domingo, outubro 28, 2007

Postdezoito

Como sabes sou uma figura virtual. Desajeitado, não acompanho os tempos nem as realidades objectivas. Perco-me no meio dos livros numa busca absurda de compreender o que os outros sabem de antemão não se adaptar ao entendimento. Em tempos associei a esta busca, por força de mitos que me perseguiam, uma benignidade que de certa maneira compensava o desleixo que a natureza me deixara. Mas a sucessão de fracassos, o desmentido insistente das vozes circundantes, a própria inconclusão dos projectos e das pesquisas, derrubaram sem piedade quaisquer veleidades do incipiente amor-próprio. O facto é que só procura quem não tem, e se quiséssemos constituir sobre a experiência uma moral elevada, veríamos confirmada a loucura que é querer chegar a algum lado quando se parte demasiado de trás. E se houvesse algum mérito na procura, esse seria o de cumprir os passos necessários para amar.

Ninguém pode gostar do que não gosta, forçando o gesto ou disfarçando a impaciência. Uma figura virtual é sempre amável e encontra facilmente quem a afague em gestos de ternura surpreendida. Na tragédia do dia a dia o doce movimento de darem a mão, o tempo e a atenção sincera, cativa o rosto e o momento, até que o devaneio e a força do sentir se sobreponham no avaliar da situação. É nesses intervalos que a figura virtual sobrevive e é deles que faz a sua dieta desequilibrada de sentimentos. Depois, mesmo esses ocasionais vestígios de afecto secam e a figura virtual fica à deriva, na carência irracional de um gesto que a faça ser. Entretanto, o objecto da sua atenção, permanece enredado em desejos de realidades ideais, relegando a figura virtual para os pontos baixos da travessia.

Não se é figura virtual por gosto ou por dever. É um local de passagem à espera de oportunidade melhor. Por vezes acredita-se que a mão que se dá é uma mão que se toma e que essa é a ocasião de sobreviver. Mas provavelmente nunca acontece. Há sempre o drama de temermos que as nossas vidas se percam por tão pouco e fique no ar todo o mundo que, por uma pequena razão, se rejeita. Há uma economia da figura virtual. Não se consegue amá-la mais do que um pedaço e isso não chega nem para quem a ama, nem para a figura que espera um afecto que a salve da sua virtualidade.

O que a figura virtual pede, na sua irracional ansiedade, é ser querida tal como é, sem precisar de uma mutação genética que a faça parecer tão real que não envergonhe ninguém nos lugares de esplendor eleito. Por que a figura virtual ficará sempre justamente intimidada pelo contraste do excesso e da grandeza.

Reconheço que há uma armadilha no sorriso doce da figura virtual. Quer mais do que pede; pede mais do que é capaz de ter; tem mais do que é capaz de desejar. Faz o que pode para ser escolhido mas não pode muito, porque soçobra em todas as comparações, e depois, no fim dos tempos, fica à espera de ser capaz de voltar a sair à rua e enfrentar o sol.

aibieme

Compleccidade

Esta noite uma fúria de cavalos mongóis atravessou a largueza quase infinita da estepe e durante horas permaneceu no ar uma nuvem de poeira que demorou a prática do amanhecer. A quilómetros de distância sentiu-se como um sismo nos aparelhos mais sensíveis. Numa palestra, um cientista aprumado, referiu o facto indirectamente e por antecipação, designando a vida como o sistema mais complexo de todos, apesar de abundante no meio dos gritos. Também houve quem dissesse que era mentira. Ou que a mentira era mais abundante no meio da complexidade, por ser um resultado inesperado de se saber. Também a complexidade poderá ser falsa se isso for necessário para provocar um sismo mais efectivo e capaz de trazer o medo para ordem do dia.


Esta noite uma fúria de cavalos mongóis feriu temporariamente o silêncio quase infinito da estepe e perturbou a harmonia oriental do tempo. As informações recolhidas no terreno são contraditórias. O próprio terreno é contraditório. Algumas horas depois do possível acontecimento já o planeta se revolve incomodado no seu assento confortável. As notícias bifurcam-se e milhares de opiniões ponderadas até ao limite, amplificam as cavalgadas das estepes para as suas consequências globais, para o equilíbrio geopolítico e para a gestão equilibrada dos recursos e da fé. Nenhum passo é deixado ao acaso ficando pouco espaço livre para a natureza nos surpreender de novo. Um alto funcionário do ministério da fraternidade universal garante que todas as medidas estão a ser tomadas para que os prejuízos no bem estar das populações sejam mínimos.


