sexta-feira, março 28, 2008

Postvinte

Como vês não acontecem muitas coisas na nossa ausência. Os estados de ser ou de não-ser anulam-se, e tudo é varrido no mesmo efeito de memória apagada. O facto é que, depois de termos estado num lugar, já não somos os mesmos. Mesmo que, pelo artificio raivoso do esquecimento, não saibamos porquê. Só confrontados com a crença e com insólitos testemunhos podemos ousar discutir o efeito pragmático do tempo.


Se eu acreditasse em qualquer coisa, mesmo que fosse em paradoxos, poderia distrair-me a encontrar correlações difusas entre causas e efeitos, ou entre razões e emoções, ou mesmo entre factos e desejos. Mas sei - fiquei entretanto a saber - que o que quer que procuremos só terá valor se o não encontrarmos.


Acordar todos os dias com o vazio a enrolar as mãos, acaba por tornar muito importantes pequenos sinais que se insinuam no tremelicar das pálpebras.


Há navios que se movem no propósito de chegar a lugares comuns. Há outros que percebem no caminho os bons ventos e avistam na distância o sucesso da empresa. Mas também há os que andam à deriva, sabendo ou não de existirem portos seguros, sempre ignorantes do vigoroso manejo do leme.


No essencial há um momento em que se percebe que a justiça é uma construção. Frágil e retorcido programa de actividades, muito palavroso, muito livresco, muito retórico. No essencial há um momento em que se percebe que a justiça é uma coisa que nunca é como deveria ser: é uma ideia muito cerimoniosa e volúvel. Ainda assim melhor que nenhuma. Uma deriva entre continentes que não se querem perder.


É sempre esse o problema: perder. Nenhum gesto é feito sem que se contabilizem as perdas e ganhos. Mais que tudo as perdas. E quando assim não é criam-se lugares fechados para os esconder. É por isso que a justiça e a verdade - e outras que tais - são ainda e sempre vestígios dourados de uma fundamental lei da selva.


Não acontece mesmo nada na nossa ausência. Passam as mesmas pessoas pelos mesmos caminhos com as mesmas expressões de amarelada contingência, vogando nos cérebros intenções vorazes. O alimento é dos que não perdem. Dos que contam os grãos que se podem arrecadar até à morte e, se possível, derivar pela corrente sanguínea das gerações.


Nem tudo será assim hermético. Nesta quase-escolha que se faz de como ir, aparecem por vezes ilusões a perturbar-nos a probabilidade. Suponho que, como o pássaro que bica nervoso a inesperada semente, a única saída é entrar no jogo e, se for caso disso, morrer nele, asfixiado em drama. Uma roleta russa que tem como única moral o acaso. Justa, portanto.


Aibieme

segunda-feira, março 24, 2008

Forma


"Eu tinha uma fazenda em África...". É esta a primeira frase de uma narrativa que este filme (África Minha) conta com a inteligência de saber mostrar que a primeira frase de uma história é sempre e irrecuperavelmente última de outra coisa.

(Eduardo Prado Coelho)


As coisas acabam sempre antes de nos apercebermos.
Na continuidade dos gestos não damos conta da discreta evaporação dos objectos.
O risco sistemático da inércia prolonga os movimentos que já se esgotaram na fronteira.
E, à frente de um rosto imóvel, as imagens perdem o sentido e a direcção.


O nadador dá as últimas braçadas já sobre a margem segura.
Agora imóvel, o cavalo ainda rasga o espaço em potência.
À janela, o passageiro vê na paisagem baça um esforço de persuasão.
No quadro, pintado a cores nuas, é descrito um futuro.
E, no chão do pátio, ainda goteja a tempestade de ontem.


Todo o movimento me recomenda um destino.
E dele chovem palavras de incitamento à desordem.
A quadrícula encarcera o desenho alinhado de certezas.
Parecem elas querer dizer outra coisa que já não sabem por esquecimento.


Não há meio termo.
Mesmo que seja lá que se passe todo o tempo.
Entre o regular bater de um coração e a fria redundância da neve.
Espaço vazio, mesmo de faltas e de lacunas.


Passa-se o tempo na ausência.
A corroer esperanças, pedaços de lenha e lágrimas.
Peças soltas de uma cabeça quebrada por ambições inverosímeis
Em dois curtos passos o salto: do universal à singularidade.


Em todos os lugares são deixados vestígios de sangue.
Marcas que se organizam para deslocar a razão.
Entre a desistência e a revolta.
Elas próprias ávidas de vestígios de sangue.
Tal como antes, matar para não morrer.


As coisas começam sempre antes de nos apercebermos.
Seja por acaso ou por destino, o resultado é o mesmo.


Sísifo

segunda-feira, março 03, 2008

Rasto

Cada vez mais as palavras se escrevem de silêncio.
A história não deixa de ser a minha história e é contada com tempo como se ainda houvesse tempo.
Pouco importa o pouco que sabemos sobre o que é o saber.
Apenas contam os passos que se contam enquanto se dobram as esquinas que escondem os lados adjacentes.
Passos que dou à procura da palavra que ainda falta para preencher o enigma.
Jogo que se faz ao entardecer com os restos mortais de um dia mais.


Cada vez mais as palavras se dizem por gestos.
Foge de nós o momento que estávamos à espera.
Foge de mim o lume que antes tinha iluminado os dedos pálidos.
Mas não são bem fugas.
São aproximações a outros lados que já têm consigo a sombra e a matéria condensada.
Supõe-se, segundo os antigos, haver um lugar onde as vozes aproximam o belo.
E, a ser verdade, vale a pena o voo sobre lugares de tais promessas.


Cada vez mais as palavras se escondem.
Os lugares chamam-se agora por números inteiros.
Calculam-se com luzes nervosas a cintilar de precisão.
Cada momento é um excesso insuportável à espera do seguinte.
Não sou capaz de descer essa rua inclinada.
A palidez do projecto dá-me náuseas, e não encontro no caminho a alternativa à distância.
Pergunto às sombras que tempo falta para o próximo comboio.
O tal que nos vai levar para o lugar anunciado.
Dizem-me silêncio.


Cada vez mais as palavras morrem.
A figura ausente acende em brasa o último cigarro.
Uma palavra pode ser bela mesmo que não seja o que diz.
A ausência tem peso e simetria, baila à beira do abismo com vontade de partir.
Não é com gestos bruscos que empurro o tempo.
Cada segundo no seu lugar.
Pela última vez. Irrepetível.
Para onde vai o tempo que por aqui passa?
Que pressa o leva daqui tão rudemente?
Que sábio encanto o move com tanta decisão?


Cada vez mais as palavras se esgotam de tédio.
Descuidou-se a certeza de conhecer o futuro.
Pairou sobre o medo a astúcia banal da alegria.
Caiu a águia no chão da rua iluminada.
Às vezes basta uma letra para que tudo seja diferente.
Ou a pontuação que não pontua.
Um simples som digitado com lenta ternura e o tempo cala-se de espanto.
Vago bater de asas de um viajante eterno que passa pela arquitectura da matéria sem deixar rasto.
Menos a memória que fica pousada no ramo alto de um sobreiro.


(corrente)

Sísifo