aí ficaria silencioso como sempre, à espera ainda assim, com um peso de ansiedade permanente, de um comentário exagerado sobre as coisas mais normais e comuns do mundo. Esta distância é boa por isso. Sei que estás aí, e posso discorrer sobre as minhas dificuldades sem ter que ouvir o eco dramático que as coisas simples, os sentimentos claros, parecem ganhar quando frequentam o teu entendimento castrador.
O meu primeiro impulso, hoje de manhã, depois de ouvir a miserável saudação, foi entrar outra vez em casa, fechar-me e morrer aqui de fome e de sede na esperança de que ninguém desse pela minha falta ou sentisse o meu cheiro. E sabes porque não o fiz? Por vergonha. Exactamente, por vergonha. Tive mais medo de fugir do que de enfrentar. Eu sei que é a tua velha treta: substituímos um medo por outro; o corajoso é aquele que tem um medo oculto mais forte do que o medo visível. Eu tive medo que sentissem que eu tinha medo e por isso atravessei a rua, com as lágrimas a quererem rebentar e segui em frente como se soubesse para onde queria ir, dando a impressão de que tinha um destino e para ele teria que avançar de imediato com resolução e vontade.
Várias pessoas me saudaram. Homens e mulheres: em todos o mesmo injusto bom-dia a que fui respondendo com a voz a sumir-se. A seguir, perdi-me. O meu olhar estava de tal maneira posto em mim que não percebi os caminhos que tomei e os passos automáticos levaram-me para onde as escassas casas já eram nenhumas. Alguns passos ainda dei na hesitação de alguém perceber que me encontrava perdido - estranho paradoxo este que cai assim de me encontrar perdido - e só depois, seguro de que ninguém me via, inverti a marcha na esperança de que a minha intuição me devolvesse ao meu novo lar, à minha nova pátria.
(continua)

Torcato Matos

Seno de Pi

Se não tivesse dentro de mim uma cidade;
Se ao redor do rosto se não construíssem castelos;
Se nas nuvens altas não houvesse o vislumbre opaco da beleza;
Se por contar o verde da montanha não houvesse emoção;

Se na tarde outonal os homens não marchassem inclinados;
Se no perdão das sementes não estivesse pendente a vida;
Se, ao largo do horizonte, o chapinhar ousado das aves se esquecesse da óptica ilusão;
Se no lato senso do saber se não contassem semelhanças;

Se na pausa alegre do café se não bebessem muralhas;
Se durante o amor não se fizessem promessas;
Se oculta nas árvores não estivesse a sabedoria;
Se em cima da mesa não se sentisse o frio da lâmina;

Se no olhar ausente não estivesse também o devaneio;
Se por detrás da escada se não subisse ao contrário;
Se o universo não estivesse todo amortalhado no vácuo;
Se as forças da natureza não fossem as mágoas da prisão;

Se o imenso céu não fosse perdido todo em tempo;
Se à sombra da nogueira não se contassem histórias;
Se pela brisa da tarde não ecoassem os vestígios do medo;
Se o canto das aves não se perdesse na dureza da infância;

Se pendurados na certeza não estivessem o ódio e a ambição;
Se sentado à beira do rio não se ouvissem as sirenes;
Se no corte seco da carne não se ouvissem os ais adormecidos;
Se o beijo dado na boca do desejo não fosse um filme;

Se a pátria onde me acolho tivesse um tecto alto e confortável;
Se à beira do precipício não sentisse a atracção do vazio;
Se na prosa árida de quem escreve não se escondesse o desejo;
Se ao pintá-la de fresco a realidade mudasse;

Se na dádiva do tempo o pêndulo rodopiasse uma vez;
Se ao acaso dos sonhos se juntasse alguma vez a satisfação;
Se os olhos pudessem ver algo mais que sombras;
Se o medo servisse apenas para assegurar a sobrevivência

Então, hoje, talvez não quisesse dentro de mim uma cidade.

Artur Torrado

Posttreze

Há muito tempo que não te falo de amor. Reparei há dias que a palavra, sem que se gastasse, se tornou ausente das frases, dos períodos, dos textos e das conversas. Reconheço-lhe uma ausência que não é notada como nas coisas que, por uma razão, ou outra, ou nenhuma, perdem popularidade e deixam de andar nas bocas do mundo. Voltam à memória por razões de acaso ou por nos lembrarmos que já não nos lembramos delas durante os inventários das inexistências.

Há muito tempo que não falamos de amor. Dei conta porque no desuso das palavras elas ecoam como lacunas e cria-se no espaço um vazio de uma leveza inverosímel. No princípio era o verbo que conformava a acção; saíam do desejo os sons articulados em voz activa e flutuava no ar a insistência dos sentidos, e o que se dizia era, mesmo quando não era, a firmeza intransigente do amor.

Há muito tempo que não se fala de amor. Foi o que eu senti quando li sobre expectativas que já não esperavas serem as expectativas que tinhas esperado. Pensei que tinha a ver com a ausência de palavras que soubessem dizer de outro modo o que o corpo já não sabe. Mesmo que o corpo ainda conserve a memória do que perdeu e já não é, nem nunca foi, mais do que expectativa.

Há muito tempo que não te digo amor. Lembrei-me agora ao tomar o café: “amar é a melhor coisa do mundo” está escrito no pacote de açúcar que eu devia dispensar mas continuo a colocar na bica. O doce de uma palavra que fica na boca a dar prazer enquanto atiça as bactérias que desintegram os dentes. Doce que é amargo antes e a seguir, para que tudo se sinta renovado na dinâmica da conquista permanente.

Há no tempo que passa, entre o sóbrio e o sombrio, entre o temor e o tremor, entre o dom e a dor, finas teias de ligação, entre o eterno e o etéreo, entre o prático e o apático, entre o saber e o sabor, que levam os olhos, entre o ver e o viver, entre o crer e o querer, entre o durar e o dourar, para os lugares solitários, entre o vento e o evento, entre o passo e o compasso, entre o cais e o caos, onde se criam amarras, entre o sólido e a solidão, entre o ético e o frenético, entre o mítico e o místico, a coisa nenhuma, entre o vácuo e o vazio, entre o oco e o seco, entre o mérito e a morte...

Aibieme

segunda-feira, outubro 30, 2006

Pérolas (XXI)

O terceiro estado da matéria colectável.

