terça-feira, novembro 28, 2006

Binário

Às vezes é água, outras vezes é terra.
O sol escurece opaco e não há estrelas e é ainda a água que fala.
De manhã não amanhece mas permanecem alguns indícios do tempo.
Cora o rosto de tensão por não saber que medo ter.
E há um fluido de imensidão a esquecer-se no terreno.
Águas abandonadas ao seu destino, prosaicas de gozo e liberdade.

Sobre o asfalto da consciência crescem árvores de artifício.
Não é carne nem peixe, nem gesto de defesa.
Apenas a hora a mudar para o canto escuro da impressão.
Digo à noite que não sei nada do regresso.
As pálpebras ecoam cansadas, sem destino nem defesa.

Há no meio da multidão quem clame por justiça.
Diz-se a palavra como se diz adeus.
O reflexo de não saber dizer de outra maneira.
A astúcia especial em conformidade com as normas.
Nada é ilegal até que se prove o contrário.
E no meio do caminho corre a serpente à espera do repouso.
Um dia mais.

Na beira do caminho os transeuntes saltitam.
Já não há lugares fora dos eixos motorizados.
O passo certo deixou de ser natural como a sede de água pura.
E há muito ruído.

Ouvi os teus sinais esta noite ameaçadores.
Diziam palavras de fim sem sentido.
Ocasiões de morte sem regresso nem esperança.
Não é relevante encontrar caminhos sem lugar onde ir.
Pousam pássaros à janela.
Procuram migalhas de interesse e penas perdidas.
Não é hoje o dia de dar atenção à modéstia.

Às vezes a água, ás vezes a terra.
A lua hoje não vem escudada na ausência bipolar.
Sempre palavras a substituírem coisas.
E coisas a substituírem factos.
E factos a substituírem pessoas.
E pessoas a substituírem o teu nome.
E o teu nome a substituir-te a ti.
Não venhas então que eu espero.
Esperar-te-ei sempre que não vieres.

Na noite ocorreram incêndios em fábricas de pirotecnia.
O fogo esquecido vem então em auxilio do desejo.
Discutimos depois as razões.
Por agora ficamos apenas adormecidos a ouvir o som caótico das chamas.

Parei à porta do destino.
Não entrei.
Fiquei a pensar na minha liberdade.
Às vezes é água, outras vezes é terra.
Nunca o fogo se ateou na minha frente à espera das surpresas.
Não interessa.
O que quer que faça a seguir não estará no catálogo do hipermercado.

Beatriz Teresa

segunda-feira, novembro 27, 2006

Inundação

Sobre o Cesariny falarei, se calhar, quando ele fizer cem anos. Ou talvez nem isso porque este sobre realismo de que se fala na morte é tão convencionado e tão pterodáctilo que eu à margem já vejo excesso de realismo em tudo. Sorrio do realismo e rio do surrealismo. Realmente. Sorriu o surrealista e riu-se o sul do realismo. Real ou republicano. Laico ou apenas um passo em frente. Não interessa. Não fica bem. Não fica nada bem na fotografia o efeito do esgar presidencial que se mostra depois da morte libertado (afinal quem era esse gajo?) enfim nas mãos dos que sabem o que querem. Herdeiros levantai-vos que há muito dinheiro aqui à volta. O espólio é pouco para tantos mas há-de arranjar-se um lugarzinho à mesa. Ainda a tempo do natal e para não ficares triste compra uma consola e joga até às tantas as muitas vidas que te restam. OK. Têm razão. Está tudo surrealista. A margem inundou a cidade com neblinas e nevoeiros matinais e outros que tais. Ficou tudo submerso mas ele não veio. O encoberto nem veio nem se veio nem teve o veio devaneio de saber o que fazer para não se perder no horizonte. Ano zero da era surrealista. Hoje ou ontem tanto faz. Faz-se um rótulo novo para pôr na garrafa e bebe-se na mesma. Nada é mais puro que o mundo novo que se constrói com uma teoria nova. Ainda não criou excrescências nem teias de aranha e nem sequer arranha a garganta ao falar do futuro que já não pertence adeus. Até ao meu regresso. Hei-de voltar uma noite. Todos perceberam. Desde o código daVinci já todos os códigos foram descodificados. Não há surrealimo que aguente tanta interpretação. Aguenta-te men, estamos todos em cima dos teus ombros. Construímos o depois antes do antes, o telhado antes da casa, a utopia antes do sonho. Um dia destes, quando tudo acabar e houver tempo, lançaremos a primeira pedra. Afinal estás triste porquê? Vão dar-te várias medalhas e um título póstumo. Não vais ter de que te queixar. Um edifício e uma instituição com o teu nome, olaré! E a poesia, a tua e a dos outros, que se foda. Porra, não era isto que eu queria ter dito. Mas já está, já está. Pegam agora no cão que ele já não morde. Ainda lhe fazem uma estátua sem ódio. Ninguém tem um espelho lá em casa. Os espelhos partem-se. Falta dinheiro para comprar espelhos. Ponham isso no orçamento de estado. Falta dinheiro para tudo. Dinheiro para comprar poetas. Dinheiro para comprar pintores. O dinheiro agora é todo para comprar criativos. Isso mesmo, ouviste bem, criativos. Desses que estão sempre a criar. Têm sorte os gajos. Compram coisas boas, vivem bem, tem planos de poupança reforma aos trinta anos e não ficam à espera que a segurança social vá à falência. Tudo está em tudo. Ouvi isto em qualquer lado e fiquei convencido. Não precisas de te preocupar. Nós ficamos bem entregues. A corja continua o seu caminho e há-de haver sempre uma catacumba disponível para os vivos que estão mortos ou para os mortos que estão vivos, já não sei dizer. Nasce-se à pressa, vive-se mal mas temos o consolo de ser bons quando morremos. Todos seremos melhores quando estivermos mortos. Percebo. Ficaram contentes por terem menos uma reforma para pagar.

Artur Torrado

domingo, novembro 26, 2006

Pérolas (XXIV)

Para o caso de haver alguém que passe por aqui e ainda não saiba, e como não sou egoísta, recomendo uma visita diária a um lugar onde não se compreendem as mulheres. Recomendo também algum cuidado por que pode ser viciante.

terça-feira, novembro 21, 2006

Indivíduo

Após ler Palavras em Linha


Parece existir no humano uma inadaptação ao limite.

