quarta-feira, janeiro 31, 2007

Sim ó não

O assessor Jakim é a favor dos que são contra o sim e é contra os que são contra o não. Por isso já decidiu o seu sentido devoto e está a fazer campanha. Finalmente há alguém que apresenta bons argumentos.

domingo, janeiro 28, 2007

Pérolas (XXVIII)

O gajo que open, close and play e não compreende as mulheres (só em pensamento)!

Aparência


Não é fácil aceitar o vazio.
Olha-se para o horizonte e fica-se à espera que surja qualquer coisa.
No silêncio da noite, os sentidos aguardam a negação do nada.

É uma expectativa milenar, herdada e legada para fazer de conta que há alguma coisa.
Foi ficando da ignorância dos tempos, um rasto firme da alergia à inexistência.
Toda a razão, toda a informação intimamente acumulada, choca com um passado todo poderoso onde se definiram as verdades eternas.
O homem, esquecido que é o pó das estrelas, prefere ser o bolor da história.

Os tempos novos são de recuo.
A evolução, fosse o que fosse, parou perante a manipulação orgânica da consciência.
A protuberância do umbigo, deixou de acreditar na terra como centro do universo e ficou orfã de centralidade.
O Deus que tudo justificava, continua a servir, metido no bolso da conveniência.
O homem passou a ser uma deficiência fatal do planeta.

Não é fácil aceitar o vazio.
Como não é fácil aceitar a contingência.
Melhor seria que tudo estivesse previsto, e uma potência qualquer determinasse cada movimento.
Melhor porque mais fácil.

O músculo cresceu e evoluiu para agora ficar parado, desajeitado e inútil, a definhar na sua preguiça inconsequente.
Mandam, então, os que têm a ambição de mandar.
Determinam sobre a inércia própria dos que não se querem aborrecer.
Quem diga duas palavras seguidas sobre um pedestal suficientemente elevado, receberá os aplausos da multidão perdida de tédio.

Não é fácil aceitar o vazio.
Na infância iludem-nos com espaços, tempos e estômagos bem cheios, repletos.
Esgotam-se nos primeiros anos os terrenos da maravilha, e todo o resto do tempo se passa a ignorar.

A paz da morte há-de ser mantida.
Nenhum esforço será exigido.
É preciso que nada desperte emoções lúcidas.
É preciso que cada palavra nova seja isenta de surpresa.

Beatriz Teresa

sexta-feira, janeiro 26, 2007

Pérolas (XXVII)

Para o bem e para o mal são as mulheres que determinam o mundo...

quarta-feira, janeiro 24, 2007

Armadilha

Há uma armadilha à frente de cada homem. Parece uma palavra e age como uma palavra e provavelmente é também uma palavra, mas antes de tudo é uma armadilha. O homem enquanto criança ainda não sabe. Depois cresce e aprende... e aprende sobre tudo o que aprende, que tem à sua frente uma armadilha. Aprende por isso, enquanto aprende que tem à sua frente uma armadilha, que antes de dizer seja o que for, antes de dizer que queria dizer outra coisa, que o que sente deve ser tanto quanto possível omitido. Enquanto aprende que poderia sentir outras coisas que não aquelas que sente, aprende também que tem toda a conveniência em não sentir o que sente, mas antes sentir o que se torna evidente que devia sentir quando sente.

Há uma armadilha à frente de cada homem. Homem que é homem aprende que essa armadilha está lá, e aprende como evitar a armadilha que está à sua frente. Quando, adolescente, o homem sente e percebe que o que sente não é o que devia sentir, aprende, por experiência própria, a sentir como deve sentir quem sente. Aprende que o gesto brusco de não acreditar, aquele desvio subtil do braço para obliterar o medo, não serve para ser usado no dia a dia das certezas. E aceita, logo a seguir, que toda a sobrevivência passa por fintar a morte. E escuta com atenção aqueles que sabem como evitar a armadilha de saber outras coisas distintas das coisas que tem o dever de saber.

Há uma armadilha à frente de cada homem. Para saber como deve saber, o homem repete o mesmo exercício centenas de vezes - milhares de vezes se necessário - repete o gesto que aprendeu até que o gesto seja seu, e não deixa que alguma vez de dentro de si transborde outra personagem que não a que Deus criou e limou à imagem e semelhança do seu suposto interesse. A mão adulta segura o instrumento que segura a mão adulta e os dois seguem lado a lado como um só, comovidos por serem tão seguros da sua verdade e tão eleitos sobre a vulgaridade dos que não sabem. Dissipada a disfunção, esquecida a armadilha, segue o homem o seu caminho de articulado dever.