A dificuldade de ler (69- C6/P3)

Quando cheguei, ontem à tarde, a estação estava vazia. Ninguém mais desceu nesta paragem e provavelmente o comboio nem pararia se o revisor não soubesse que havia um passageiro com este destino. É certo que chovia. Mas isso até poderia ser razão para haver gente recolhida no átrio sombrio. As bilheteiras estavam fechadas como se fosse evidente que ninguém irá ter vontade assim de repente de sair daqui. À frente da estação um largo escorrendo alguma água e espaço aberto até uma distância exagerada. Na cidade os lugares estão mais próximos. Não nos falamos mas gostamos de estar em colmeia a fingir que não pertencemos uns aos outros. Aqui há uma estranha segurança como já te disse. As casas ficam a uma distância assinalável umas das outras, dando tempo à terra de ser visível. As indicações que me deste foram milagrosas. Suponho que estas horas todas depois ainda não teria encontrado esta casa que me foi destinada. A chave que trouxe e que agora guardo como um talismã, tirou-me a última dúvida sobre o meu novo refúgio. Gostava de te descrever esta casa mas ainda não olhei bem para ela. A mala pesava e cheguei demasiado cansado para me pôr a vasculhar os compartimentos e a procurar vestígios de anteriores habitantes. Tu tinhas-me recomendado que não trouxesse livros. Mas eu já não sei se as tuas recomendações são bondade ou ironia. Como sabes que faço questão de não seguir os teus conselhos, às vezes já me parece que me dás os conselhos que queres que eu não siga. Seja como for vim carregado de livros. Metade do peso eram livros. Trouxe tudo o que sabia que em condições normais me recusaria a ler. Tudo o que é aborrecido como a morte. Não te rias. Vejo perfeitamente que te estás a rir.
A esta distância não é importante o que penses. Para todos os efeitos agora estou por minha conta, e se te faço saber estas coisas sobre o que se está a passar comigo é agora porque ainda não criei raízes e ainda não sei o que fazer ao tempo. Brevemente deixarás de saber de mim apesar de me parecer que é isso mesmo que queres. Não deveria ter-te dito atrás que não tenho grandes expectativas sobre o que virá a seguir. Por uma questão de orgulho. É-te indiferente o que eu espero ou não. Mas não quero ir por aí. Não me interessa o que pensas. Ponto final.
Foi esta manhã que ouvi lá fora as pessoas a saudarem-se com todo o entusiasmo. Pareceu-me bem. Animou-me. Achei que tinha chegado a um lugar em que as pessoas se conhecem e reconhecem em vez de se temerem. Fiquei contente de aqui estar e preparei-me com cuidado para sair à rua e dar uma primeira impressão agradável, sem estrondo, sóbria. Houve mesmo um instante - daqueles que resultam da tensão natural - em que admiti que tinha todas as condições para vencer muito rapidamente. Posso dizer-te - porque aqui a esta distância não verei o teu olhar sarcástico - que fui capaz, num relance, de me ver já num futuro bem sucedido e mesmo brilhante.
O que me destroçou foi o tom. Um tom monocórdico de bons-dias dados como que mecanicamente. Foi uma verdadeira martelada no sorriso franco com que saí à rua. Logo aqui, ali à porta, a primeira pessoa que passou, quase sem olhar para mim, disse aquele bom-dia mortal.
(continua)

Torcato Matos

sexta-feira, outubro 27, 2006

Pérolas (XX)

Escrevendo direito por linhas tortas: a lei é dura mas é a lei!

quinta-feira, outubro 26, 2006

A dificuldade de ler (68- C6/P2)

Bom, mas isso era o que eu tinha pensado para mim próprio. Ou pelo menos é o que hoje penso que pensei na altura. Embora tenha que reconhecer que não me recordo com precisão se esta ideia me surgiu já aqui, quando a minha imaginação se sentiu defraudada pelo tédio e pela estranha vontade dos autóctones de olharem para o pormenor dos hábitos de quem chega de fora.
Não sou do meio. Estou aqui mas num certo sentido estou expulso. Não sei se te apercebes do que é estar num lugar e sentir que os que estão à tua volta te consideram um estranho. Faças o que fizeres o teu movimento será sempre rudimentar, incapaz de pertencer à harmonia de gestos do grupo. Eles, ao contrário de mim, conhecem os segredos que se foram aconchegando com o tempo à alma que os faz uniformes. Digo eu que conhecem, porque os observo de fora e me parecem mover-se com à vontade na irregularidade medonha dos caminhos, como se estivessem perfeitamente seguros, como se tivessem uma ciência própria capaz de interpretar as mais difusas ameaças.
Não quero que sintas, nem por instantes, que me pretendo colocar num patamar superior. Nem por sombras. Conheces-me, mais depressa faria precisamente o contrário. Mas aqui estou com um objectivo claro de ser justo e ao mesmo tempo consciente da habilidade do tempo para me surpreender. Este não é o meu meio e temo - temer é uma palavra exagerada - que faça o que fizer nunca virá a ser. Não será aqui que algum dia me vou sentir em casa.
Eu sei que me disseste que não me seria proveitoso sentir-me bem num lugar. As tuas teorias do desequilíbrio contínuo - que tu sabes bem me aborrecem continuamente - só fazem sentido ditas à mesa de um café, e mesmo assim depois de um almoço devidamente regado. Dirás - sei que dirás - que é nos meios hostis que as habilidades se revelam. Que é a ter adversários que se aprende a lutar, e outras barbaridades do mesmo calibre. Mas isso é aí no teu lugar onde ninguém te hostiliza e onde te sentes sempre em casa e com as costas quentes. Além disso, aqui ninguém é contra mim. Nem contra nem a favor. Indiferença pura.
Também sei que já estás a pensar que o que me perturba é ignorarem-me. É verdade que para eles eu não existo. Estou aqui mas não existo. Toleram-me, embora eu não saiba dizer a que poderia assemelhar-se um sinal qualquer que demonstrasse que não me toleravam. Sou eu que sinto que me toleram porque não sei dizê-lo de outra maneira. Não há nenhuma manifestação evidente de rejeição. O que eu queria dizer é que a maneira como me dão os bons dias é diferente da que usam para se saudarem uns aos outros. Isso faz-me sentir como não pertencendo ao meio. Tão simples como isto.
(continua)

Torcato Matos

quarta-feira, outubro 25, 2006

A dificuldade de ler (67- C6/P1)

Capítulo VI (mono)

Sabes? Eu não sou do meio. Não respondo pelos mesmos nomes, não dou os bons dias aos da terra sem que eles o façam primeiro porque nem sequer sei se são da terra ou se são de fora. E eles dão muita importância a ser da terra. E quando me dizem bom dia é porque são da terra mas sabem perfeitamente que eu não sou de cá e por isso os bons-dias que me dão não são iguais aos bons-dias que trocam entre eles. As diferenças na entoação, no calor da voz, na firmeza que substitui o canto habitual. Eu sei que é assim porque os ouço trocar os bons-dias quando ainda estou em casa a fazer a barba e eles passam uns pelos outros do lado de fora da minha janela. Falam alto para que todos saibam que se cumprimentam uns aos outros com benignidade e se aceitam e frequentam as mesmas ambições há muito tempo.
Eu não sou do meio. Vim aqui parar por acaso, por força de determinações que me ultrapassam, o que para todos os efeitos tem o mesma importância que o acaso, o puro acaso. Também isso ajuda a que eu não seja do meio. Poderia ter acontecido ter aqui vindo parar por razões de vontade. Poderia ter um desejo há muito escondido no meu interior de vir para este lugar. Mas não foi o caso. Eu apenas tinha uma ideia muito ténue acerca desta existência e nem me passou pela cabeça tentar saber antecipadamente os lugares onde poderia ir parar, para antecipadamente me ir informando e até, quem sabe, começar a desejar estar em algum dos lugares possíveis. Por isso este lugar era como outro qualquer dos que eu não conhecia nem tinha, reconheço, nenhuma vontade especial de conhecer.
Isto aqui não me diz nada, sabes? Claro que cheguei a desejar estar num lugar vago. Mas nunca me parece que tenha sido este. A imagem que eu tinha na cabeça sobre o lugar para onde deveria ser mandado era muito incipiente, talvez um estereótipo daqueles que resultam de algum filme visto na infância ou de uma imagem que se tenha imposto num momento qualquer. Ou uma colagem. Isso, uma colagem de memórias, uma manta de retalhos a fazer de meu lugar futuro. Mas nenhum dos recortes dizia respeito a este lugar. Acho que não me passou pela cabeça que as pessoas dessem os bons-dias umas às outras todas as vezes que se cruzassem. Não isso não acontecia no meu lugar imaginado.
Também não tenho a certeza de no lugar que imaginei haver pessoas. Não que não houvesse lá pessoas, claro que havia, não faria sentido que um lugar fosse lugar se não tivesse pelo menos as pessoas necessárias para o chamarem pelo nome e lhe darem dignidade dizendo a quem as quisesse ouvir que pertenciam àquele lugar. Portanto, o lugar que eu imaginava tinha pessoas, mas não apareciam na minha imaginação. Não estavam à vista. Acho que é fácil de perceber quando as pessoas, ainda que imaginariamente, não querem aparecer. Pessoas tímidas que não se mostram. Ficam a espreitar pelas frinchas das janelas e pelo intervalo dos cortinados, mas não as vemos.
(continua)

Torcato Matos

terça-feira, outubro 24, 2006

Pérolas (XIX)

A magia de ouvir música sem ligar o som.