Esta noite uma fúria de cavalos mongóis, entregues sem freio à sua liberdade, perturbou a delicada impaciência do sono dos justos. Fonte autorizada afirmava pela manhã que é completamente estúpido que um corpo queira outro corpo abraçado ao seu, e esse outro corpo não possa ser outro corpo qualquer mas um corpo de que sabe o nome e alguns pormenores da razão e que tenha de ser aquele e só aquele. Haveria de ser feita legislação a legitimar em referendo sobre estas reprimíveis peculiaridades da complexidade das células. Na internet corre uma petição a favor da estepe.


Esta noite uma fúria de cavalos mongóis consumiu a sua energia vital em inúteis acções de prazer. As nações unidas irão deliberar sobre a tomada de notas de todos os contribuintes para que colaborem no esforço global de produtividade. O consumo de futilidade cresce e não há mãos a medir. No Brasil, como cá, chamam otários aos que cultivem, ou tentem cultivar, os valores clássicos que contrariam a lei da selva. Foi decretado, pela ordem natural das coisas, que os modelos de sucesso são os que se medem pelo poder e pela sua decidida estruturação.


Esta noite uma fúria de cavalos mongóis, contente com a sua natureza prática e instintiva, trepidou a lâmina delgada onde se abriga uma multidão de afectos desencontrados. Correu pelos ares a poeira longínqua a assentar sobre a lágrima titubeante dos rostos desconhecidos, já incapazes de se aperceber do trote magoado que passa silencioso à sua porta. Detectives particulares apontam o dedo à complexidade excessiva. Consideram necessário um recuo. Foi-se longe de mais. Que se tomem medidas para que não haja tanta divergência nos caminhos das estepes. Urbanizem-se as consciências. Desenhem-se com clareza os caminhos e os sentidos. Calem-se os trotes desafinados e as disfunções operativas. Respeite-se o estabelecido e as suas definições.


Esta noite uma fúria de cavalos mongóis estilhaçou mais um pote certezas.


Beatriz Teresa

sexta-feira, outubro 26, 2007

quinta-feira, outubro 25, 2007

Gurulândia

O meu fundamento é ser capaz do impossível. Passar a correr sobre o banal e colar-me com ambiguidades a incertezas absolutas, contabilidades de números primos afastados pela força do vento moderado a norte do sistema monte junto à estrela cadente.

Todas as manhãs acontece este arrefecer do tempo que resta num clima de suspeitas do costume milenar. Acordo com o real um texto de princípios activos combinados com insatisfação pelas coisas difíceis que fazem a vida parecer-se com uma viagem ao centro da terra prometida por um político activo como um detergente concentrado pelo marketing.

O guru diz que nenhum gesto é impuro e garante que já a seguir o número será perfeito, ajustado ao valor da inflação do desejo e ponderado pelo peso insignificante de um sonho de claras em castelo de mouras encantadas. Jura o guru que não jura por ser conhecedor do futuro e temer acima de tudo o passado com a sua história mal contada pelo sim pelo não pelo talvez não se consiga conhecer para além do primeiro momento em que ainda todo o segredo é pouco.

Não é justo que se queime um destino com um fio de navalha a pena do tigre que já moribundo às riscas desarmadas, inscrito na paisagem apagada pela morte inesperada de Deus todo ponderado em libras de ouro negro de fome e peste ratada pela misteriosa ganância dos dedos que guardam no bolso barragens cheias de suor e sangue azul de febre e cansaço infame. O medo caiu como chuva ácida sobre a multidão aconchegada à sombra dos direitos tortuosamente conseguidos no papel de embrulho da revolução cravada de hipocrisias e insistências em objectivos sem gente nem sentido, trocando tudo por um ai pode ou não pode comprar mais uma lembrança deste dia, desta hora, deste segundo que já cá não está e precisa de ficar marcado na memória imediata do navio mercante que vai à china buscar a mercadoria que compra nadas vazios e alarga alegremente a curva de gauss espalhando em todos os graus o sismo pragmático do contentamento por estar vivo e produzir nem que seja mais um momento branco no alvo do silêncio.


Prólogo

segunda-feira, outubro 22, 2007

Pérolas (XL)

Vêm aos pares! A numeração romana é muito traiçoeira.

Focagem


Ambição

- Quando me dizem que não tenho ambição percebo que gostavam que eu tivesse as ambições de quem me diz.