Em criança, quando soube da extensão imensa do universo, aceitei que nunca iria aprender o infinito. Parecia-me que na minha pequena dimensão não caberia nunca essa coisa estranha, essa impossibilidade de um caminho que nunca acaba.

Adolescente, enredado entre a hormonas e a estreiteza insondável dos átomos e da sua miserável pequenez, angustiado por entre dois pontos haver sempre um terceiro, impotente para acompanhar as potências negativas dos números, não acreditava que alguma coisa fosse mais complexa que não haver fim.

Só mais tarde, quando me confrontei com a fronteira, quando tive pela frente o desenlace dos fenómenos, quando o rosto anónimo da morte se impôs como destino, percebi como era bem mais fácil compreender o infinito.

Ao humano, por força do acaso, foi dada a possibilidade de ser o que não é. Lutam nele duas dimensões inconciliáveis: ser finito que pensa infinito. Dividido, corre todos os passos à procura de não ser verdade. A cada acontecimento associa uma esperança e a cada término um reinício.

Nenhum outro animal tem na mente o infinito. Coube ao homem a dureza da opinião, saber sem saber, conhecer sem conhecer, compreender sem compreender. Entre o infinito intolerável e o finito que não suportamos sem ter alguma coisa depois. Mais inconciliável não poderia ser.

Sobre esta disfunção se construiu o delicado equilíbrio da existência humana. Para o não saber criou-se a fé. Contra o fim criaram-se os deuses. Contra o medo criou-se o poder. Contra a angústia criou-se a ilusão. Pela paz criou-se a submissão.

Blindaram-se os sentidos com alusões a sabedorias secretas. Marcaram-se no terreno os extremos do sagrado. A alguns foi dado o direito de subir mais alto. E a todos os outros destinou-se como nobreza o sofrimento.

Não é fácil o confronto com o limite. Saber que ali à frente a curva do caminho se dobra sobre si desarticula a consciência. O fim não tem sentido. O fim é sempre o recurso pobre de um mau escritor de novelas.

Artur Torrado

domingo, novembro 19, 2006

Promessa

O sentido mata um texto. De madrugada. Porta aberta. Vejo as nuvens numa caneca de barro. Penso em ti. Gesto difícil. Quase a seguir há um acordo de princípio entre dois sonhos. Não fico a ver o que se passa. Por preguiça subo a escada até ao sótão. Poderia antes ter descido por uma questão de gravidade dos factos. Mas sabia a mar. E o outro lado da rua fica muito longe. Pesam os restos de ontem nos sacos de dormir. Não é branco nem tinto. Tanto faz que saibas como não por que é. Veio um cobrador buscar os últimos tostões. Não era legítimo. O pai fugira com outro barco mais flutuante. Era o que diziam as criadas à boca cheia de sopa. Durante a manhã choviam canivetes suíços. Abria-se o queijo que o diabo amassou no trânsito infernal. Doía. Pareciam esporas. Trotava-se na encosta. Vigiávamos os passos do conselho. Havia gritos também. Não percebo como foi. Disse que te amava. Era de madrugada. Subiam estrelas ainda. Não tinha onde pousar o pensamento. Foi em ti. Uma noite longa. A madeira gemia de medo. Pausa para respirar. Lá fora era como cá dentro. Um jeito de olhar a direito. Lugares pouco comuns. Sorrisos até. Um xaile a embrulhar os pés. Não percebi ou não persegui. Não sei. Havia ruídos suspeitos de te terem acordado. Eu tinha sono. Ainda. Faltava um sonho para acordar. Nem tinha que ser. Sei de vontades superiores. Como se fosse um tiro. Sem segundas intenções. Um pedaço fino de medo. Lotes para alugar. Não sou daqui. Nasci noutra aldeia. De roupa escura. Negros da fuligem. E do tempo. Ouvia-se também um rio. E um riso. Dizias que não era eu. Que não há sobras. Apenas sombras. Raio das palavras. A crepitarem. Impuras. Salgadas. Não tenho medo de morrer. A laje estava preparada. Haveria sol nesse dia. Os talheres traziam alimento à boca do mundo. Passei a mão pela testa. Vinha branca de cal. Logo a seguir segui-te. Tu não ias nem querias. Ossos de dinossauro. Dê Éne Á de mente. Destino retorcido. Tinha que dizer qualquer coisa. Calado. Mais sombras e menos dias. Não devia ter vindo hoje. A humidade minava a distância. Os saltos batiam na pedra. Não era medo. A fotografia. Preto no branco. Nocturno. Uma soma avultada. Um riso à beira rio. Mistério. Escondi-me. O cigarro queimava os vestígios. Um vulto de cinzas. Os pratos lavados a tilintar. Água a correr sem destino. Vesti-me sem pressa. A luz tardava. Um motor saía de casa. Adeus. Não creio. É um luxo viver aqui. Mais tarde se verá. Por justa causa. Sentia-me nu. A água ainda corria. Tu não sabes nada. O luxo da morte. A casa treme. Não faz mal que ninguém venha. Sinto que não interessa o que vem a seguir. É uma fila muito grande. Chegará para todos. Voltará. Acreditemos nos padrões. O mal repete a seguir ao mal. Como o bem. Ela não percebe o que eu digo. Não percebe nem acredita. É a mesma coisa. É leve a carga. O gesto solto. Poderia nevar. Amanhã faremos promessas. Sóbrios. Pura rotina. Dizer impossíveis. Soletrar. Beijo-te. Ou não. Há um horóscopo e um copo. Bebes dos dois. Eu sei pouco do futuro. Tu sabes tudo. Puxo o fio da camisola. Desfaz-se lentamente. Uma avó levara dias a tecer o meu gesto. Eu ignoro. Ela sabia. Ela dava. Não sei o que mudou. Já não sinto. Mas dói. É o desejo. A nata escolhida. A superfície. O gesto sem causa nem efeito. Vazio absoluto. Palavra pura. A pureza da morte. Escolheste o ponto mais alto. Sem subir. Sem saber. Amanhã faremos promessas. Prometo. O sentido mata um texto.