O travão intelectual

"... em Portugal não é possível ter uma boa discussão - nem sequer entre amigos. As pessoas fogem do confronto, sentem-se mal perante as diferenças de opinião e levam as opiniões tão a peito que sentem as diferenças como afrontas que ferem os sentimentos mais do que excitam a razão e que podem danificar amizades sem com isso aprofundar a verdade."

José Victor Malheiros no Público de hoje e desviado para aqui

segunda-feira, outubro 23, 2006

Vítimas

É verdade, talvez só me interessem as vítimas. Os vencedores, os degoladores, os que gritam da sua genialidade e da sua ligação especial a Deus, os que militam nos privilégios de que gozam e gozam dos privilégios que têm e que fazem com isso poses grotescas e incham a ponto de pensarmos que vão rebentar, esses, esses não me interessam.

Também não sei dizer a que ponto me interessam as vítimas porque não me interessam por serem vítimas. As vítimas apenas me interessam pelo facto de não conseguirem deixar de ser vítimas. É provável que me veja ao espelho e o reflexo me cegue. E logo a seguir pense que estou no meu lugar e poderia estar noutro lugar se tivesse querido ir à procura dele e soubesse enfrentar com a violência necessária os artifícios escabrosos da guerrilha.

É inevitável falarmos de nós próprios. Não me dói nenhuma esperança nem gosto de coisas insossas como solidariedade e outras palavras ainda mais compridas. O medo é simples; a solidariedade enrola-se na língua e fica sempre com uma parte comida dentro da garganta. Interessam-me as vítimas para tentar perceber porque suportam a dor em vez da morte. Porque ficam à espera sabendo, e eu sei que sabem, que nada vem a seguir a não ser tempo e mais tempo de sofrimento.

Há sempre uma vítima a abençoar a glória de um vencedor. Não uma vítima mas várias, porque estas coisas medem-se pela quantidade. A qualidade de um vencedor mede-se pela quantidade de vítimas que provoca. O riso é tanto mais profundo quantos mais forem os súbditos que se rendem ao ridículo.

Por detrás de um homem de sucesso estão, a grande distância, é certo, um punhado equivalente de miseráveis a quem, evidentemente, faltou o querer, a inteligência, o génio, a ambição, a educação, a força e a ganância pare reter junto de si o pouco a que tinham direito.

O interessar-me pelas vítimas, e como já disse nem é bem pelas vítimas mas pelo que as leva a ser vítimas, não quer dizer que goste delas. Não gosto delas nem mais nem menos do que dos abutres que as comem - sem querer ofender os abutres cujo carácter a ciência tem aos poucos reabilitado.

E quando falo das vítimas que me interessam, ou desse jogo estranho que leva as vítimas a procurarem a dor e a encaminharem os seus corpos ordeiramente para a deglutição macabra dos poderosos, refiro-me às vítimas mesmo e não àquelas que soltam queixumes estridentes por estarem ainda na escalada ascendente da usurpação e se sentirem por isso injustiçadas pela lei e pelos que as atiçam.

Este passatempo não tem limites. Depois de um ardiloso comedor morrer, vem outro que lhe fica com a carcaça e nos ombros dos seus iluminados amigos há-de subir ainda mais uns degraus na escala da filantropia. Há dois tipos de degoladores: os que se fecham no silêncio dos seus castelos onde não chegam os rumores pesados da carnificina e aqueles a quem o sangue ferve com mais vigor perante a visão ululante da chaga aberta.

Beatriz Teresa

domingo, outubro 22, 2006

Descolagem

Terapia de grupo

"Hoje não é um bom dia para perceber como isto funciona. Sempre que há futebol, são poucos os doentes. Devia ter vindo a uma segunda-feira..."

Público 22/10/2006

sexta-feira, outubro 20, 2006

POLÉMICA !!!

O Jakim está contra o sim!

quinta-feira, outubro 19, 2006

Desconhecido

Às vezes fico a pensar como seria se eu gostasse das mesmas coisas que é costume dizer que se gosta. Andar pelos mesmos lugares que é costume andar. Ver os mesmo filmes, ler os mesmos livros - aqueles de que todos falam dizendo que gostam muito ou pouco, tudo ou nada. Fico a pensar que seria interessante poder também dizer que segui exactamente os mesmos passos que alguém recomendou; alguém por quem todos temos muita consideração e nós mesmos recomendamos aos outros, assegurando-lhe que perdem muito em não saber desse lado da realidade que toda a gente conhece. Como seria se também eu fosse àqueles mesmos lugares ver aquelas mesmas exposições, mostrando o meu assentimento e a minha discordância, falando alto e bom som de como era irrespirável um determinado autor e outro, meu Deus, indispensável, absolutamente indispensável. Dizendo, portanto, do meu gosto e da minha sensibilidade pelas imagens que fluem e fazem este lugar onde me encontro e onde me movo. Se eu gostasse das mesmas coisas que os outros gostam e as seguisse pelas mesmas razões e pelas mesmas faltas de razão, pelas mesmas emoções, à espera de uma ressonância idêntica, ouvindo os mesmos sons, vibrando nos mesmos espectáculos, fazendo assim comunidade, comunicando, passando a impressão de estar em consonância, ainda que por vezes discordante, mas alinhada no fundamental de ter uma espécie de mesmo Deus e mesma liberdade.

Às vezes fico a pensar como seria se não me desse esta preguiça de pegar em livros aparentemente esquecidos e que eu também não quero que mais alguém leia e levo para casa com a capa voltada para dentro receoso que de repente algum jornal, alguma rádio, alguma televisão, algum ministro cultural, reclame a sua essência de obra prima e quebre o encanto de estar na presença de um inútil que não foi capaz de vender adequadamente o que escreveu, nem antes nem depois de morto e ficou, por isso, à margem, dispensado da grandeza exuberante do número, recolhido à intimidade da inexistência. Fico a pensar como seria se não fosse este egoísmo de ficar frente ao mar a ver ondas únicas e a escutar-lhes o rumor estando à minha volta o deserto de uma praia fria onde não se aventuram os lugares comuns e as certezas absolutas. Se não me desse esta preguiça de não querer ouvir outra vez as mesmas razões porque um vinho, ou preciosidade do mesmo calibre, que nasceu atrás da protecção de uma marca e colhe a benção de uma autoridade, é tão melhor que outro que foi pisado na pequenez de um segredo familiar.