Grande plano

- A ideia é fazer planos e a prática não os cumprir. Ter rotinas e quebrá-las. Jogar muito e perder sempre. Sonhar de noite e falhar de dia. Desconfiar do futuro e recear a morte. Rir de tudo escondendo a dor.

Heliopatia

- O sol ofusca e tem o efeito de queimar entrevistas. Com Catalina Pestana percebeu-se que já tinham passado os tempos de lucidez. O procurador mostrou que é um gato em risco de se constipar. Quem mais vai o sol queimar?

Deus

- Ainda falta surgir no universo das crenças uma religião que acredite em Deus como supremo incompetente.

Corrente

- Desde que vi por aí a "corrente da página 161", passei a só ter à mão livros com menos de 150 páginas.

Ternura

- Há um pretensiosismo descabido em nomes como País Basco ou República Checa. Mereciam a ternura de se chamarem Básquia ou Chéquia.


sexta-feira, outubro 19, 2007

Tuning desportivo

A 8 de Setembro surpreendia-se o Público Digital com a sondagem Marktest a considerar que "Wrestling é o site desportivo mais visitado". Também a mim o 'desportivo' me soou como uma pancada na cabeça, mas acho que recuperei.

Nos últimos tempos o fenómeno dos auxiliares químicos para melhorar o físico dos atletas parece ter-se tornado o desporto favorito dos homens. E das mulheres.

O desporto-rei, pelo menos cá entre nós - que noutros países há outros - já só é atraente se jogado e ganho pela nossa equipa.

Perante estes factos e outros semelhantes, evidencia-se que, tal como o Geocentrismo e Deus, o Desporto morreu. A ideia romântica de Ele ser uma forma de unir e exaltar o humano está definitivamente arrumada no sótão. O ténis, o golf, o futebol, a fórmula um, até o atletismo, são formas de valorização económica como quaisquer outras, e destituídas, por isso, dos valores humanistas que as geraram: o atleta é um painel publicitário ambulante.

Proponho por isso, para que não sejamos obrigados a assistir diariamente a mediáticos actos infames e a não menos mediáticos arrependimentos, que se passe a aceitar em sede própria os fenómenos desportivos como eles são.

Poderia haver, sem prejuízo do que já existe, uma Volta à França para Dopados. Porque não? Não há já a Volta à França do Futuro? Esta seria ainda mais à frente. Quando vou para o meu emprego com uma dose adequada de anti-depressivos todos me felicitam por trabalhar tão bem disposto.

Poderia haver um campeonato mundial de Fórmula I para espiões. Ou uns Jogos Olímpicos para atletas carregados de esteróides - Jogos Esteroidimpicos! Se há os Paralímpicos... Aí sim, haveríamos de ver os verdadeiros limites do ser humano, e ficaríamos maravilhados por um humano - com o devido tuning - fazer os cem metros em menos de 5 segundos. No símbolo dos Jogos, em vez de cinco argolas, poderiam estar cinco comprimidos... às cores.

Em termos económicos seria fascinante. As modalidades haveriam de ser mais diversificadas. Surgiriam novos canais temáticos especializados a passar vinte e quatro horas por dia os melhores - ou os piores - momentos. Haveria mais e melhores patrocínios. Porque uma equipa de râguebi em que só se bebesse cerveja poderia competir com uma que só bebesse whisky e pelos resultados sabermos o que é melhor: as marcas teriam aí um confronto directo de potencialidades. Com a vantagem de se poderem conceber modalidades que tirassem partido das novas realidades sociais, como equipas só de emigrantes clandestinos, equipas só de ex-toxicodependentes, equipas só de pedófilos, selecções nacionais só de estrangeiros, equipas amadoras só de divorciados, equipas de jornalistas tendenciosos a jogarem - e a ganharem - com jornalistas isentos falidos, campeonatos mundiais de aberração. São milhentas as hipóteses que existem de ir ao encontro do que realmente as multidões anseiam.

Cá em Portugal, por exemplo, para promover as audiências, seria garantido o sucesso de um desporto, tipo futebol, em que os árbitros só estivessem autorizados a favorecer o Benfica...



Lino Centelha

quinta-feira, outubro 18, 2007

Adiamento

Na base da montanha espera-se um milagre.

Saio de manhã cedo para o meu mistério e vejo agitação nas ruas.

Rostos ansiosos, gestos bruscos, gritos nas vozes.