Artur Torrado

sexta-feira, novembro 17, 2006

Ocaso

Já não gela o topo da montanha.
Escoaram-se as últimas águas anos atrás, quando o tempo quente substituiu a arte de sobreviver.
Junto com a água foram alguns sonhos, e o que se quis que sobrasse como método, foi deixado ao acaso.
Havia então uma providência que sabia por nós todos os caminhos.
Ignorar não era, então, uma coisa boa, e acreditava-se.
A fé era toda feita de visões e parecia que a alavanca não era uma força da banalidade.
Entre a terra e o corpo havia transacção de fluídos vitais.

Sou outro velho do Restelo.
Perco o meu tempo em justificações impossíveis.
Comparo todos os movimentos com a posição onde estava antes e tiro daí impressões de desilusão.
Não são fáceis os caminhos de quem vê.
Por ter passado a ser rotina tropeçar nos pequenos ramos de que antes a tradição troçava.
Hoje come-se com a cegueira e olha-se para qualquer diadema com a ingenuidade dos primitivos.
Cada divindade decadente deu origem a múltiplas divindades douradas.
Os deuses só são deuses enquanto não lhes chamamos deuses.
Entretanto governa o que ainda não tem nome.

Não, não é bom saber.
Pesa sobre os ombros a insuportável responsabilidade.
O que interessa é viver o momento mesmo que seja escasso e precário.
Logo a seguir tropeçar no gesto ingénuo, lido como desgraça e calamidade.
Confundido o instante com o preço da eternidade, dilui-se o rosto seco da facilidade em trejeitos de inocência.
Em algum lugar o génio deixa a lâmpada acesa para que o caminho seja cada vez mais fácil ao cada vez mais néscio.
Orgulhosamente néscio.

Já não gela o topo da montanha.
As estações onde antes parávamos para beber já são secas, ausentes, desabitadas.
Todos os regatos confluem para um lugar apenas onde se afogam prazeres simples e banais.
Fora eu eterno e o incómodo me mataria.
Mas assim vou esperando que a intenção casual que colocou na terra a vida, siga o seu curso de indiferença perante a indiferença que se olha a si mesma com desdém.
A montanha não teme diluir-se no nada.

Sísifo

quarta-feira, novembro 15, 2006

Pérolas (XXIII)

Não sei se é possível escrever melhor do que isto...

terça-feira, novembro 14, 2006

Escuta

Deveria poder dizer do que não gosto com a mesma firmeza com que digo do que gosto. Fazer uma lista dos desgostos tão extensa ou mais que a lista dos afectos. Partilhar com todos dos efeitos sobre as crises de fígado que acontecem quando pela vista passam artifícios que não se harmonizam com a minha atmosfera. Deveria, mas não o faço.
Sei que só assim poderia afirmar alguma liberdade. Só assim faria sentido invocar direitos e deveres com a mesma insistência. Por direito tomaria a possibilidade de dizer do que me dá prazer e alegria. Por dever, por inverso direito, enumerar com rigor, o horror, a náusea ou o simples mal estar. Poderia mas não posso.
Seria honesto da minha parte não deixar passar sob os arcos da sensibilidade as perturbações que rebelam o prazer. Vedar a passagem às agressões elementares e, numa palavra, defender-me. É um direito, suponho eu, recusar a administração de substâncias nocivas à saúde. E mesmo assim não recuso.
Observei por aí os efeitos desastrados de dizer o que se pensa quando se pensa perante o que pensa quem não pensa. E vi que nas simetrias das razões e nas assimetrias das faltas de razão, o género de questões que se põe é do mesmo teor das assimetrias da irracionalidade. Nada parece pertencer a um mundo minimamente preciso, como se por trás de cada afirmação solene mais não houvesse que um ego à procura do desastre.
Não será sempre assim. Acredito. Quero acreditar e é isso que me faz escutar as razões que, no café, às vezes ecoam a mesa ao lado da minha. Vejo o outro lado, outra e outra vez. Um passatempo entre o anárquico e o decadente. Dizem, os que dizem, obcecados com a sua própria justiça, da razão imensa que têm nas disputas que os opõem. E são todos honestos nos seus sentimentos. Tal como eu sou honesto quando uso os meus para me ocultar de odores que me desagradam.
Continuo sem saber se os gostos se discutem. Por um lado, parece que não poderemos nunca compartilhar a dificuldade de sentirmos sempre à nossa imagem e semelhança, e não ser, por isso, possível repor os factos senão da maneira como os recordamos. Por outro, não vejo o que discutiríamos uns com os outros se não fossem essas coisas informes e descuidadas a que chamamos com muita propriedade os nossos gostos.
Discuto o meu gosto e queixo-me de mim, de coisas horríveis que fiz antes de ser o eu que sou hoje. Nada de grave portanto. Trata-se apenas de achar horrível o que então, quando ainda não pensava assim, ou ainda não pensava, ou ainda não tinha deixado de pensar, me parecia bem e por isso o fiz numa convicção qualquer, ainda que instantânea, que me dava a segurança de estar no bom caminho.
Parece ser assim que o tempo passa e se apropria de nós. Leva com ele os lados que entretanto se tornaram desagradáveis e deixa na nossa frente os restos mortais de um sonho especialmente brilhante. É esse o fulano que depois sai à rua e vai divagando sobre o passado, o futuro e os outros que são, à sua maneira, puros reflexos do passado que carregam às costas como um pecado.
Preferia que não houvesse bem nem mal, mas, uma vez que houvessem, fosse clara a maneira de os distinguir e, melhor ainda, que pudéssemos escusar da nossa frente o que não fosse próprio. Mas não sei. Escuso agora, enquanto posso, esse mal que seria não haver nem bem nem mal.

