sexta-feira, agosto 31, 2007

Postdezassete

Às vezes penso, como tu, que era bom que eu fosse outra pessoa. Era melhor que em vez de este eu que sou, fosse outro eu que não este. Em vez deste silêncio pouco amável, um outro silêncio ruidoso que enchesse o espaço e a razão. Em vez desta cor baça feita de cinzentos, tons vistosos de fogo e de céu nascente. Em vez deste movimento lento de tarde de verão, a vertigem ágil de perseguir o tempo. Em vez deste pacto insípido com o acaso, o prazer de decidir sobre as coisas e saber de todas elas o lugar certo.
Era assim não ser eu: identidade por identidade, corpo por corpo, sentido por sentido. Nenhum gesto ainda reconhecível: outro lado, outro lugar, outra sombra, outra certeza.
Provavelmente não serás só tu - e agora eu - a pensar assim, a pensar como seria melhor se em vez de ser eu aqui fosse outro aqui, outra imagem e outra verdade, outro riso e outra oportunidade. Haverá outras pessoas a chegar a essa conclusão difícil, de substituir uma função por outra e nenhuma intenção por alguma. Num plano muito pessoal essa até poderia ser uma forma de definir a escorregadia seta do tempo.
E eu agora, neste confuso mergulhar do verão, apenas consigo encontrar formas de concordância. As mais demonstráveis das verdades têm sido claras a denunciar que não é assim que se é. Há um mundo inteiro de razões, móveis e bem sucedidas, a dizer em voz alta que os caminhos se trilham de espada na mão e olhar no alto. E hoje, por estes dias, não me sobra energia para contestar a veemência dos que sabem e estão seguros de saber que sabem.
Uma casa é um buraco. Para os devidos efeitos uma casa é um buraco. Um lugar onde estamos supostamente protegidos do mundo e da sua gratidão. Mas numa casa, num buraco, não se muda uma vírgula ao discurso, nem se muda de pele, nem de medos, nem de desejos. É do exterior que nasce a diferença, é do exterior que pode surgir o impossível.
Concordo. Era bom que eu fosse outra pessoa. Teria outros pensamentos e escreveria outras coisas que talvez até fosse capaz de ler.
Concordo. Era bom que eu fosse outra pessoa.

Aibieme

sábado, agosto 18, 2007

Férias

Vêm aí as férias e já estou cansado das férias que aí vêm.
Também estou cansado de estar à espera das férias.
Cansa-me pensar em férias quase tanto como estar de férias.
Faço férias das férias de que estou cansado.
Faço de conta que faço férias, descansando das férias que fiz enquanto o trabalho esperava sentado.
Assim faço render as férias para que durem até às próximas férias.

Quando vou de férias espero ficar de férias para sempre, isto é, não voltar das férias.
Porque o regresso das férias é um verdadeiro tormento.
Passo as férias todas aborrecido com a ideia de que as férias vão acabar.
E cansa muito pensar que as férias têm um fim.
Fico cansado a pensar que dali a uns dias, as férias, que ainda não comecei, já acabaram.
É terrível pensar nisso.
Mas é nisso que tenho pensado.
Que daqui a dias vou estar de férias, mas numas férias que mais dia menos dia acabam.
E pensar que mais tarde ou mais cedo as férias que um dias destes vão começar, acabam, dá-me uma angústia mortal e uma vontade enorme de que não seja verdade.
Suponho que é por este cansaço acumulado de estar a pensar que as férias que ainda não comecei vão acabar que estou mesmo a precisar de férias.
Mas as férias de que estou a precisar não são estas férias que vou ter mas outras que não fossem, como estas, tão angustiantes.
Precisava de umas férias em que desde o primeiro dia não estivesse preocupado por saber que as férias que eventualmente me vão saber tão bem, não podem ser assim tão boas porque vão, a dada altura ter um fim.
E não há nada mais angustiante que um fim de férias.
Os dias finais, quando poderíamos estar a ficar realmente adaptados ao sabor pleno dos dias de férias e em que, numa boa hipótese, já nem pensássemos que as férias têm um fim, são, afinal, os dias em que o fim já se aproxima a passos largos e coloca o peso insuportável do fim das férias em cima das nossas costas juntamente com a bagagem.
Mesmo que as férias sejam em casa.
Mesmo sem sair de casa a bagagem pesa.
Porque ficando em casa sem sair, para ter efectivamente férias, aumenta ainda mais a angústia do fim das férias.
Porque no fim das férias é necessário ter uma memória qualquer de férias que possa preencher aquele espaço quadrado onde ficam inscritas as férias como definição.
Não tendo essa memória, as férias ficam indescritíveis, no verdadeiro sentido do termo.
E sendo assim não é possível ficar tranquilamente à espera das férias se não se tem a expectativa de as férias serem num lugar descritível qualquer.
O dilema torna-se verdadeiramente voraz:
Ter férias pressupõe uma carga de trabalhos.
Não ter férias é assumir uma estranha personalidade anti-social.
Ficar em casa nas férias corresponde a aniquilar um ano inteiro de tranquilidade.