Há, à frente de cada homem, o torpor da liberdade. Assombra com a sua sombra, e seduz com histórias antigas. Ao olhar de quem vê, aparenta-se a perdição, negrume e calamidade. Não vale como a vida. E aprende cada homem, em cada dia que aprende, a não olhar de frente, a não sentir o que sente, a consentir em não sentir para além do que está determinado. Avisado, o homem não cai na armadilha. Escuta com atenção as palavras do oráculo, dos santos e dos deuses, e recorre a rituais para se libertar da liberdade. O homem que cresce e aprende, aprende, antes de mais, a saber as fontes do bom saber e a não hesitar no seu confronto com as armadilhas: nenhuma vale contra a vida recebida como oferta num duvidoso saldo de hipermercado.

Há, à frente de cada homem, o torpor da liberdade. Não vale como a vida porque vale mais do que a vida. É apenas aí, no horizonte disforme onde a consciência é autónoma, que vida se chama vida. Mas que interessa isso se os gestos entretanto aprendidos riscaram da memória a rebeldia, para dar à consciência a prática salutar da submissão.

Prólogo

segunda-feira, janeiro 22, 2007

Rebanho


Há um corpo estranho dentro de um corpo estranho e espera-se que o corpo estranho seja capaz de expulsar o corpo estranho de dentro de si.
O corpo estranho, qualquer deles, é estranho porque primeiro se estranha e depois se entranha. Ou o contrário.
O corpo estranho que penetra o corpo estranho, entranha no corpo estranho um outro corpo estranho e espera, sem esperar, que o corpo estranho que invade o corpo estranho, se entranhe, que emprenhe o corpo estranho com outro corpo estranho.
O corpo estranho dentro do corpo estranho, gerando outro corpo estranho nas entranhas, é o anho do sacrifício, o salto desconhecido, a molécula da incerteza.
Sendo Deus o corpo estranho que se entranha e estranha, no corpo estranho que se entranha noutro corpo estranho para gerar mais outro corpo estranho, no estranho corpo da terra estranha, fica cada corpo estranho com a ideia entranhada de ser mais do que um corpo estranho na estranha forma da estranha vida.
O corpo estranho é, como o pensamento estranho, uma estranha combinação de pedaços avulsos que se entranham de maneira estranha, como um vício de antanho, e pertencem como a imagem no espelho ao corpo estranho em que se entranhou.
Como todo o pensamento, que a ser pensamento começa por ser estranho no momento em que se entranha, o corpo estranho é o estranho objecto perdido na generosidade do banho que fará do seu potencial de estranheza o que entender. O corpo estranho sobrevive apenas à contingência de a sua estranheza se entranhar na estranha estratégia da multiplicidade.
Quantas ideias estranhas, quantos estranhos sonhos, quantas estranhas verdades, quantas estranhas ilusões, se ficam pela estranheza de corpos estranhos expulsos, recolhidos à partida pela estranheza do esquecimento e ignorados para sempre pela estranha diversidade. É assim que o universo age, distante da fenomenal consciência.
Um corpo estranho vale tanto como outro corpo estranho. Mas há corpos estranhos que valem mais do que outros corpos estranhos. A vida, a ser alguma coisa abstracta, a ser alguma coisa que não radique na estranheza, é apenas a multiplicação aleatória de corpos estranhos, viáveis por infinitésimos de tempo, inúteis fora de contextos muito singulares, imóveis na sua individualidade, e com sofrimento apenas perceptível nas zonas circundantes onde o grito chega.
Um corpo estranho às vezes ama outro corpo estranho e, por momentos, abandona a aridez singular da abstracção.

Prólogo

domingo, janeiro 21, 2007

Aborto ou desmancho?

A grande disputa que vai ocorrer no referendo à interrupção voluntária da gravidez (IVG), não é entre o “sim” e o “não” mas entre o aborto e o desmancho.
O aborto que se promete, no caso de ganhar o 'sim', vai ser rigorosamente vigiado. Os hospitais, ou as clínicas, que venham a incluir nos seus serviços a prática do aborto, vão preencher papéis em triplicado, mandar reconhecer a assinatura, exigir um fiador para as questões financeiras, um tutor para as questões de responsabilidade social, vão passar factura dedutível no IRS e inscrever no enigmático algarismo que vem a seguir ao número de BI a quantidade de abortos oficiais.