Prólogo

segunda-feira, novembro 13, 2006

A dificuldade de ler (80- C7/P8)

TM - Eu leria. Confesso que à medida que fui investigando foi aumentando a curiosidade.
IM - Talvez seja melhor assim. Na altura ninguém percebeu o que eu escrevi. Aqueles poucos que leram, e os ainda menos que comentaram não perceberam nada. Estavam completamente a leste do que estava escrito. Mas como não queriam passar por parvos perante um texto escrito por um adolescente, fizeram uma festa. É o mesmo que se passa hoje. As coisas não mudaram coisa alguma desde aquele tempo. Quando não se percebe nada, em vez de dizer abertamente que não se percebe nada, fala-se da multiplicidade de significados, da subjectividade do texto, da materialização de caminhos contraditórios, de imensidades criativas e de todo o tipo de disparates do mesmo calibre. O escritor que tem a lata de publicar umas palermices sem significado arranja sempre uma seita de seguidores que depois de se aperceberem do logro - admitindo que alguma vez se apercebem - já não têm como descolar. Umas vezes o grupo engrossa. Outras vezes acaba por desaparecer engolido por outra eclosão que faz os adeptos irem a correr atrás de outra lebre.
TM - Fico estupefacto com a essa sua ideia. Quando se lê a imprensa da época o que ressalta é uma grande admiração pelo seu trabalho. Adorava ler alguma coisa para conseguir perceber o que me quer dizer. O Isidro não me poderia deixar ler pelo menos um deles?
IM - Por mim não me importo que os leia todos se quiser. Só que eu há muitos anos que não tenho nenhum. Aos poucos foram desaparecendo. Suponho que a degradação interior os corroeu.
TM - E não procurou que os reeditassem?
IM - Para quê? Todos os dias se editam uma série de coisas inúteis e redundantes. Para quê alimentar essa onda?
TM - Há pessoas interessadas em lê-lo. Há pessoas curiosas sobre esses textos da sua juventude. É uma frustração não conseguir encontrar um único livro disponível.
IM - É melhor a frustração que a desilusão. Seria um erro enorme gastar dinheiro a reeditar aquelas porcarias.
TM - Não deveria falar assim de textos que marcaram uma época!
IM - Oh Torcato, não me faça rir. Estou a falar de coisas que eu escrevi. Você só 'gosta' desses livros porque nunca os leu. Mas já percebi que não há nada a fazer...
TM - Devia dar uma hipótese aos seus leitores. Não é justo que os prive...
IM - Talvez tenha razão Torcato. Mas enquanto não os lerem a minha fama estará mais segura. Eu próprio fico confuso com os meus sentimentos em relação a isso. Se eu porventura reeditasse esses livros corria até o risco de eles terem sucesso o que seria um drama terrível. Mas na improvável hipótese de notarem a trapaça que eles são o drama não seria menor. Foi mesmo bom que eles tivessem desaparecido todos.
(continua)

Torcato Matos

domingo, novembro 12, 2006

A dificuldade de ler (79- C7/P7)

TM - Acha que "A Águia da discórdia" era premonitório relativamente ao vinte e cinco de Abril?
IM - Eu não tinha sonho nenhum. Eu não era capaz de materializar, nem na forma de desejo, as estranhas sensações que a prima Vera me proporcionava apenas pelo facto de existir, ainda que a grande distância, a mesmo muito grande distância. Era costume a família mais chegada reunir-se algumas vezes por ano. Mas a única altura em que a prima Vera aparecia era no Natal. Não sei se consegue aperceber-se da problemática ontológica que se esconde por detrás de uma vontade insistente que valoriza o ano apenas pela ideia que há-de chegar a noite de Natal. Eu, tal como as crianças, esperava a noite de Natal. Mas o que eu esperava na noite de Natal, a minha estrela de Natal, a minha epifania era a prima Vera.
TM - A Primavera no Natal?
IM - A minha prima Vera vinha sempre à grande reunião de família. Eu escondia-me para que não me visse mas vigiava-lhe todos os movimentos. No Natal de setenta e três ela trouxe o noivo.
TM - "A Águia da discórdia" foi publicada em Julho desse ano.
IM - Sim, ainda escrevi a continuação até Dezembro. Depois nunca mais.
TM - Li no DN de Julho de setenta e três: "Sob a forma de fábula, Isidro Medário, o nosso mais prometedor prosador da jovem geração, desenha uma trama extremamente elaborada que de forma rigorosamente poética se encaminha entre o simbólico e o formal, numa ânsia incontida de, perante a anarquia natural das figurações, ofuscar a realidade com uma interrupção brutal do progresso narrativo, evidenciando um estilo marcadamente irregular e criador de soberbas angústias existenciais. O futuro da prosa de raíz sumamente nacional passa por aqui. Depois desta Águia da discórdia nada será como dantes. As letras portuguesas estão de parabéns e entregues em boas mãos".
IM - De novo o tio Alberto. Sempre incapaz de ler. Sempre incapaz de escrever. Sempre incapaz...
TM - Não concorda com esta leitura da sua obra?
IM - O tio Alberto não leu nada. Ele nunca teve paciência para o que eu escrevia. Achava-me um presunçoso. Não percebia uma única palavra. O sonho dele era escrever o meu epitáfio.
TM - Também não consegui encontrar este livro...
IM - Procurou?
TM - Procurei em todo o lado. Andei com a lista dos seus livros nas bibliotecas, nas livrarias, nos alfarrabistas. Está tudo esgotadíssimo. Ninguém entende porque não há reedições.
IM - Hoje não haveria quem lesse aquilo.
(continua)

Torcato Matos

sexta-feira, novembro 10, 2006

A dificuldade de ler (78- C7/P6)