Às vezes fico a pensar como seria bom que tivesse na minha infância e na minha adolescência e na minha juventude e mesmo depois, estado atento àquilo que foi a marca de cada época, e tivesse visto, lido e ouvido os marcos e as marcas que foram eleitas, e tivesse absorvido os mesmos clássicos e as mesmas ideias e os mesmo padrões, e tivesse, no fundo, passado pelo lugar certo à hora certa, em vez de ter perdido o meu tempo a ver, ler e ouvir, objectos absolutamente inconfessáveis, irremediavelmente desviados do significado activo do meu tempo.

Às vezes fico a pensar que não sei estar aqui com a atenção necessária para perceber a importância dos mestres e a polidez dos seus gestos. De facto, que adianta andar por andar sem ter em mente a mágica função de ser luz? Às vezes fico a pensar que não sei ainda o elementar para perceber sequer a importância daquilo que é importante.

Artur Torrado

quarta-feira, outubro 18, 2006

Requerimento

Eu, abaixo assassinado, venho por este meio requerer aquém e além mar de gente vulgar mente com os dentes postiços todos os dias santos e domingos de ramos altos castelos, verdes e amarelos canários na gaiola das malucas mulheres perdidas em série e mulheres sérias perdidas no labirinto de Creta novas leis para abortar o pensamento que o machado corta pela raíz cúbica no volume elevado do som da voz do dono da bola azul cobalto está alto mora todos o vêem e ninguém o atura a gemer imprecações sobre o futuro e o passado desastrado em partes de leão na selva de cimento armado cavaleiro para libertar a avenida de Ceuta das convulsões mecânicas e satânicas sublinhadas com marcador verde eléctrico no Cais do Sodré e não te magoas por levares capacete de aço inoxidável adaptável à evolução dos tempos mortos das pausas para o café esplanada nicola com erros de português e de castelhano a comprar uma aljuba rota por tuta-e-meia volta-volver e devolver o que é nosso a quem não tem nada na profundidade da barragem de fogo preso à lei contra os incêndios das escadas e das almas-penadas e dos corações ao lado esquerdo de quem vê de frente para os olhos de água salobra de santa Engrácia no Carmo ou na Trindade divina da vinha e do vinho que faz uma civilização e depois se corrói com outras drogas estranhas de psicotrópicos ilegais como os imigrantes que chegam como nós carregados de ilusões e ficam satisfeitos com a sopa dos pobres por se estar bem aqui a sobreviver como quem aprende a não ter que saber mais do que a conta da água e da luz e do dinheiro que falta para um euro por dia ou um dólar, tanto faz para atravessar o limiar da fome que acorda o impulso que há em si de investir na bolsa e na energia e na diferença que faz a indiferença perante o movimento uniforme que mente acelerado no vácuo absoluto do Deus único e de serviço permanente sem horário de trabalho e de descanso, tirando um escasso dia em toda a eternidade e é pouco para quem se levanta cedo e não se deita, não chega, anda cansado, deveria tirar férias a alguém, passar uns tempos noutro universo paralelo que pudesse dar-Lhe descanso eterno e ideias brilhantes e com a experiência adquirida fazer nova tentativa, com novos modelos, mais sofisticados, mais ousados, menos agachados às instâncias do poder e menos passíveis de corrupção e de medo e não sei que outras coisas porque a minha profissão, graças a Deus, é não ser Deus e, por isso, não tenho que pensar nem no meu futuro nem no futuro inebriante dos outros que estão aqui ao lado e, por enquanto, não sei quem são nem o que querem, admitindo que querem alguma coisa mas, admito, tem sido difícil chegarmos a um acordo e por isso o melhor é dormir pelo que peça de ferimento.

Prólogo

terça-feira, outubro 17, 2006

Postdoze

Houve um momento em que citaste, há muitos anos, com cínico prazer, que o amor é eterno enquanto dura. Eu, que ensaiava impossíveis, e tinha o desvario do rigor, não fui capaz de encaixar uma frase tão fora do contexto. Sei agora que te protegias das surpresas, como entretanto me apercebi ser comum entre as pessoas racionais. Se não tivesses vinte anos e, digamos assim, cumprisses os primeiros passos na hipótese do amor, talvez se justificasse a insistência no jogo defensivo. Mas a tua preocupação, a tua desconfiança, era sobre o que fizera eu nos cinco anos que tinha a mais e que, mesmo assim, não eram suficientes para me colocar à altura da tua sobriedade imaculada.

O tempo mostrou-me que as frases precisam de um contexto. Sorrio, com a minha própria ironia, quando vejo livros que reúnem frases famosas de gente famosa e as colocam à disposição do leitor preguiçoso comum que assim se municia sem tem que passar pelos caminhos agrestes da aventura de ler. Essa parece ser a nossa época: deixar que outros extraiam da ganga as pepitas e no-las sirvam em bandejas de comida rápida. Como contestar a benignidade do projecto? Negar apenas porque em dado momento fomos derrotados por um atirador furtivo de frases cínicas?

Surpreendem-me sempre as pessoas cheias de certezas. Umas agarram-se a deuses capazes de todas as respostas, outras aos objectos soltos que vão dando movimento aos dedos e às ilusões. Perante eles o nosso ponto de vista é sempre indefensável se não tirarmos partido de alguma forma de crença que sustente a parte imponderável da racionalidade.

Levei anos até aceitar que o amor só é eterno enquanto dura. Foi já no ocaso, quando já não era sustentável aceitar os precipícios que rondavam as tuas certezas. Só percebi quando já não havia no discurso da casa uma palavra que fosse minha, que não tivesse sido emprestada de fora para soletrar com cuidado o estranho equilíbrio dos afectos. Dei por mim e a eternidade tinha acabado; o tempo tinha-se esgotado e percebi que isso tinha acontecido anos antes de ter dado conta.

Desde então tenho tentado perceber o que mata o amor. O que torna efémero o que era para ser definitivo. O que retira dos corpos o prazer da cumplicidade. O que contamina, como uma bactéria, a suposta ligação entre dois seres.

Provavelmente já sei. Mas estou à espera que o tempo que passa me permita aceitar a volubilidade pragmática das células a sobrepor-se à dedução razoável de serem preferíveis duas derrotas a uma vitória.

Aibieme

sábado, outubro 14, 2006

Pérolas (XVIII)

Esta promoção do Windows Vista está brilhante!

sexta-feira, outubro 13, 2006

Pouco

Gosto de ser esta coisa pouca que não tem anseios de universo.
Parar por aqui, pelas curvas apertadas dos lugares sombrios, sem lamentos nem lágrimas, sem poder nem ambição.
Subir todas as manhãs a ladeira que leva ao tal lugar que nada tem.
Pousar o corpo à noite na escura tonalidade da enxerga sem que o sonho perturbe a mansidão do silêncio.

Gosto de pairar sobre a premonição das águas que dizem canções insignificantes.
Voltar alegre da minha dívida, sem temor de me perder em somas que não conheço.
Saltar imune sobre as chamas que dançam lúbricas à espera de gestos perdidos.

Gosto de vogar pela planície, cansado e ébrio, retendo o sono para sentir ao máximo a beleza.
Partir para cada viagem com o lastro apenas das imposições legais.
Sem perfumes nem medos, sem agasalhos nem vícios, sem preces nem sapatos.
Sentar-me à beira do caminho com o sol a pique e o suor a escorrer a pele.
Agarrar o rosto fresco da água que desce densa sobre a carne e a lava.