A sombra é ainda grande e a cidade ilumina-se à mão.

Escolho o trilho mais seco para ouvir no chão os meus pés.


As linhas paralelas encontram-se no infinito.

E uma mentira pode sempre encobrir-se com outra.

A falta de esperança não me entristece.

Nenhum mundo é deste reino.


O movimento muscular aquece o coração e o sonho.

Cada passo presume outro e bastam-se todos com essa certeza.

O cansaço, hoje, ainda está longe.

Vem apenas quando o objectivo já está à vista e já é inútil.

Como os gritos da partida, como os olhares ansiosos, como a esperança.


O tempo acompanha-me calado.

Sinto-o ao meu lado, monótono e irrepetível.

Faz de cada passo uma festa mas a timidez esconde-lhe a exuberância.

Entre mim e ele nem uma palavra.

Porque também o silêncio vem connosco.


É assim que se repetem as minhas manhãs húmidas ou secas.

A própria paisagem deixa-nos passar como se tivéssemos vontade.

Mas a vontade não veio por não saber comportar-se.


Vamos sós, portanto.

Eu, o tempo, o silêncio e a minha carga.


À tarde voltaremos com o cansaço atravessado na garganta.

A sensação perfeita de uma missão não cumprida.

O corpo arrastado na sua segura insegurança.

A roupa colada ao ardor da pele.


Nas ruas, os rostos ansiosos, bruscos, em gritos.

Assustados mas contentes pelo milagre de estarem vivos.


Sísifo

Pobres de dia


Espera

Podemos fixar-nos em pequenos pormenores da existência, como palavras, risos ou encolheres de ombros, e dizer deles que não são tudo ou que o tudo é outra coisa, nenhuma coisa. Ainda assim tudo o que se diga será prova de impaciência.

Centro

Há aqueles que consideram os seus locais os melhores do mundo. E há outros para quem qualquer lugar é melhor que o seu. Os primeiros têm o privilégio de viver no centro e aí poderiam ficar se fossem honestos. Os segundos viverão uma procura inquieta por terem nascido já derrotados.

Défice

A minha necessidade diária de ficção tem-se reduzido a um ritmo superior ao do défice.

Vertente

Deixei de ler poesia vertida. Mesmo a que é feita por poetas é um trabalho escorrido em segunda mão.

Livros

Sobre o livro "Como falar dos livros que não lemos?" do Pierre Bayard - nº1 Top Vendas França - só me ocorre dizer que é uma grandessíssima merda.

Pobre de espírito

Cavaco Silva diz que o "envergonha um pouco" haver em Portugal dois milhões de pobres. Pois eu tenho muita vergonha por haver pobres em Portugal e noutros lados, e de ter o Presidente que tenho, que age e fala como se não tivesse nada a ver com isso.

Posse

Depois de ler uma polémica sobre a cópia na internet de músicas e textos, lembrei-me que faltava referir a questão da posse, uma figura social que se mantém inexplicável.

terça-feira, outubro 16, 2007

Pena de morte


Muro

Foram muitas horas de treino em frente ao espelho. Um trabalho duro, difícil. Mas agora também já consigo sorrir sem que ninguém perceba.

Selva

Mesmo uma empresa honesta, admitindo que existe, tem toda a vantagem em chegar ao mercado com perfil desonesto, por que toda a gente sabe que honestamente ninguém tem grandes lucros e tanto os investidores como os clientes gostam de estar do lado do sucesso.

Filosofia

Aos treze anos dizes, defendendo o teu ponto de vista, que "ser humano é querer ter dinheiro", à maneira do "penso, logo existo" de Descartes. Saiu-te sem pensares, ou porque já não é preciso pensar para pensar assim.

Justiça

Parece-me que a principal razão por que alguns políticos estão a eleger o fim da pena de morte como prioridade internacional, é a tendência recente para levar a julgamento antigos governantes.

Esperança

Li num 'blog' que os 'Sinais' do Fernando Alves permitem enfrentar "um dia agitado com um sorriso imenso na alma". Fiquei contente por saber que havia mais alguém.

Forma

Todos os dias sou confrontado com evidências sobre a inexistência de lugares perfeitos. Mesmo assim há no bater contínuo do coração uma qualquer particularidade que me faz continuar a procurá-los. Pelo menos estou entretido.