TM - Não sei se se apercebe de como é estranho ter passado todos estes anos sem escrever: o seu último livro data de setenta e três...
IM - Quem lhe disse que eu passei estes anos todos sem escrever?
TM - (...)
IM - Não publicar não significa não escrever. Escrevi. Escrevi muito. Escrevi todos os dias. Não deve ter passado um dia que eu não tenha escrito qualquer coisa.
TM - Refiro-me a ficção... Literatura... Texto literário...
IM - Sim, isso mesmo é o que eu tenho escrito todos os dias.
TM - Há pouco disse que lhe faltava escrever tudo do novo livro...
IM - E é verdade. Uma coisa não invalida a outra.
TM - Escreve para a gaveta?
IM - Escrevo para mim. Escrevo para gastar palavras. Nada mais do que isso. É um processo de consumo como outro qualquer. Poderia gastar muitas outras coisas mas gasto palavras. Sou um consumidor de palavras.
TM - As palavras não se gastam...
IM - Hum... Você aborrece-me. Não me apetece explicar-lhe agora como é que as palavras se gastam. Às vezes irremediavelmente. Tem mais perguntas?
TM - Bom, tenho esta que é a principal: vale a pena esperar por um novo livro?
IM - Não. Muito sinceramente não vale a pena esperar. Nunca vale a pena esperar. No último livro... não me lembra agora o nome...
TM - "A águia da discórdia"
IM - ... eu prometi voltar. Era uma sequela. Tinha a intenção de escrever uma história longa, uma tal densidade de texto que não sobrasse nada para contar.
TM - Que é que impediu essa continuação?
IM - Foram várias coisas ao mesmo tempo: uma espécie de conjugação de contrariedades. Houve duas catástrofes principais. As outras foram acessórias. Em menos de uma semana a minha prima Vera casou-se e logo a seguir deu-se o vinte e cinco de Abril.
TM - A Vera era a sua musa?!
IM - O meu mundo desmoronou-se. Eu não sou capaz de dizer que sonhos tinha; que ilusões alimentava ao escrever histórias sem pés nem cabeça; que marcas havia no tempo que eu procurava registar. Sei que há emoções que condicionam os movimentos. E as palavras são veneno puro.
TM - Não voltou a escrever depois do vinte e cinco de Abril?
IM - Nessa altura eu já sabia tudo. Tinha percebido que me faltavam uns pormenores acerca da realidade, havia alguns tópicos que me passavam ao lado, mas acreditava que não eram muito relevantes e que no fundo, embora não me apercebesse, esses pormenores que pareciam surpreendentes, estavam há distância de uns míseros minutos de reflexão.
(continua)

Torcato Matos

quinta-feira, novembro 09, 2006

Blogues e comunicação

Às vezes não concordo. Outras vezes nem tanto. Hoje o JPP pareceu-me bem.

A dificuldade de ler (77- C7/P5)

TM - Em tudo o que li sobre si nunca notei essa modéstia que agora assume. Sente que o tempo o reduziu? Perdeu combatividade?
IM - Foi o Torcato que preparou essas perguntas?
TM - Fui.
IM - Onde é que foi buscar essa da modéstia? Eu sou um intelectual! Um intelectual a sério. Um intelectual modesto é um intelectual morto! Os livros que eu escrevi há mais de trinta anos não têm nada sobre mim! São livros sobre um adolescente ranhoso e atrasado mental! Percebe? Um gajo tão parvo que preferiu fechar-se num quarto a escrever palermices em vez de sair para a rua e comemorar estar vivo e ser jovem e ter saúde...
TM - Não precisa de se enervar. Apenas quero dar aos leitores informações actualizadas sobre si.
IM - Não estou enervado. Estou a dizer-lhe o que penso. E eu digo sempre o que penso, doa a quem doer. Se me fizer perguntas cretinas, chamo-lhe cretino com as letras todas.
TM - Será sempre a sua opinião. Eu faço o meu trabalho. O senhor responde se quiser.
IM - É uma coisa que me impressiona. Se eu lhe chamar cretino fica ofendido?
TM - Devia ficar?
IM - Eu perguntei primeiro.
TM - É a sua opinião. Não é por me chamar cretino que passo a ser. Não tem o dom de me transformar num cretino. Antes e depois de me chamar o que quer que seja, eu sou o mesmo.
IM - Eu ficaria terrivelmente ofendido. Consideraria uma difamação. Uma afronta. Não consigo interpretar alguém que ouve uma ofensa e dá a outra face. Não consigo entender como se consegue viver defendendo apenas os dois metros quadrados onde se vai ficar enterrado.
TM - Talvez eu não tenha nenhuma fama a defender. O meu bom nome não vale o que vale o seu. Pelo menos em termos comerciais.
IM - Tretas. É tudo uma questão de sensibilidade. De educação. Eu fui educado a competir, a procurar o meu lugar à força. Luta por luta. Disputa de recursos: o mesmo que faziam os nossos antepassados há milhares de anos. Quando quebramos esta regra a evolução pára, a civilização morre. Passamos a invertebrado.
TM - Eu acredito que só se torna violento quem se sente ameaçado. Isso sim é uma reacção instintiva. Digamos que é o medo que desperta a agressividade.
IM - Eu não tenho medo de ninguém e há pessoas que me apetece agredir. Pessoas, coisas, animais. Tudo o que me parece mal deveria ser destruído. Como vê, uma acção de pura protecção do ambiente. Protejo o ambiente liquidando tudo o que o destrói. Já me imagino o herói solitário a não deixar pedra sobre pedra no caminho dos que querem destruir o planeta.
(continua)

Torcato Matos

quarta-feira, novembro 08, 2006

A dificuldade de ler (76- C7/P4)