Gosto de ler nas folhas secas os pormenores do destino e jogar as cartas escritas pelo amor.
Vigiar de longe o prazer verdadeiro das crianças a brincar.
Procurar palavras que saibam dizer bem das coisas que ainda não existem.
Sentir o vento massajar o cabelo e arrefecer as preocupações e os sentimentos.

Gosto de ter este vazio das mãos como riqueza maior e usá-lo para me saciar.
Seguir ligeiro pelo caminho do meu acaso sem temer à frente o falcão da morte.
Entreter-me com o som dos passos a soletrarem ritmos sobre a calçada.
Olhar a noite mais escura à procura de sinais que sobrem da ofuscação do dia.

Gosto de acompanhar a pacífica resistência dos anos com gestos suaves e prudente entendimento.
Virar as páginas do caderno que comecei a escrever na infância.
Beber o café de aroma puro que traz de África o sabor e a excitação.
Antecipar o desejo e o gosto daqueles que conheço porque amo e que amo porque conheço.

Gosto de, no auge da subida, quando o esforço já ultrapassou o seu próprio limite, soltar, contra vontade, a esfera empedernida, e acompanhar a catástrofe da queda com o grito rouco que solta, enfim, do interior do corpo o milagre do reconhecimento.

Sísifo

Flores

Há flores, claro que há flores. Regam-nas todos os dias com a mesma persistência com que colocam um passo à frente do outro, na vã esperança de chegarem a andar ou, melhor dizendo, de chegarem a mover-se do interstício voraz onde caíram. Iluminam as fortalezas para que de longe pareçam monumentos e nem ocorra a quem passa, perto ou longe, o instrumento de tortura que foram. Ou por isso mesmo. Um dia se dirá que um monumento é ou foi em alguma idade um instrumento de tortura. Parece que não gostamos da tortura apenas quando está a ocorrer desperta e inteligível à frente dos nosso olhos quase abertos. Há espanto e há terror e há nojo. Os arquitectos que arquitectaram o monumento e que são os heróis que transcendem os heróis que utilizaram o monumento para se torturarem ou torturarem outros, num apego amador de profissionais do sofrimento, têm a honra de se anunciar como substitutos de Deus na terra. Dizem eles que desenharam antes de ser possível pensar aquilo que tinham pensado. Mas deram à beleza uma função. Neste lugar hão-de ficar retidos corpos que serão incapazes de ser livres. E terão tido um sorriso de vitória, os arquitectos, ao pensarem: daqui ninguém sai vivo. Tinham planos os arquitectos para se agradarem da beleza que podiam dar às pedras e ao mesmo tempo tinham planos de agradar a Deus - Aquele em vez de quem eles estavam - e ao mesmo tempo agradar a quem mandava, mais que Deus, menos que Deus, quase tanto como Deus, ou que, às vezes, se fazia passar por Deus. Não tiveram dó, os arquitectos, de fechar os caminhos a quem queria passar para ser - já não digo livre - decentemente visitado pela morte. A parede mais grossa, a que cercava a toda a volta o lugar dos imóveis, era inicialmente para reter seguros os que eram livres. Lá fora, contra as muralhas, estavam livres os que se queriam apoderar do monumento. Não há lugar melhor para sentir o frio de uma lâmina que o interior enegrecido de uma sala monumental. Nas paredes podem ser feitos os sinais mais enigmáticos que isso não tirará à dor o seu sentido inútil. Mas mesmo assim é bom que o desenho seja harmonioso para que se conjuguem as formas e todos os sentidos cantem na mesma nota de dó. Com o tempo cresce o afecto pelas pedras sobrepostas. Tinham sido desenterradas de lugares fundos e difíceis. Tinham as pedras, que entretanto aprisionaram, estado presas na profundidade onde um fogo primordial as tinhas esculpido. Pormenores do passado que se perderam por efeito sequencial das gerações de calamidades. Por isso, hoje apenas percebemos a beleza de um gesto que terá sido transformado em pedra metafórica: tempo que se gastou de uma mão que bateu num ritmo certo sobre o núcleo duro da insensibilidade até obter uma forma escondida que desse ao tempo um significado. A fortaleza quer, antes de tudo, interromper a indiferença da paisagem. Aqui estivemos nós e os nossos escravos a marcar no mapa do futuro uma mancha de morte. Mas a morte morreu entretanto. E sobrou o alicerce doloroso que marca a fragilidade de ser. Parece, e digo parece por defeito de voz, que não se consegue encontrar em nenhum destes volumosos embustes mais do que a força geradora do divino acaso. As células vitais organizaram-se para se torcer umas às outras com profissionalismo e arte. Cada vez que a história é contada tem que se começar do zero. Recomeçar, portanto. Não fica na estrutura orgânica nenhum sinal que a contingência não permita. Repetem-se as cenas e é necessário ir aos livros buscar a memória para preencher o vazio bronco de cada guerreiro imberbe. De tudo o que é belo acabam por ser apagados os sinais, assim que o corpo se aquece de medo e violência. Mas há sempre esperança de que, depois de abrigar por muitos anos a dor, a laje fria que define o perfil poderoso, regresse um dia à sua textura de espuma interestelar.

Artur Torrado

terça-feira, outubro 10, 2006

Pérolas (XVII)

Não são muitos mas ainda há quem pense antes de escrever...

Será verdade?

"Cavaco visita prostitutas, sem-abrigo e voluntários de Lisboa"

(diário digital, 10 de Outubro de 2006)

A dificuldade de ler (66- C5/P9)

- Agora ele dorme e eu posso pensar em voz alta que já não o quero, nem quero que ele me queira. Passou o tempo e o que parecia a fluidez plácida de um ribeiro tornou-se em tempestade ameaçadora. Queria recomeçar outra vez. Perder esta vontade de pertença e equilibrar-me sobre as ilusões que ainda tivessem sentido.
- Não sei se posso não pertencer a coisa alguma. Não sei se sou capaz. Há as noites em que a escuridão vem e traz com ela mensagens de significado difícil. Deve ser aí, nessa hesitação de sentido que o desejo de pertencer se materializa. Deve ser aí que se fica inocente e, sem culpa, o gesto deixa de ter razão e parte em busca de movimentos mágicos que justifiquem a continuação.
- Queria estar noutro lugar mas não sei qual. Os passos que dou são destemidos à luz e recolhidos quando as nuvens aparecem a negar o avanço da minha mão. Ele não percebe o que eu quero. Tal como eu. Mas era esperado que por ser diferente me dissesse o caminho, que soubesse outro termo para chamar ao sagrado, que soubesse não ter o mesmo medo que eu.
- Quando vim de boa vontade, quando cheguei para trazer o riso que ainda sobrava nos meus lábios, quando assomei à entrada do rectângulo onde se iria travar a batalha, estava tão certa de saber que era assim como agora estou em querer que me enganei de uma maneira ingénua e infantil. Por que é assim o soletrar do tempo? Por que temos que repetir a morte todas as vezes que sonhamos? Por que causa os sentidos não ficam apenas atentos à força iluminante do rosto?
- Agora sou perguntas. Os passos que dei em volta do pequeno espaço que me resta não me levaram para fora de nenhum lugar. Fiquei apenas com a difusa luz do dia presa no olhar e, mesmo assim, instalada a dúvida de saber se senti ou sonhei.
- Tudo isto é muito vago. Amanhã deverei acordar a querer outra vez sentir. Tenho que acreditar nisso. Tenho que acreditar que os momentos que me impus não tinham nada de irrelevante e os mistérios que ele procura são tão naturais como a minha sede de viver.
- Mas eu perdi. Sinto que perdi. Talvez não tenha perdido agora mas há muito tempo quando o meu corpo se formou no lugar errado, quando viajei para longe do que já não queria. Deve ter sido aí que as forças se trocaram. Não entendo como foi possível que a minha intenção tivesse derivado tão bruscamente para fora do recipiente que me continha. Mas aconteceu, e quando aconteceu eu passei para o lado das gaivotas e abandonei o bicar rotineiro na terra empobrecida pelas sucessivas secas.
- Pode acontecer que amanhã, quando acordar, o aconchego quente do lume me torne os olhos mais brilhantes e eu não veja e esqueça e nem me lembre de outros caminhos que poderiam não ser este. Pode acontecer que amanhã, ao acordar, eu consiga perceber como minha esta casa e este ressentimento. E aí estarei bem, não pensarei no que poderia estar em vez do que está e estarei outra vez bem, seguindo o caminho que foi escolhido muito antes de eu sequer ter pensado em ser.
(continua)