Estou muito cansado de pensar nas férias.
Aproximam-se como um monstro, uma tempestade tropical.
Se eu estivesse empregado pelo menos teria menos tempo para pensar nisto.

Torcato Matos

sexta-feira, agosto 17, 2007

Longe

À distância, o cimo da montanha não se distingue da base da montanha.
Isso poderia ser uma razão suficiente para não me preocupar em estar num lugar ou noutro.
E foi assim que senti sempre o meu lugar, estivesse no topo ou na base do gigante megalítico.
Entre o alto e o baixo da rigorosa construção dos elementos, não seria eu a escolher ou dizer o melhor.
Para a natureza indiferente, uma e outra coisa têm um lugar que não permite hierarquias ou ordens.
E eu faço parte, queira ou não, dessa indiferença da natureza.

À distância, qualquer que ela seja, a diferença que se encontra entre as diferenças, é mínima.
À medida que a distância aumenta, as diferenças tendem rapidamente para zero.
E seria fácil rever as diferenças e pensar que as diferenças mínimas não chegam a ser diferenças.

Quando a montanha parece, assim como hoje, íngreme e cheia de impossibilidades, olhar para ela a grande distância, ainda que apenas pelo olhar da imaginação, tem esse efeito de colocar as diferenças numa medida que possa ser medida com o curto discernimento que acolho.
Vejo ao longe a altura imensa que transponho e o peso imenso que transporto, e tudo parece menor e mais leve, deixando ao passo o seu ritmo mais fácil e veloz.
Do olhar distante recolho ensinamentos dúbios que auxiliam por momentos a relatividade fortuita dos sentidos e das dores.

À distância, pode olhar-se para o outro lado da terra e não ver senão grãos de areia, e, semeadas nela, cores que encantam e disfarçam as abissais diferenças que para sempre ficam ocultas.

Mas é essa mesma indiferença que me arrasta para o largo horizonte.
Lá em cima vêem-se as mesmas estrelas, à mesma distância e com as mesmas cores.
Mas há mais estrelas e o céu é mais imponente.
Lá em cima a diferença é maior... e a indiferença também.

À distância este ocaso que me preenche é invisível excepto para mim.
Vejo os astros a moverem-se coordenados como se tivessem uma intenção e me ignorassem.
Penso que é o meu o olhar que lhes dá existência e com isso tento sobreviver.
A minha função de observador do céu, dá sentido ao mesmo céu - retira-o da inutilidade.

No topo da montanha falo com os astros que não me escutam.
Tento escutar os astros e ouço silêncio.
O que quer que eu diga esgota-se na curta distância da minha voz.
Passa-se qualquer coisa com a natureza que não se liga a nada nem a ninguém.
Deve ser isso que nos humanos é errado.

Pressupor que a distância pode apagar todos os ecos e todas as diferenças.
Gerar nas mentes o esquecimento.
Diluir com rapidez os sentidos e as formas.
Mas no fim persistir em algum lugar um vazio que só a natureza inorgânica é capaz de suportar.

Sísifo

quarta-feira, agosto 15, 2007

Verão?

Franca mente com todos os dentes e unhas cada vez que diz pensa logo que existe ânsia na distância da terra com o horror de coisas aos molhos a atafulhar o sótão dos macaquinhos de imitação grosseira, contra a facção que tinha o poder de ficcionar as histórias da caras ou chinas imperiais bem tiradas à noite no terreiro do passo lento do fulano de domingo que plácido clorídrico entra discreto pela montra da loja de porcelanas.
Franca mente todos os dias crónicos agudos, surdos de desespero temperado com saltos do alto da sua importância relativa, improvável sentimento de revisão da matéria dada a baixo custo, saldo de verão mesmo os cegos de nascimento e ocaso do colar roubado em pleno sarau de ginástica ri-te Mica de delgadas mil lâminas que barbeiam mais rápidas que a própria sombra da azinheira que zomba de tudo desde que se tornou ex-trela que prendia o gato e o rato à sua posição de firme convicção e propósito como se fosse sem crer em nada nem ninguém que, como todo-o-mundo, sabe tão pouco que não chega a saber que não sabe.
Franca mente orgulhosa mente feliz mente, uma família inglesa criada e nada que se aproveite no mar da ignorância resoluta a subir com o aquecimento glu-glu como o peru que morre no natal dos animais que nunca souberam falar de carne e de peixe e de outras formas rudimentares de vida extra-terrestre de aquém e de além marte da guerra dos sem ânus que por tal rebentariam de riso com a forma oca dos que sofrem por agosto e com sentimento, delirante de conteúdo e reforma que haverá quem pague uma excentricidadezinha do interior desde que não seja o meu próximo a saber de onde vem a sorte.
Franca mente deliberada mente oficial mente da noite para o dia, filha de mãe em código morsa de dentes afiados pela rebarbadora mor do treino, fogo fátuo de gala e gola comprida, beira alta, virada para a direita de prior, idade média a rondar os mil menos poucos e bons pais de família que se ficam bem à mesa do orçamento grátis pelo correio sentimental e físico imoral como todas a muralhas que seguram a legítima verdade do reino.
Franca mente de mente e corpo são domingos e dias livres da prisão de ventre que dança com lobos nossos irmãos pela parte da mãe natureza morta de tédio e boy de jogo electrónico sorteado num sem curso nem diz coisa com coisa nossa de cada diagnóstico que crê no que não vê à noite quando os gratos são parcos e na dízima infinita periódica se somam totais e notas de música trocada por miúdos com guitarras e lérias, trocadilhos e troca de ilhas e penínsulas conforme as estranhas doenças que pairam na frente genética que me perdoa os pecados da culpa molecular.
Franca mente social mente frontal mente como tem que ser para ser como deve ser e mostrar à exaustão as coisas que ela ainda não viu nem quis ver com medo de ter medo do que poderia ver.