O desmancho não tem nenhuma destas burocracias. É absolutamente incógnito, sigiloso e anónimo. Acabado o acto, é como se nada tivesse acontecido. Ninguém em lugar algum vai saber, a não ser que a utente, num desvario, resolva expor-se num movimento pró-"sim", dizendo alto e bom som: eu fiz!
O aborto é a interrupção de uma vida em potencial, a anulação de um Einstein, de um Hitler ou de um zé-ninguém. O desmancho é geralmente a salvação de várias vidas, de famílias inteiras em perigo de caírem na lama.
O aborto é um pecado grave, universalmente condenado. O desmancho para todos os efeitos não existe. E o que não existe não é confessável.
O aborto não tem tradição em Portugal. Falta-lhe estatuto e tem um certo ar intelectual de esquerda, cheira a enxofre por todos os lados.
O desmancho é, salvo seja, o pão nosso de cada dia. Tem resolvido o problema a inúmeras famílias, mantendo-as unidas na fé e na alegria. Está próximo do povo, convive com ele em cada esquina e promove a tão necessária cumplicidade que define a cultura tradicional.
No caso improvável de, no referendo, vencer o "sim", as dificuldades de implantação seriam inultrapassáveis.
Quer isto dizer que vença o "sim" ou o "não", os métodos tradicionais continuarão a ser os preferidos, pelo que é necessário que o governo se prepare para abordar esta questão de uma maneira mais pragmática. Eis algumas sugestões:
- alguns dos milhões que vêm da Europa poderiam ser entregues directamente aos sacos azuis das autarquias, para estas, da maneira mais discreta possível, subsidiarem a compra dos desinfectantes que tanta falta fazem nos lugares de desmancho;
- permitir a atribuição da ISO9000 a todos os vãos-de-escada que apresentem elevados níveis de sobrevivência;
- instituir um prémio anual para os lugares que tenham menor número de complicações pós-desmancho;
- isentar do imposto de selo todos os proprietários de vãos-de-escada, bem como atribuir-lhes licença para aquisição de gasóleo agrícola;
- fomentar a instalação de eco-pontos devidamente preparados para lixo biológico;
- favorecer as sinergias sociais incentivando a concentração de outros negócios tradicionais paralelos.
O respeito pela vontade popular e pela tradição é uma conhecida fonte de felicidade e harmonia. Ao contrário do que se diz, o sistema vigente é o que melhor protege as famílias de serem punidas, de o seu nome, ó ignomínia, ser dito na praça pública.

ikivuku

Talvez

Na grande questão do aborto, decidi fazer campanha pelo talvez. Depois de muito pensar e me informar, e voltar a pensar depois, cheguei à conclusão que não me revejo nem no sim nem no não. Não sei ainda como vou montar a minha estratégia de campanha, até porque não parece ter sido prevista uma posição que excluísse as duas que estão a ser impostas, mas como a razão está do meu lado, só tenho que seguir em frente com fé. É precisamente por aí, pela confrangedora pobreza da proposta, que a minha campanha do talvez vai começar: o referendo ao aborto, nos moldes em que está definido, corresponde a um efectivo aumento dos impostos. Estamos, portanto, perante mais uma clamorosa violação das promessas eleitorais. Como sabem a violação é uma das circunstâncias em que o aborto já é permitido na actual legislação. Havendo neste caso, uma violação, parece-me a mim que há fortes probabilidades de o referendo ao aborto ter o direito de ser abortado. Porém, e aqui se vê a diferença da minha proposta, o talvez é uma posição que deixa em aberto a hipótese de não se fazer o aborto mesmo no caso de violação.
Eu sei que o talvez vai ser visto por muito boa gente - e pela má ainda mais - como uma espécie de pelo sim pelo não. Nada de mais errado porque o talvez é mesmo para ser ao mesmo tempo contra o sim e contra o não, mantendo-se na equidistância central que é própria da virtude.
O talvez pretende dar uma hipótese ao abortado de ter uma palavra a dizer. É um pouco como a escolha da religião ou do clube de futebol: será a consciência do próprio indivíduo a determinar a ocasião do seu próprio aborto, mais o recurso eventual a opiniões externas (do tipo deixar os pais dos alunos dar notas aos professores).
Tudo isto parecerá um pouco confuso se não se tiver em conta que o meu projecto vai definir duas novas figuras legais, que passariam a ter efeito se o talvez ganhasse. Refiro-me ao aborto retroactivo e ao aborto a título póstumo.
O aborto retroactivo destina-se a ser aplicado a todos aqueles que a dada altura da sua vida se reconheça ter sido um grave erro não terem sido abortados até às dez semanas. O exemplo recente de Saddam Hussein.
O aborto a título póstumo tem como objectivo ser atribuído a todos aqueles que só depois de terem morrido se lhes reconhece a perniciosidade com que nasceram, e que leva a sociedade a concluir que melhor teria sido se tivessem sido eliminados na altura certa. Augusto Pinochet, por exemplo.
A mais inovadora das propostas é também a que irá ter mais resistência, uma vez que é minha intenção que caso vença o talvez, possa entrar imediatamente em vigor, dando hipótese a que nos livremos de algumas personalidades da nossa vida política e social, que deveriam ter sido abortadas há muitos anos e não foram por causa do não.