Torcato Matos

segunda-feira, outubro 09, 2006

A dificuldade de ler (65- C5/P8)

- O teu prazer pelo meu sucesso será tão grande ou maior que o meu. E assim laborarás para que nos meus momentos de incerteza eu continue, e serás o alimento suplementar do meu entusiasmo.
- Sim?
- É assim que a história se constrói. Todo o progresso é a ventania do macho que valentemente se atira contra a impossibilidade enquanto a fêmea mantém a retaguarda e conserva as conquistas. No desânimo do esforço que não é recompensado, é ela que aponta de novo o objectivo e recompõe o ânimo do guerreiro para que ele regresse à lide e consiga nova conquista.
- E isso não acaba? Há sempre mais conquistas?
- Para isso ainda não tenho resposta. Ou antes, tenho duas respostas. O processo de conquista acaba quando se encontra Deus. Mas ainda não sei calcular quanto tempo demora. Por isso não sei quanto tempo dura esse 'sempre' durante o qual há a necessidade de fazer mais e mais conquistas, mais e mais descobertas, mais e mais confrontos, mais e mais massacres. Podemos estar a chegar mesmo à porta de Deus. Mas também podemos estar muito distantes. O caminho já eu sei que é o estudo do pormenor, a especialização, a atenção minuciosa ao particular. Não sei é até onde teremos de ir nessa especialização. Não sei qual é a resolução da imagem.
- Queria deixar aqui um pensamento que tu não ouvisses.
- Como?!
- Preciso de dizer coisas que não quero que tu oiças. Como é que eu posso fazer isso?
- Não te percebo. Eu oiço-te. Enquanto estiver aqui oiço-te. Quando saio não sei o que dizes. Admitindo que falas sozinha. Não tenho escutas se é isso que temes.
- Não. É provável que não tenhas escutas. Referia-me a querer dizer coisas que não te interessa ouvir.
- Neste momento, como sabes, só me interessam assunto relacionados com os meus estudos. Tudo isto é uma perda de tempo. Sabes que eu não tinha que te estar a explicar nada. É uma deferência da minha parte que acaba por soar-te como uma fraqueza. Tudo porque estou há pouco tempo nesta posição de adulto emancipado e ainda tenho alguns tiques de adolescente inseguro. Restos que a pouco e pouco vão desaparecer. Mas fala à vontade. Fala como se eu não estivesse aqui. É provável que hoje ainda dê atenção às tuas palavras. Uma atenção vazia mas ainda uma atenção. É uma fase. Uma fase enquanto não me viro em definitivo e profundamente para a minha reflexão. Sei que a seguir, depois de ter estado a construir o meu meio seguro, vou recolher-me à invenção, vou retirar do escuro as forças que dão brilho ao universo, e aí, a esse oásis da criação, já não chegarão nem as tuas palavras nem os teus desejos.
(continua)

Torcato Matos

domingo, outubro 08, 2006

A dificuldade de ler (64- C5/P7)

- Do que preciso é de terminar os meus escritos para impor ao mundo a boa-nova de haver uma solução.
- A solução final...
- O meu método é a especialização. Enfrentar o pormenor até à exaustão. Não deixar nada ao acaso no campo de estudo a que me dedicar. Isto até parece uma ideia geral mas é muito mais do que isso. O universo é fractal. Dentro de cada pormenor estão todos os pormenores. Dentro de cada ponto estão todos os pontos. Dentro de cada átomo está um universo. Dentro de cada ser estão todos os seres.
- Parte-me o coração a tua honestidade intelectual. Lamento ter que estar aqui a ouvir os teus segredos. Devias guardá-los sigilosamente até que fossem publicados com direitos de autor.
- Repara como uma ideia destas até pode explicar Deus! Temo-Lo procurado no céu, nas coisas grandes, nas estruturas macroscópicas e afinal Ele pode estar nos interstícios dos núcleos atómicos. É o pormenor que interessa. O dado elementar, tão elementar quanto possível, absolutamente elementar. O especialista recolhe-se ao estudo do seu pormenor mais particular e aí fica preocupado em que não lhe escape nada, que nada fique por descrever, que a nada falte a palavra que o nomeia e salva da inexistência.
- Esse Deus achará bem que me tenhas aqui engaiolada?
- Ainda não sei. Mas Ele sabe das minhas boas intenções. Sabe que acima de tudo O quero reconhecer e encontrar.
- Então deixa-me ir. Não estou aqui a fazer nada. Acabaste de dizer que é isso que te interessa acima de tudo.
- E disse bem. É Deus que me interessa acima de tudo. Imagina o impacto que teria eu demonstrar a existência de Deus no mais recôndito do infinitamente pequeno! Isso daria uma visibilidade total à minha investigação. O mundo inteiro está à espera disto. Mas é preciso que percebas que tu és eu. Essa questão nem se põe. Falar contigo é pensar em voz alta. É falar de mim para mim. O teu corpo e a tua alma, a tua memória e a tua imaginação são parte de mim. Eu escolhi-te. Provavelmente isso estava escrito no livro do destino mas para todos os efeitos foi uma decisão minha escolher-te. Se encontrar Deus, como espero, essa será uma das primeiras coisas que Lhe vou perguntar.
- Pergunta-lhe também porque te fez tão cretino...
- Estarás comigo. Poderás fazer as perguntas que quiseres.
- E se não encontrares Deus, deixas-me ir embora?
- Em breve deixarás de querer ir embora. Serás a primeira a sentir o prazer da glória e a não querer trocá-la por nada deste mundo. Em breve pensarás o que eu penso e anteciparás os meus desejos para que eu me sinta bem e seja produtivo e assim possamos viver os dois na nossa perfeição.
(continua)

Torcato Matos

sábado, outubro 07, 2006

Pérolas (XVI)

Um texto de tirar o fôlego!

Insustentabilidade

Para as 'claras em castelo' que consideram eterno o 'nosso' modelo de desenvolvimento, leia-se uma perspectiva que (ainda) não passa na televisão.