Prólogo

quarta-feira, agosto 08, 2007

Comparação

Sabes? Não é possível chegarmos aos sonhos dos outros. Nem aos nossos. Mas ainda menos aos dos outros. Cada gesto que construímos na particularidade do nosso entendimento, pressupõe uma história, e medos muito próprios. E não sabemos nada dos sonhos dos outros.
No estado puro o pensamento talvez dispensasse a informação do tempo. Mas nunca sairia do seu lugar original. Vogaria em círculos sobre a mesma paisagem, e se não chegasse ao tédio seria por desconhecimento. Mas o estado puro é também ele um sonho, ou mais propriamente um pesadelo.
Na realidade, chamando realidade a este lugar que habitamos com os nossos sonhos, há em cima de cada desejo um peso extravagante de formas, sentidos e perdas. Tudo junto numa bola de trapos que permanece inquieta entre os dedos.
Mas aos sonhos dos outros não chegamos. Arquivamos as frases melhores e sorrimos quando a memória atraiçoa mais um momento que se perdeu. Sobre esse estrado de emoções constrói-se outro andar da torre da nossa Babel interior. Claro que o objectivo é o céu.
Que fazer quando, sobre o tabuleiro, parecem esgotados os movimentos que garantem a vitória? Como viver sem essa vital substância da comparação? Como permanecer no lugar em que não se é sempre o primeiro? Como sentir alguma coisa quando sobre o sentir paira sempre a ave abrupta da imposição?
Quando nasci não me questionei sobre a liberdade. Tinha outros propósitos, e alimentar-me era o que me tornava vivo. Ao pé de mim passou o tempo e houve um instante em que devo ter sentido que o vento era mais forte do que eu. Terá sido aí, pelo acaso de um momento, que me apercebi da estranheza do lugar. Nada do que tinha pensado era autêntico, e olhar para as coisas com atenção não era suficiente para as ver.
Haviam outras formas e outros mundos, outras idades e outras estranhezas, outras manchas e muitos outros sonhos. De cada lado da certeza surgia uma verdade diferente e a cada uma delas eu poderia designar suprema se isso fosse a minha vontade. Também porque em todos os sentidos a minha designação era inútil e a minha vontade etérea.
Nasci num tempo em que já todos os objectos tinham nome. Mesmo as coisas que não se sabia o que eram, eram coisas. E às coisas que eu ainda não sabia que eram coisas chamava aquilo. E o tempo passei-o eu todo a aprender os nomes das coisas, a saber de cor as cores e o números e a tentar arranjar outra coisa que o dicionário ainda não soubesse.
Tempo ganho é tempo perdido de outra forma. O passo que se dá para a frente já tem o seu ocaso no próprio passo. Mas nenhum sonho o distingue de outro. Nenhuma comparação.
Sabes? Não é possível chegarmos a sonho nenhum. Nem aos nossos nem aos dos outros. Este lugar onde ocorrem os nossos sonhos é tão irreal como os sonhos que temos deste lugar. Depois de virarmos uma esquina há sempre outra esquina para virar. E, por causa dos sonhos, as esquinas são sempre outras. Isto é o que se sabe. Haverá outras coisas que não se sabem. O que dói muito a dizer.
Aquilo que eu queria, aquilo que teria feito as coisas parecerem, segundo os meus sonhos, diferentes, era a hipótese, ainda que remota, de haver algum sentido oculto, coisa ainda sem nome, que valesse a pena procurar. Essa seria a razão mais que suficiente para andar por aí, no maior dos tédios, a alimentar o corpo.

ikivuku

quarta-feira, agosto 01, 2007

Por outras palavras...

Mil anos de trabalho precário

"Não existe um clima de medo. A precaridade no trabalho é que tornou as pessoas subservientes."


António Arnaut, Visão