Alícia Neto

sábado, janeiro 20, 2007

Cara ou coroa


Hoje, 20 de Janeiro de 2007, a dois meses do início da primavera, vi as primeiras andorinhas. Não sei se já regressaram da sua rigorosa migração ou se não chegaram a ir embora. Não é muito relevante, porque as andorinhas, ao que sabemos, não pensam e não têm direito a voto. Mas são sinais. Se quisermos são sinais dos tempos.

Entretanto, o que nos preocupa é o sexo dos anjos na variante IVG.

Como diz Vasco Pulido Valente, no Público de hoje (roubado para aqui), há problemas que não se podem reduzir ao simples "sim" ou "não". Mas os tempos - os tais que as andorinhas anunciam - são tempos maniqueístas que se apoiam num 'choque tecnológico' - também ele assente no código binário - luminosa fachada virtual de um edifício vazio, destinado a entusiasmar mentes pouco dadas a esforço e raciocínio, num país convicto da sua tendência para o tudo ou nada, para a certeza absoluta da fé ou para a indiferença fatal da razão.

O zumbido vai votar "sim", mas não se orgulha disso, nem vai fazer uma festa de vitória se o "sim" ganhar. Porque o que está em causa, ganhe o "sim" ou o "não", é uma sociedade muito preocupada com as questões de princípio e com as abstracções, muito interessada em defender formulações ocas e pré-fabricadas, mas cada vez mais distante da pessoa concreta que tem ao seu lado, cada vez mais indiferente às consequências dos seus actos desde que não ocorram à sua porta; cada vez mais recolhido no seu condomínio privado de conforto e segurança.

Sugiro aos outros colaboradores desta página que emitam opinião sobre este assunto.


zumbido

sábado, janeiro 13, 2007

O império do amor

Há muitos anos, nas salas de 'chat' do IRC mais dedicadas à área da escrita e da literatura, era comum os mais jovens que apareciam, expressarem o seu desejo de no futuro virem a ser escritores. Quando lhes perguntava sobre o que liam, referiam, invariavelmente, com enorme paixão o escritor brasileiro que mais vende no mundo (EBMVM*). Não conhecendo a fabulosa escrita de EBMVM e não estando disposto a experimentar**, limitei-me a constatar que a leitura do EBMVM induzia comportamentos imitativos e reforçava a famosa auto-estima. No sentido mais plano do termo, muitos dos leitores do EBMVM apercebiam-se que aquele tipo de escrita estava perfeitamente ao seu alcance. Dez anos depois alguns desses potenciais escritores estão a publicar. Outros têm 'blogs' espirituais.

Lembrei-me desta questão ao ver num hipermercado um molho de livros em saldo, provenientes da recentemente finada Tinta Permanente, pela qual tinha uma especial simpatia, devida, entre outras coisas, a ser a editora de "FICÇÕES - revista de contos" - que entretanto passou para a Caminho - e me ter parecido, durante a sua curta existência, ser respeitadora da palavra literária.