A dificuldade de ler (63- C5/P6)

- Vou à tua rua e pergunto por ti. Dizem que tens escrito a dizer que estás bem. Eles mentem a teu favor. Querem esconder-te de mim, mesmo não sabendo onde tu estás. E eu sei que não lhes tens escrito. Embora gostasse que lhes escrevesses a dizer que estás bem, que nunca estiveste melhor. Que te encontras junto ao teu amado e te sentes feliz como nunca antes tinhas pensado ser possível. Era assim que eu gostava que escrevesses para lhes dizeres que estavas o pé de mim. Sei que não é possível agora nem será possível nunca. Mas isso não me impede de o desejar e de o imaginar. Mesmo que não me interesse o que pensam de mim. Pois eu sei que pensam que te foste embora para fugires de mim e da paixão que me trouxeste.
- A tua imaginação é fértil como a tua voz é irritante.
- Não pensaste sempre assim.
- Nem tu me prendeste nunca desta maneira.
- Mas é isso que eu quero: ter-te presa a mim. Para sempre. Ultrapassar os gestos banais e materializar a posse. És minha. És desta casa. Este é o lar que aquele que te ama construiu para ti. Noutras eras terias, pela tua beleza, sido solicitada para as antecâmaras dos deuses. E nem te ocorreria rejeitá-los. Era o destino da tradição. Não se chamava tradição mas vida. Aqui és o que eu disser que és. Não que isso me dê prazer. Também eu cumpro a minha missão.
- As tuas desculpas sempre foram esfarrapadas. Caíste no teu próprio formalismo. Lamento ter sido eu a fazer-te perder a insegurança. Ao acreditares em ti tornaste-te num monstro. A fé é mesmo a mãe de todas as aberrações.
- Concordo que foste tu que me libertaste. Todos os humanos são produto das mulheres que os fazem. São vocês que recriam o passado no presente através dos meios próprios de renovação. E depois amparam os passos essenciais para que a estrutura se segure de pé por si. E esperam que o que criaram se torne forte e poderoso e possa medir-se com sucesso contra os filhos das outras mães. São vocês a génese da violência e da dor. Ainda que teimem em representar a vítima passiva.
- Nunca soubeste tu o que é ser vítima. Apenas corres por pensares que o caminho foi feito propositadamente para o pisares. Nunca olhas para o que tens como uma dádiva mas como um direito. E aceito que foi meu erro fazer-te acreditar que valias alguma coisa.
- Tentas desmoralizar-me Diana. Mas se é assim, fizeste um trabalho bem feito. Agora sou aquele que sabe que é capaz. Já esqueci como era isso de haver estranhos impedimentos nos meus trajectos prioritários. Agora sei que saber é saber bem aquilo que me sabe bem.
(continua)

Torcato Matos

sexta-feira, outubro 06, 2006

A dificuldade de ler (62 - C5/P5)

- O que acontece todos os dias são surpresas. Milagres. Podes chamar-lhes milagres. Sonhos também. Rotinas de embriaguez.
- Porque me prendes?
- Não te prendo. Estás aqui pelo teu querer. Vieste pelo teu pé. Limitei-me a fechar o cadeado que tu colocaste em ti própria.
- Era uma brincadeira. Um gesto de submissão. Uma travessura, uma transgressão, uma tentativa de perversidade.
- Tocaste o meu prazer primordial. Não sei se se pode dizer assim. Claro que pode. Ah! Ah! Ah! Não estou adaptado ao poder. Ainda pergunto o que se pode dizer ou não. Deve haver um limite para a percepção que posso ter de mim próprio. Mas aqui existo apenas porque aqui estás.
- Estou cansada.
- É como imaginar que universo seria o universo sem ter quem olhasse para ele. Existiria na mesma? Não achas fabuloso que o universo tenha engendrado em si consciências capazes de o querer interpretar? Para quê isto tudo? Até para o homem olhar é demais.
- Agora parece-me que o universo apareceu apenas para tu olhares para ele.
- Mesmo que não estivesses a ser irónica não me seduzirias. Sei de quase todos os meus limites. Sei que, por exemplo, és a minha felicidade mas vais ser também a minha desgraça. Dois em um. Hoje sabemos da dualidade onda-corpúsculo. Nada é apenas uma coisa.
- Eu aqui sou nada. Em vez de dualidade sou nulidade.
- Complicas aquilo que é simples. Se me amasses e eu tivesse êxito o meu êxito seria também teu. Eu em glória serias tu em glória por interposta pessoa.
- Por trás de um grande homem uma grande mulher. Começo a conhecer-te agora. Ou talvez esteja a aperceber-me da tua dualidade. Ou da tua trialidade. Ou da tua teatralidade. Ou da tua trivialidade. É fácil rimar em idade.
- Há muitos exemplos na história. É uma prática milenar. Foi assim que o universo evoluiu e não devemos alterar a ordem natural das coisas. Não devemos mexer nos mecanismos internos da natureza, nem perturbar a inércia dos formalismos da matéria.
- Tens medo de quê?
- Não é uma questão de medo. É a sujeição à terra. Somos produto do acaso e de uma ocasião que não se repetirá.
- Que perdes por não obedecer? Que temes perder?
- Eu não temo nada a não ser a ti. Tu é que tens na mão o argumento da minha derrota. Só tu é que me podes fazer frente. Por isso é importante que fiques imobilizada num lugar que passa a ser o teu e a que te conformarás com o tempo.
(continua)

Torcato Matos

quarta-feira, outubro 04, 2006

Sempre

Há quem pense que a montanha a que subo, perdendo-me na dor e na sombra, é o conhecimento.
Seria então a minha vida uma metáfora, um jogo de palavras.
E daí se concluía que a esfera que teimosamente faço rolar montanha acima, nada mais seria que o esforço necessário a todo o saber.
Nada disso é verdade a não ser o jogo de palavras.

Tal como as espécies que não se adaptam, extinguiram-se os deuses há muito tempo.
Inadaptados também, postos à margem, numa memória apenas evocada pelo poder, os deuses saíram de cena abandonando o mundo à sua sorte.

O tribunal que me condenou já não existe.
Caducou juntamente com a esperança e a justiça.
Finou-se por falta de condições de aplicabilidade.

Quem fiscalizaria a dor do condenado?
Quem daria ordem de liberdade?
Quem premiaria os bem-comportados?
Quem enterraria os mortos?

Foram-se embora os deuses com a sua autoridade e levaram também a razão do medo e a força da obediência.
Levaram consigo as trevas mais evidentes e o cheiro inebriante do Olimpo.
Saíram daqui mergulhados no próprio tédio, incapazes de saber o que fazer com tanta força.
Abandonaram os deuses os erros que criaram e esconderam a cara de vergonha.

Eu fiquei o erro que sou.
Cumpro a minha pena como sempre fiz.
Subo à montanha empurrando a esfera e lá em cima deixo-a rolar testando a constância da gravidade.

A minha condenação foi para sempre.
Não é preciso esperar que venha o carcereiro e me solte.
Nada é mais solitário que a eternidade.