Sentido

Quando há o risco de a História se inverter, com os pobres a perderem a vergonha e a começarem a roubar os ricos, os governos compram pistolas novas para os polícias.

segunda-feira, outubro 15, 2007

Manga curta

Margens

Tudo o que disse ontem sobre margens parece-me hoje bastante errado. Margens erradas. A noite de domingo não é propícia a dizer coisas definitivas. É véspera de fato e gravata e de movimentos controlados pelo tempo. Há margens que cheguem para todos. Mesmo à multidão podemos aceitar as acefalias como temporárias - tais como os nossos instantes de lucidez - e ter, por isso, esperança que o mecanismo celular da evolução não se dê por esgotado ou satisfeito.

Eu

Papeis, textos, restos, pedaços, tempo, vontade. Listas. Regresso. Vai ficando a vida dispersa em pedaços, e esta surpresa resulta, como as outras, de marcar o futuro com formas previsíveis. Tudo é surpresa e nada é surpresa. O movimento do tempo é igual ao do texto e daquilo que se quer comunicar - ou esconder. Procura-se a essência, por vezes o esqueleto, a estrutura, outras o princípio vital, o sopro inicial, outras vezes outro mito qualquer, a irrecusável analogia, porque se parte do lugar onde se está e não de outro sítio qualquer. Entender, compreender, tornar possível, contínuo, o discurso do conhecimento. Insatisfaz o salto - a quem insatisfaz, que não ouso entrar no que outros pensam - porque qualquer descontinuidade é uma ruptura, uma imperfeição. Ainda assim o único discurso legítimo, porque tendencialmente um testemunho, é a primeira pessoa, a abominável primeira pessoa, livre do território das hipóteses secundárias, e sempre afirmativo, mesmo que errado, mesmo que duvidoso.

Melodia

Quando não perceberes a letra tenta dar atenção à música.

Insectos

Hoje voltei a vestir manga curta. O aquecimento global veio visitar-me com um sorriso vencedor. Eu e os mosquitos ficámos felizes.

Susto

Estava a olhar para a beleza jovem de uma empregada de bar e a pensar que esta beleza a que damos valor não resistiria às dificuldades de uma vida um pouco menos amparada. Lembro-me de como uma mulher que amei ficava feia quando se afligia ou perdia o controlo da situação. O rosto do medo é, ele próprio, aterrador. Perante o desconhecido o rosto transfigura-se e revela o que parece estar antes dele. Não deixa de ser estranho que considere mais autêntico o que se revela na aflição do que o que ocorre na normalidade.


Artur Torrado

domingo, outubro 14, 2007

Pérolas (XXXIX)


Publicar o que se escreve, mesmo desta forma universal e directa, é propor ao estranho o embarque nas peculiaridades do nosso mundo. O sucesso, chamemos-lhe assim, é conseguido quando, independentemente das razões, o nosso mundo tem eco no mundo de um leitor. Esse eco, essa receptividade, é um acaso que comove pela sua improbabilidade. Um dia talvez me detenha a enunciar a multidão de factores que contribuem para que mundos de alguma semelhança se não encontrem. Mas não é esse o meu propósito, agora.

Interessa-me antes pensar como essa improbabilidade ao mesmo tempo que fascina, perverte. A enunciação que hoje se promove procura filtrar-se das consequências angustiantes do acaso. Instala-se, por isso, no lugar das multidões, na esperança de uma visibilidade reforçada e de que o olhar particular pouse, por definitivos momentos, sobre o texto sofrido. Mas a multidão é cada vez mais um ruído uniforme que marcha em uníssono e, refém da sua própria visibilidade, fixa a limitada atenção no dedo que lhe aponta o caminho. Perante a voz monocórdica da realidade restam ao humano os caminhos da integração ou da margem:

integrado passa a dispor o seu mundo como o dos outros e, alinhado, terá a alegria de um sistema de códigos evidentes e reconhecíveis, e a facilidade dormente do pensamento pré-fabricado, imune à estranheza;

na margem, na dispersão infinita das possibilidades, apenas terá garantidos a consciência e o olhar.


O puro acaso levou-me, há uns tempos, a uma página que se propunha numa limpidez inocente. Cativo das palavras, liguei-me a elas e fui seguindo a sua efervescência. Depois houve o "Registo de Nascimento" que trouxe da Livro do Dia e agora o "E como ficou chato ser moderno" recolhido em Lisboa, para evitar o mau ambiente que o fim-de-semana levou a Torres Vedras.