No meio dos vários livros em saldo estava, a 3,00 €***, uma pérola chamada "O império do amor", um livro de contos de Luísa Costa Gomes que teve há alguns anos sobre mim o efeito contrário ao que o EBMVM costuma ter sobre os seus leitores. Perante o virtuosismo dos contos de "O império do amor" apercebemo-nos de como é difícil escrever bem; de como manejar a arte das palavras exige esforço, dedicação e estudo; de como o texto se pode tornar numa coisa viva, resistente e amável; de como o mundo é uma entidade complexa em que nada se define pela linearidade, nem os sentimentos têm que ser permeáveis à vulgaridade do poder; de como a liberdade, a inteligência, o conhecimento e o espírito crítico têm afinal aplicabilidade na relação entre as pessoas.

Suponho que é inevitável a instalação da facilidade em todos os domínios. Uma frase que não seja óbvia numa primeira leitura será abandonada como confusa. Einstein, na sua bonomia, terá referido a importância de em alguns aspectos da existência permanecer criança toda a vida. Referia-se à curiosidade e à disponibilidade para o maravilhoso da realidade. Hoje é interpretado como se tivesse dito que qualquer assunto deve ser transmitido com a simplicidade que permita ser percebido por uma criança de sete anos. Suponho que esse é o método seguido pela televisão e seria excelente que se ficasse por aí. Mas os livros, Senhor...


* uso esta sigla em vez do nome para evitar que o 'google' traga aqui pesquisadores que iriam ficar desiludidos e porque desde pequenino que sei que não se deve invocar o santo nome de Deus em vão.
** não sendo um suicida entusiasta recuso experiências cujos efeitos perniciosos consigo identificar a tempo nos outros.
*** deixo aqui o preço para aqueles que tiverem a oportunidade não a deixarem escapar, pois é livro para depois disto ficar sem reedição milhares de anos.

Artur Torrado

quinta-feira, janeiro 11, 2007

E o meu futuro foi aquilo que se viu

O amigo Japinho fez-me interromper a hibernação para me lembrar do que é que queria ser quando fosse grande quando era pequeno. A seguinte é uma das versões.


Acabamos por ser sempre o que queríamos ser em crianças mas não tínhamos nem dados nem discernimento para descrever. Isto porque o querer é uma força, e no caminho que os dias de hoje nos reservam apenas impera a eficiência da vontade que cada um tem. Admito portanto que na origem, nos primeiros anos, no tempo em que ainda pensava sem pensar que pensava, a minha vontade incógnita era, já então, ser um equívoco. Mas não era possível, pela força das circunstâncias, assumir uma vontade incompreensível e irrealizável dentro dos padrões que são geralmente atribuídos às crianças. Dizia, por isso, que quando fosse grande, quando tivesse assumido essa idade mítica de já saber o que queria, haveria de ser o inventor da harmonia, da equivalência e do movimento perpétuo. Parecia simples e evidente, como continuam a parecer simples e evidentes os meios para criar e manter uma proximidade formal entre a realidade e a ficção.

Os desejos manifestados na infância são voláteis como os dias e os brinquedos. Nos livros do tio Patinhas, o professor Pardal tinha no laboratório um cartaz a anunciar os seus serviços que dizia: inventa-se qualquer coisa. Devo ter nascido aí no meio do paradoxo dessa frase, e nunca mais recuperei a lucidez.

Descobri já há bastante tempo que o que faz a particularidade de cada indivíduo são as suas doenças, as suas inaptidões para a norma: fôssemos todos sãos e integrados e seríamos espécie extinta de tédio. Olhar para as coisas é a melhor maneira de não as ver e cada verdade pode estar mesmo ao lado do óbvio embora o mais certo seja estar em lugar nenhum. Vale então a infância como o lugar onde ainda havia uma hipótese para a verdade. As frases eram curtas e precisas e cada palavra dizia apenas uma coisa. Brincámos com isso com toda a seriedade até que um dia fomos colocados no mercado...

Passo o trabalhinho a três amigos que andam também com um problema de expressão: Torcato, Lino e Jakim.