Sísifo

terça-feira, outubro 03, 2006

Entretanto

Tretas, dizes tu com toda a razão do teu lado e eu sozinho, aqui, em vez de mal acompanhado como no inferno cheio de boas intenções a empinar o melodrama até a trama das coisas quentes que caem do céu aos trambolhões como a casa em que não há pão nem vinho nem o céu do nosso descontentamento desviado para o lado pela força de segurança regressiva, uma fonte que planeia a todo o custo reservar o lado de si própria para a força oculta que se mostra com timidez cor de laranja ainda verde nas ocasiões mais impróprias para consumo, pontífice de lado a lado como a cobra que se cobre de pele de vaca morta num acidente de viciação consentida e desmaiada da pior maneira virgem de oliveira cruzada sobre a vinha que ia até ao fim da estrada apagada do mapa genético pelas horizontais praias lusitanas prenhes de areais cinzeiros destapados pela gula ululante dos gládios envelhecidos como cascos de cavalos a vapor decididos a revelar a história mal contada e mal curada pela árvore que dos tamancos fez alpercatas dominadas por tudo o que é razão de não ser nem pensar para quê se não sabes o que tens a não dizer, e então porque não, se é assim que todos fazem não vamos agora melhorar o mundo do pé para mão só porque nos apetece por um egoísmo malvado e manipulado por mãos de vime e fui-me embora outra vez desolado, desossado, desobrigado de obedecer à colecção do arquivo central da torre do tombo dado às escuras sobre o planalto uniforme da morte que tudo leva democrática como a prática do aprendiz que tudo faz para não fazer nada e assume perante todos que o que sabe a ele o deve e nunca mais lhe vai pagar porque não tem crédito na banca de jornais onde mais tarde ou mais cedo o lume se apaga em tochas de carvão activado para carbono puro diamante polido e valente de espadas e cardos ordenados ao longo da estrada para pagamento adiantado das folhas de eucalipto que tu, barão somas a seguir ao acordo em que estavas depois de ter adormecido na forma de bolos atrás da cruz quebrada de pedra que nunca mais é desconcertada pelas palavras inconvenientes que ocorrem ou andam de vagar que se vai ao longe na distância da Terra à tua casa com um solteiro velho e rico de intenções de ouro amarelo canário a piar à noite na cadeia de vontades que faz crescer o pão que o diabo comprou no supermercado das fraldas descartáveis de pano de abertura de palco com pó de talco tal e qual como te tinha dito antes de saber que havia um lugar remoto controlado pelo dedo de Deus.

Prólogo

segunda-feira, outubro 02, 2006

Pérolas (XV)

Uma teoria incómoda, incompreensível como um espelho...

A dificuldade de ler (61- C5/P4)

- A preocupação com a intimidade é um dado relevante da evolução. Saber os pormenores da solidão do outro. Aceder aos gestos mais particulares e conseguir tirar daí regularidades, padrões, sintomas coincidentes.
- Podias matar-me já. Escusava este sofrimento.
- A mim interessa-me a essência. O pormenor levado à sua expressão mais atómica. Conhecer os sinais mínimos da interacção entre os objectos mais singulares da natureza.
- E eu? Onde entro eu nessa história?
- Tu sabes, Diana. Vocês, mulheres, têm sentidos que nós não temos e podem aperceber-se das coisas antes de elas acontecerem. E não é intuição. É premonição. Antecipam o tempo e por isso não dão importância à ciência. Não percebem, ou fingem não perceber o esforço que é necessário a um homem para saber as mesmas coisas.
- Continuo sem perceber onde entro nessa história...
- Não discuto contigo. Não tem lógica discutir contigo. Sei, aprendi, aprendi de ti, que não posso confiar nas tuas palavras. Só poderia confiar se me amasses. Assim, nada feito, estamos de lados opostos da barricada. Tenho que exercer o poder como é de regra. Seguir as instruções claras de um corpo que quer sobreviver sem aliados. Tu do teu lado, eu do meu. Tu preocupada em reproduzir os teus genes. Eu preocupado em produzir génio. Tu precisas de mim para te ajudar no teu objectivo, embora o pudesses fazer com qualquer outro. Eu preciso de ti para me concentrar na criação e sei que nenhuma outra servia para esse propósito.
- Sempre te achei um pouco louco mas pensei que fosse uma loucura benigna. Agora vejo que já estás noutra realidade. Já te disse milhares de vezes: não me podes ter aqui presa! Solta-me!
- O especialista entra dentro do seu objecto de especialização e ignora com suprema arrogância todos os outros objectos que não digam respeito à sua legítima obsessão. O especialista constrói o seu sistema sobre a prática rotineira, procurando passo a passo aproximar-se de uma visão total e integrada do seu objecto de estudo. Na realidade, o especialista, consegue transformar o seu mundo pequeno - o seu pequeno mundo - num universo que contém toda a verdade e que é, numa perspectiva literária, a metáfora do cosmos.
- E tu és a metáfora chapada da estupidez!
- Interessa ao especialista unir os pontos do seu quebra-cabeças com tal exaustão que no fim - ou a cada nova e subtil iteração - se define cada vez melhor uma imagem amada, o seu prazer primordial feito matéria, a luz do seu pensamento a brilhar no cristal da obra produzida.
- Não consigo acreditar que isto me está mesmo a acontecer!
(continua)

Torcato Matos

domingo, outubro 01, 2006

A dificuldade de ler (60- C5/P3)

- És louco, completamente louco.
- Quero falar-te do texto que estou a escrever. Gosto de falar sobre ele. Sobre a intimidade e a especialização. Sobre a especialização na intimidade.
- Não quero saber.
- Tens-me ajudado. É justo que saibas como as ideias avançam. És a minha musa. A minha razão de ser.
- Então liberta-me. Deixa-me sair daqui.
- Não é essa a questão. Aqui estás bem. Sei que é o melhor para ti. Só ganhas em estar à minha guarda. Não sei se sabes mas o mundo está perigoso. Durante algum tempo criou-se a ilusão de que era possível converter as mulheres em seres livres. Mas isso foi um erro. Um erro grave e caro.
- Deixa-me em paz. Não te quero ouvir.
- Essa rebeldia fica-te bem. É motivadora. A princípio receei que te acomodasses, que ficasses do meu lado, que cooperasses sem resistência. Tinha a ideia que se isso acontecesse a minha atenção redobraria.
- És uma besta imunda.
- "Mais servira, não fora para tão longo amor tão curta a vida." Deve haver no cérebro uma zona qualquer onde se define a paisagem interior de cada um. Num determinado dia da nossa infância ocorre um disparo que vincula definitivamente a nossa essência a um trajecto repetitivo que transporta um prazer primordial.
- O teu prazer primordial é manteres-me aqui presa.
- Não. Não. De maneira nenhuma. Eu não sei qual é o meu prazer primordial. Nem interessa. Até pode ser contraproducente conhecê-lo. Admitindo que isso pode acontecer. As teorias nascem assim, Diana. Lapsos de luz. Depois podemos passar milhares de anos a dar consistência a esse instante.
- Consegues perceber que eu não tenho nada a ver com as tuas teorias?!
- Ah! Enganas-te! O processo é complexo. Muito complexo. Tinha que te ter aqui para ousar. É preciso um clima especial; condições psicológicas, percebes. Tu és o meu factor de transgressão. Sem estas condições especiais não me seria possível avançar.
- Não tens o direito de me ter aqui presa!
- Vá lá! Não recomeces com esse discurso. Toda a ciência obriga a sacrifícios. Toda!
- Sacrificas-me a mim!
- O conceito de sacrifício é muito complexo também. Já me estou a repetir. E não gosto de me repetir a não ser no meu hipotético prazer primordial. Mas eu posso esclarecer essa questão do sacrifício. Como sabes. Basta que eu me dedique. Basta que eu me dedique. Que eu me encontre a sós com a dificuldade...
- Isso. Encontro a sós. Tira-me daqui. Deixa-me ir. Deeeixaaaa-me iiir!
(continua)

Torcato Matos