Agrada-me que a convivência com o acaso tenha estas surpresas vitais: caminhos que são alternativas à estrada principal, congestionada pelos modelos fortes da produção. Em vez do drama oco da política, em vez da comédia fácil da economia, em vez do ensaio obeso das religiões, em vez do obsceno romance financeiro, a poesia singular de quem vive.

sábado, outubro 13, 2007

O Segredo do Nobel

De ano para ano vai-se confirmando que o comité que escolhe o Nobel da Literatura tem um critério totalmente determinado pela edição em Portugal.

Muitos falam de pressões políticas, económicas, religiosas, etc., mas após uma cuidadosa verificação dos dados acumulados ao fim destes anos todos, os únicos parâmetros que permanecem incontornáveis são a inexistência de edição do novo Nobel em Portugal (ou edições descuidadas e há muito tempo esgotadas) e estarem sempre fora das listas de 'nobelizáveis' enunciadas pelos comentadores nas várias publicações que antecedem a grande decisão.

Começa a ser claro que o comité Nobel tem como objectivo - incompreensível - lesar os editores portugueses. Ninguém poderia acreditar que houvesse tão sistematicamente critérios errados na escolha dos autores a editar. Só pode mesmo tratar-se de uma tramóia. E tendo o Nobel da Literatura o único objectivo de promover as vendas de determinado autor, estamos perante uma atitude inqualificável por parte da Academia.

Estou a imaginar que nas semanas que antecedem a atribuição, a Academia Sueca destaca para Portugal um ou mais agentes que vêm verificar exaustivamente os autores viáveis que em Portugal não se vêem nem se falam. Perante os relatórios e os faxes e 'e-mails' com as sugestões que aparecem nos jornais, o comité Nobel limita-se a ir riscando da lista qualquer nome que tenha o privilégio dos editores portugueses. Depois, entre os que sobram, fazem um sorteio, porque estão muito em cima da hora da entrega e já não há tempo para os ler.

Só isso explica que uma escritora como Doris Lessing, com mais de cinquenta livros publicados, tivesse hoje à venda nas livrarias apenas a obra "Gatos e mais gatos", que, por acaso, são histórias sobre gatos, mas poderia ser uma obra sobre os disparates do Governo, ou sobre o PSD (o tal saco de gatos), ou mesmo um manual para cuidar desses fantásticos animais.

Uma vez mais a Academia troçou dos Editores Portugueses. O que vale é que mesmo sem Nobeis, alguns editores vão sempre arranjando um Segredo para compor as contas.


(A título de exemplo, o Nobel de 1955, Halldór Laxness, foi editado este ano em Portugal... ao que sei, pela primeira vez. Mas mesmo nisso alguns editores são pouco escrupulosos, pois anunciam como inéditos livros que estão esgotados ou que tiveram novas traduções.)

Artur Torrado

quarta-feira, outubro 10, 2007

Queda

Adblock

Há quem diga que as letras das músicas não têm que ser poéticas. A prova disso é a voz desta leitura que acrescenta música e sentido a um texto que não os tinha. Obrigado Finúrias.

Sísifo

terça-feira, outubro 09, 2007

Corrupçãozinha

A minha corrupçãozinha ocasional consiste em roubar textos que de maneira clara dizem coisas que me agradam, me supreendem ou me indignam. Os autores que me desculpem, mas eu pagava para que estes textos estivessem disponíveis para todos... desde que não fosse muito caro...


domingo, outubro 07, 2007

Ecologia mental

A televisão enquanto produto tóxico.

sábado, outubro 06, 2007

Pérolas (XXXVIII)

Há 'bloguistas' que custa a crer que sejam desta terra de pensamento engessado...

A K e o Y

A Presidência da República fez um espectáculo comemorativo do 5 de Outubro com Katia Guerreiro, apoiante e mandatária de qualquer coisa durante a campanha eleitoral.

Carmona Rodrigues também usou dinheiro da Câmara de Lisboa para fazer espectáculos com o seu apoiante Toy.

De muitos casos semelhantes se vai ouvindo falar no nosso jardim à beira-mar plantado.

Suponho que é esta a atitude educativa que melhor define a detenção do poder em Portugal: usar os bens públicos para servir os amigos.

E a amizade é uma coisa muito bonita.

Vão passar muitos anos, séculos talvez, antes que o espírito pimba que enforma as nossas 'elites' perceba que um K e um Y não chegam para parecermos modernaços.

E que antes de falar da importância da educação se perca um bocadinho a pensar na importância da cidadania e da honestidade.