TM - O seu livro de sessenta e oito, "O pardal apardalado", também resultou de uma sublimação?
IM - Poderia dizer-lhe que sim e você ficava satisfeito. Como prezo acima de tudo a honestidade, digo-lhe que não sei. Ou de outra maneira: que raio de coisa é que pode fazer um rapaz de 18 anos agarrar-se a um caderno que não seja uma terrível vontade impossível de estar a fazer outra coisa? Eu não sei... Realmente não sei. Hoje vejo gajos a serem cínicos ainda adolescentes. Aprendem com a televisão. Mas há trinta anos era preciso ser de muito boas famílias para o conseguir. Quando não se consegue rir contam-se anedotas.
TM - A nota do DN era muito animadora...
IM - Você andou a ler essas porcarias todas?!
TM - "... vertigem dos sentimentos ilustrada com a amargura de sorrisos apenas entreabertos. Os sons que rasam as janelas são demências a florir e o voo solitário acaba por ser o refúgio do herói. Mil e uma incertezas perturbam os segundos de uma alma atormentada pela arte da culpa..."
IM - O tio Alberto era um prato. Ele escreveu muito toda a vida. Mas ninguém o percebia. No jornal acabou a fazer os elogios fúnebres e alguns fretes aos amigos.
TM - Qual é o assunto d'"O pardal apardalado"?
IM - Assunto? Que quer dizer com assunto?
TM - O tema. A temática. A motivação.
IM - Você é engraçado. Não leu o livro?
TM - Não o consegui encontrar. A editora já não existe.
IM - Hum... Quer mesmo saber? O assunto é o mesmo: a prima Vera.
TM - A sua prima?! A filha do seu tio Alberto?
IM - Daqui a pouco o Torcato conhece a minha família toda. A minha prima Vera era mesmo o meu assunto preferido. Toda ela. Não me lembro nada do pardal mas sei que tinha a ver com ela. Sei que foi por causa dela. Quando foi publicado já ela estava em Paris. Se você quer um assunto interessante, um verdadeiro furo jornalístico, procure e encontrará uma prima Vera em cada revolução. É uma inexplicável constante social.
TM - Ela estava em Paris no Maio de 68?
IM - Mais do que isso, ela foi um dos motores. Mas isso é um assunto que não me interessa em nenhum aspecto. Não nasci para promover a minha prima.
TM - Mas escreveu livros sobre ela...
IM - Eu não disse isso. Os livros não são sobre ela: são por causa dela. É completamente diferente. Na pior das hipóteses os livros são sobre mim. Sobre o eu que eu era naquela altura. E como era pouca coisa, o livro é nada.
(continua)

Torcato Matos

segunda-feira, novembro 06, 2006

A dificuldade de ler (75- C7/P3)

TM - O DN diz, e cito: "... transcreve, numa maturidade insuspeitada, um regresso da primavera pleno de metáforas, revolvido numa consciência permanentemente material e evocando com subtileza as belezas próprias de uma juventude que tem o futuro na mão. Adjacente ao peculiar ensejo de comunicar um estado de alma, Isidro enumera sem vacilar, a fugacidade imanente de todas as transgressões. As influências não são óbvias, temos um criador! ..."
IM - Foi o tio Alberto. Já me lembro. Mas deve ter sido a minha mãe que lhe ditou o texto. Ela não deixava nada ao acaso. E foi ela que lhe arranjou o emprego no DN. Mas é melhor não pôr isso na entrevista. Mas eu explico, embora seja um bocado embaraçoso.
TM - Se não quiser não é necessário explicar o emprego do seu tio no DN. Passou muito tempo e talvez não seja um pormenor relevante da sua vida literária.
IM - E não é. O que digo embaraçoso é a génese da "Volúpia de uma andorinha". A filha mais velha do tio Alberto - e minha prima - chamava-se, e ainda se chama, Vera. Era um nome relativamente comum na altura. À partida um nome idêntico a tantos outros, sem nenhuma carga mitológica e com a carga semântica benigna da verdade. O problema é que nessa altura era comum as famílias serem numerosas e era raro o rapaz que não tinha algures uma prima Vera. Ainda assim, nada de mais. Não deveria ser diferente ter uma prima Vera ou uma prima Zita. Mas há fenómenos que nos ultrapassam. Vários estudos feitos na década de oitenta demonstraram que enquanto uma prima Zita é sempre espalmada, usa óculos e não se sabe vestir nem despir, uma prima Vera é estranhamente sobre-dotada pela natureza e, por um desígnio integralmente insuspeito que nem o aquecimento global consegue explicar, está sempre particularmente adiantada para a idade.
TM - A andorinha é a sua prima Vera?!
IM - Não, de maneira nenhuma. A minha prima Vera é a volúpia. E a andorinha, se você não percebe também não lhe vou explicar...
TM - De facto não consegui encontrar o livro. Está completamente fora do mercado.
IM - E para que é que queria o livro?
TM - Quis ler os seus livros para me preparar para a entrevista...
IM - Ó homem de Deus. Que é que você estava à espera de encontrar no livro? Eu tinha dezassete anos, a minha prima Vera tinha vinte anos e era a materialização do desejo. Estávamos em sessenta e seis. Que é que acha que eu podia fazer além de escrever um livro? Quando não conseguimos chegar aos objectos, escrevemos palavras. Mas isso não implica que as palavras falem dos objectos. As palavras são a baba que vai escorrendo para aliviar a pressão. Há quem lhe chame sublimação. E de facto é sublime...
(continua)

Torcato Matos

domingo, novembro 05, 2006

A dificuldade de ler (74- C7/P2)

TM - No seu entender o que é que, digamos assim, impede a saída em breve do seu tão aguardado trabalho?
IM - É uma longa história. Talvez você tenha paciência para a ouvir, mas eu não tenho paciência para a contar.
TM - Dito de outra maneira: o que é que lhe falta escrever?
IM - Tudo.
TM - Tudo?!
IM - Sim, onde é que está o espanto? Um livro antes de ser publicado tem que ser escrito. Antes de ser escrito tem que ser pensado. Eu sei que muitas vezes não chega a ser pensado, mas esse não é o meu método. Eu penso uma história, investigo, acumulo elementos, escrevo esboços, reescrevo e só na fase em que já estou farto de reescrever é que considero a obra terminada. Digamos que termino por desistência. Porque estou farto, porque não posso mais.
TM - Foi assim com os seus primeiros livros?
IM - Hum... Não sei, já não me lembro. Embora pareça que foi ontem não me lembro dos pormenores. Aliás, não há coisa que me aborreça mais do que os pormenores. Perdemos demasiado tempo com pormenores. Hoje é assim que eu escrevo.
TM - Isso quer dizer que está a meio de um texto e está à espera de se aborrecer na respectiva reescrita e por isso não é capaz de prever uma data para esse cansaço...
IM - Nada disso. Ainda nem o comecei a pensar. Como sabe iniciei recentemente um relação amorosa muito intensa e absorvente. A Cátia é uma mulher muito exigente e a minha ex-mulher não é menos. Tem sido uma luta titânica com os elementos para conseguir levar a bom termo esta tarefa. Ainda sou do tempo em que se fazia uma coisa de cada vez para que ela ficasse bem feita. Quando este passo estiver dado passarei a outro. É este o andamento natural da história. Se fazemos concessões no processo artístico, acabamos irremediavelmente a reescrever não o que criamos mas o que outros criaram.
TM - Em mil novecentos e sessenta e seis publicou, em edição de autor, "Volúpia de uma andorinha". Tinha dezasseis anos e o livro foi recebido com grande entusiasmo...
IM - Dezassete. Tinha dezassete anos.
TM - A nota do Diário de Notícias (DN) fala em dezasseis anos...
IM - Foi a minha mãe. Sempre teve dificuldade com as datas. Ainda hoje me trata como se eu tivesse doze anos. Não tenho nenhuma explicação para isso. Mas não é por mal. A esta distância tanto faz. Dezasseis, dezassete. Se fosse hoje já teria algumas medalhas de campeão de futebol. Não há diferença nenhuma. Hoje não deixaria que a minha mãe interferisse no meu processo criativo. Mas nessa altura era menor.
(continua)