Ikivuku

sábado, janeiro 06, 2007

Segunda leitura

No afectuoso 'blog' pé-de-meia, que estimo e visito com a frequência que os dias permitem, era dada notícia ontem de ter sido colocado à venda nos Estados Unidos um boneco representando Saddam Hussein de corda ao pescoço. O primeiro impulso foi lamentar a ideia e estranhar a facilidade ética com que os mecanismos patriótico-comerciais americanos se movem. Mas algo me reteve a mão. E foi a meio da noite, escurecida a mente e a razão, que alicerçado nos comentários indignados, me lembrei: então e se fosse o boneco de um judeu pregado numa cruz? Seria mau gosto? Seria horrível? Seria fanatismo? Seria folclórico? Seria vergonhoso? Seria escabroso? Seria horrível? Seria mórbido? O que seria? Seria comércio, fé ou selvajaria?

Ikivuku

terça-feira, janeiro 02, 2007

Imitação

De quantas maneiras posso eu não saber a mesma coisa?
Fiz as contas e fiz de conta que continuei a não saber.
Que saber poderia eu ter para saber que o meu saber é suficiente?
Não sei, nem sei como saber.
Por isso não sei ainda o suficiente para saber que o que sei é suficiente.
Mas já sei, e estou convicto, que o que sei é mais do que precisava saber para saber o que sei.
Há ocasiões em que sei que já sei tudo.
Não são muito frequentes – diria mesmo que são cada vez mais raras – mas quando acontecem trazem para o elemento instantâneo da memória formas quase certas da existência.
E fico, nesse momento, com certezas quase permanentes sobre o destino e sobre a realidade.
Formas ocultas sem dúvida, sem dúvidas, sem hesitações, sem tristezas, sem tédios e sem medos.
Como se soubesse alguma coisa.
Sabendo ou não sabendo resta sempre alguma dúvida sobre o saber se o saber que se sabe é todo ou apenas parte.
E se um saber que se sabe não sabe se é o saber todo que saber é esse que o saber que sabe não sabe?
Que banalidades haverá para lá do saber tudo?
Posso supor que sei para concluir a seguir que se souber não tenho que supor que sei.
E mesmo que não saiba fico na dúvida se o que não sei é ainda um saber a que falta saber.
Mas o meu jogo há-de ser sempre com o saber.
Não com a mera acumulação de dados – que sei eu? – nem com a estranha ilusão de transformar tudo em números.
O meu jogo há-de ser sempre com essa vacuidade do próprio saber, com aquelas coisas que serão – quem sabe? – universais no tempo e no espaço; saber e conhecimento que não perdem validade nem têm prazo.
O meu jogo é saber do próprio saber uma formulação eterna e insaciável de partículas capazes de conviverem todas no mesmo lugar sem que o espaço-tempo as perturbe.
Mas eu não sei se existe esse saber.
Sei que não sei se existe esse saber e isso é uma forma de saber que posso saber mesmo não saber.
E saber não saber pode ser o saber que é possível quando ainda não se sabe nada.
Porque até hoje, na minha busca desastrada de saber mais, mais não tenho encontrado que saber que não sabe, conhecimento que não conhece, tempo que passa, espaço que se ocupa, energia que se gasta e medo que se renova.

Prólogo

segunda-feira, janeiro 01, 2007

Crédito

Não procuro o mistério nem a assombração.
Não me interessam os lugares que servem de esconderijo às lendas.
Desprezo realmente a ocultação e o truque.
Não tenho paciência para os enfeites nem para as divindades.
Aborrecem-me de morte os exercícios de adivinhação.
Não consigo olhar duas vezes para as ilusões fanáticas.
E a magia serve-me apenas para brincar.

Prefiro dizer que não sei.
Que ainda não, e que talvez nunca venha a saber.
Pensar a ignorância como o estado em que se está à espera.
Pensar o desconhecido como lugar onde ainda não cheguei.

Mas este não é hoje um lugar muito habitado.
Só vejo ânsia de acreditar.
Só vejo ânsia de receber.
Dificilmente encontro alguém à procura.
É raro o rosto que aceita morar no intervalo entre a escuridão e a luz.

Perfilam-se no horizonte exércitos rigorosos a defender verdades.
Constroem-se muros a separar mundos.
Matam-se em cada reduto todos os sinais de crítica e razão.
Rendem-se os pensamentos à sabedoria enlatada.
E acredita-se, acredita-se muito, acredita-se em acreditar.
O crédito como Deus acima de todos os deuses.
Alinham-se contra uma parede os corpos que não alinham.

Estaremos a chegar ao fim da linha?
Não sei...
Não procuro o mistério nem a assombração...

Sísifo