Torcato Matos

sábado, novembro 04, 2006

A dificuldade de ler (73- C7/P1)

Capítulo VII (estéreo)

TM - Dr. Isidro Medário, depois do extraordinário sucesso do congresso internacional da Literatura Inclusa, que tão bem organizou e nos deu a honra de divulgar, agradecemos-lhe a disponibilidade que demonstrou para responder a algumas questões sobre a sua carreira literária.
IM - Primeiro tire o Dr.. Desde que renunciei à vida académica e me apercebi do absurdo dos títulos passei a ser simplesmente Isidro. Apesar de já antes prescindir do título fora das minhas tarefas académicas e principalmente na qualidade de escritor. Depois não percebo o que quer dizer com 'também' organizei...
TM - Eu disse 'tão bem', não disse também...
IM - Ah! Tem razão. É que estou tão habituado a em certos meios o 'também' se dizer 'tão-bem' que já me tinha esquecido do 'tão bem'.
TM - Pois é Isidro, eu estava a dizer-te que organizaste o congresso muito bem...
IM - O Torcato desculpe mas eu apenas disse para não me tratar por doutor, o que não quer dizer que tenha que me tratar por tu.
TM - ...
IM - A língua portuguesa tem uma diversidade suficientemente grande para não termos que nos tratar todos da mesma maneira. O facto é que não andei consigo na escola, nem na tropa, nem frequentamos o mesmo café e provavelmente não somos do mesmo clube. Além disso, embora esse aspecto me custe, tenho mais do que o dobro da sua idade, caramba.
TM - Peço desculpa, Dr. Isidro...
IM - Porra que você é extremista!
TM - Não vai voltar a acontecer.
IM - ...
TM - A primeira pergunta que eu tenho para lhe fazer é a que os seus incondicionais adeptos mais fazem: para quando a saída do seu sétimo livro?
IM - Essa poderia ser uma excelente pergunta se eu pudesse dizer-lhe uma data. Sim, seria excelente se eu pudesse dizer, por exemplo, sai daqui a um mês. Ou, sai daqui a um ano. Até já me agradava se pudesse dizer sai dentro de dois anos. Mas como não lhe posso dizer nada disto, é, desde já, uma péssima maneira de começar, uma péssima pergunta, portanto.
TM - Compreendo... Mas há-de compreender que os seus leitores estão há trinta e dois anos à espera...
IM - A arte, amigo Torcato, é irredutível. Não podemos sujeitar-nos às exigências dos leitores. Lamento dizê-lo desta maneira. Trinta e dois anos passam muito depressa. Parece que foi ontem...
(continua)

Torcato Matos

quinta-feira, novembro 02, 2006

A dificuldade de ler (72- C6/P6)

Como vês, hoje foi um dia duro. Duro e ingrato como é próprio dos dias em que se quebram as verdades universais. Sei que amanhã vou descobrir novas incertezas e vou ficar a não saber coisas que hoje ainda sei. É provável que esta seja a última vez que te reconheço e que os momentos que aí vêm me tornem irremediavelmente distante. Para ti isso não é novidade: sempre soubeste que este não era o meu meio, e disseste-me para não vir para que eu viesse com mais entusiasmo. É provável que esqueça o teu nome como quase já esqueci o do pai e o da mãe. Sei que é aqui que não vou ser feliz, mesmo que essa nunca tenha sido a minha ambição. Poderia ter escolhido outro lugar qualquer ou deixado que o acaso decidisse por mim.
As vozes que ouço lá fora, agora que anoitece, são alegres de quem não regressa cansado de um dia de trabalho e está à espera da noite para conhecer. Mas não ouso, hoje, voltar a ouvir-lhes o tom diferente da voz a dizer-me boa-noite. Fico eu, desta vez, a olhar por detrás das cortinas, a ver as sombras que evoluem na rua, divertidas na sua maneira resoluta de andar, como se tivessem uma absoluta ligação ao tempo e ao espaço e por isso não temessem nenhum movimento inesperado. Eu não sou daqui. É provável que nunca venha a ser daqui. Serei estrangeiro, então. Ficarei prudentemente à beira das coisas, na expectativa de um desenlace inesperado. Eles não esperam nada inesperado e por isso eu não sei o que eles esperam nem sei o que eles são. Conheço-lhes as vozes que tomam para mim a diferença na expressão e me põem com isso no meu lugar à margem.
Tu dirás, como sempre disseste, que eu ouço o que quero ouvir e que me coloco no lugar em que sou capaz de estar. Dizes isso depois de teres fugido daqui numa reacção brusca, de que ainda hoje te arrependerias se fosses capaz de te arrepender de alguma coisa. Eu arrepender-me-ei de ficar, da mesma maneira que me lamentaria para sempre se tivesse agora a coragem de abandonar o meu destino. Talvez eu dificulte um pouco a linearidade dos sentimentos. Admito que algumas coisas possam não ser exactamente como eu as vejo. Mas este é o meu primeiro dia aqui, meu irmão. Ontem, por esta hora, passava eu os meus passos pelas poças de chuva à procura da fechadura onde cabia a minha chave. Estou agora num lugar estranho, com um tempo estranho, ouvindo pessoas estranhas que rezam à lua e sabem tudo sobre mim com um simples olhar. Passou pouco tempo. O suficiente para eu saber que cometi um erro e estar na disposição de o manter para todo o sempre. Cometo este erro em vez de outro qualquer. Que é que isso tem de especial?
Digo-te adeus caro mano. Apesar de tudo sempre gostei de ti. És o meu irmão mais velho e ensinaste-me a não aprender, a não gostar, a não querer, a não sonhar. Devo-te, portanto, tudo o que poderia querer não ter sido e sou.
(continua)

Torcato Matos

Livremente

Não quis que soubessem o meu nome quando atravessei a altura máxima da montanha.
Assim também tinha guardado para mim os lamentos e evitado que me vissem eu.
Da mesma forma me dirijo aos lugares ermos e de lá volto no escuro da invisibilidade.

Ontem morreu alguém na montanha.
Tinha todos os gestos certos mas houve um que falhou e a dureza do tempo aproveitou-se.
Não me ocorre agora a tristeza por isso ou por tantas vidas que ontem se perderam.
Ocorre-me antes pensar nesta natureza que cumpro em mim e a que não dou nome.

Não sei até que ponto é patético desfolhar a luta diária com os elementos.
Eles vêm de diversas formas e tomam as nossas mãos nas suas para sempre.
Invadem a propriedade e a atenção como se não pudéssemos ser.
Negam os desejos por um acaso em que não estejam interessados.
Limitam os movimentos às zonas nobres como se esperassem com paciência infinita.

Mas, não, eles, os elementos, não querem.
Passam pela voz pendente dos sonhos e determinam a partir da indeterminação.
Desdenham das poses sem chegarem a desdenhar, indiferentes.
Não pousam o pé na nossa lógica e seguem o seu caminho sem olhar para o caminho ao lado.
Dispersam os porquês em passos aleatórios, abismos, potências, fogo.
Movem o peso pesado do tempo na margem da absoluta marginalidade.

A terra seguiria divina a sua marcha sem nós.
Levaria o seu impulso até que outro impulso maior a perturbasse.
Pó, pedra e lume seguiriam ainda o rasto do lume, da pedra e do pó.

Aqui, no meu passo simples, sou tão natureza como natureza é o trovão.
Sou tão inofensivo como inofensivo é o riacho que desce a gravidade.
Sou tão apático como apática é uma lua a honrar um sol.
Sou tão leal como leal é o frio que volta no inverno.

Não há nomes que cheguem para dar a todas as coisas.
E, por isso, algumas ficam esquecidas de ser e de se ouvir.
Como se a indiferença nascesse de não haver um lugar perfeito para a colocar.

Fogem pelo caminho passos mais apressados que os meus.
Vão animados à procura do que resta para enfeitiçar.
Querem, porque a vontade os impele, querer outras coisas que também querem e fogem.
E o fluir constante dos desejos faz animar o vento e as forças ocultas.

Lá longe, no lugar onde se fecha o horizonte, e onde parece que as espécies outonais se comprimem, há nomes a morrer e outros a nascer, selados os documentos que a história irá avidamente recolher.

Sísifo

quarta-feira, novembro 01, 2006

Pérolas (XXII)

Memórias do fiel-amigo do fiel-amigo...

A dificuldade de ler (71- C6/P5)

Devo dizer que não foi fácil regressar aqui. Estarás neste momento a lamentar o meu execrável sentido de orientação e a rir-te com gosto, imaginando-me às voltas sobre o mesmo lugar, perdido num labirinto construído na minha imaginação. Estou-me nas tintas para o que tu penses. O facto é que este não é o meu meio. Não me sei mover em lugares em que as pessoas são distantes e mudam de tom quando me falam, e em que as casas se parecem mover e mudar de aspecto de cada vez que as olhamos. Esta terra não é sólida. Molda-se como uma gelatina à forma que por acaso a contenha. Tinha andado mais de quinze minutos quando vi uma jovem a quem pensei perguntar o caminho. Foi aí que percebi que não sabia como indicar o meu destino. Hesitei. Ela cumprimentou-me com a palavra chave: bom-dia. Pareceu-me, mas não tenho a certeza, que usou uma maneira ligeiramente diferente da dos seus conterrâneos. Eu ouvi uma coisa diferente mas sou suficientemente lúcido para aceitar que possa ter ouvido o que queria ouvir. Sim, exactamente como tu dizes que eu funciono, quando me queres irritar. Estupidamente perguntei-lhe se me podia dizer qual era o melhor caminho para chegar a minha casa. Ela não se mostrou surpreendida e disse que seguisse pela rua em frente e virasse na terceira à direita. Seria depois a terceira casa à esquerda.
E era. Poucos minutos depois estava aqui sentado a pensar que este não podia ser um lugar para permanecer muito tempo e muito menos para ousar sequer pensar em penetrar nos seus segredos e fixar-me para sempre. Repara que ela sabia que era esta a minha casa tendo eu chegado aqui ontem à noite sob chuva e com as ruas desertas. E eu sabia que ela sabia porque senão não lhe teria perguntado. Este não é um lugar normal, meu irmão. Tu estiveste aqui alguns dias e retiraste-te com o rabinho entre as pernas. Eu sei. Tu não me disseste mas a mãe contou-me. Desesperaste e foste embora.
Está bem. Por isso vou eu ficar. Vou vencer o meu medo e vou ficar. Não é para te vingar. É para mostrar que sou mais capaz do que tu. Que vou mais longe; que aguento melhor as decepções e sou mais persistente.
Ainda não sei como vou fazer. Tenho que respirar fundo e pensar uma coisa de cada vez. Este não é o meu meio e vou ter que lutar todos os dias contra isso. Sei que os que nasceram cá têm à partida mais facilidade em orientar-se. Sabem alguns segredos mas, acima de tudo, é este o ar que melhor conhecem; nasceram a respirá-lo e tratam-no por tu. Eu cheguei agora. Não sei nada. Fico assombrado com o mais pequeno movimento da vegetação. E estou à defesa: à espera de um golpe que há-de vir quando menos o esperar. Apenas tenho esta decisão de não fugir para não me parecer contigo e ficar também, para sempre, a rir-me das impossibilidades.
(continua)

Torcato Matos