quarta-feira, abril 30, 2008

Postvinteeum

Quando nos despedimos pela primeira vez, naquela calma própria que antecede os cataclismos, disse-te, naquele retardamento que me é próprio quando os acontecimentos me transcendem, que sim, que pois claro, que tudo bem. De facto, para que servem os afectos, mesmo aqueles que parecem transcritos de uma certa mitologia, senão para se dissolverem no tempo e sofrerem o remate travesso do esquecimento? Não havia nada a objectar naquele momento relativista em que as razões da liberdade se sobrepunham, de uma maneira clara, a quaisquer veleidades de escrúpulo ou memória. O corpo é mesmo assim: mesmo que nade com esforço nada pode fazer contra a intensidade fundamental da maré. Em todos os aspectos do corpo.


Quando nos despedimos pela primeira vez, num lugar que entretanto esqueci por se sobrepor a outros lugares onde nos voltámos a despedir outras vezes, não fui capaz de perceber, naquele momento relativista, como de um corpo que se havia perdido do meu, o meu corpo não cederia assim tão facilmente, mesmo que naquele instante relativista, a minha inércia própria se tivesse enregelado de impossibilidade. De facto, para que serve um corpo, mesmo um corpo que se perdeu do seu próprio sentido, senão para aquecer um momento e depois se arrefecer para sempre? Nada havia nos sinais mudos do corpo inerte que não desse a entender que sim, que pois claro, que tudo bem.


Quando nos despedimos pela primeira vez, numa data que ficou submersa de outras recordações mais fortes, pensei, naquela maneira obscura que tenho, de acreditar que tudo pode ser pensado e divinamente submetido à razão, que o que tinha de acontecer tinha acontecido, não como estava escrito nos livros ou no destino, mas como estava descrito na desordem natural das coisas. De facto, que podemos nós hoje querer mais do que uns minutos de harmonia antes de algum fogo de artifício que faça morrer o tédio? O que procuramos no outro é consolo e vibração, intensidade e devaneio, confronto, movimento e tempo. E cada passo que se dá tem que ter essa formalidade fractal, essa redundância de uma surpresa que surpreende por ser a surpresa de que se está à espera.


A sorte é que nunca se sabe tudo. Cada dia vai acrescentado novos dados e esquecendo outros. Ambos igualmente certos e verdadeiros. Uma cadeia de certezas que se vai ligando ao desconforto de outras. Cada dia vai mostrando como ontem estávamos errados e hoje não. Uma roda que corre substituindo umas verdades por outras, uns sorrisos por outros, uns abraços por outros, uns medos por outros. Tudo muito vagamente no estreito intervalo entre a verdade e a ficção. Tudo muito ligado a este estranho mundo que estando obcecado com o medo de nada ser permanente, acaba por divinizar a mudança, como os antigos que ofereciam às divindades tirânicas o que de melhor tinham, por terem medo de as ignorar.


Aibieme

quinta-feira, abril 24, 2008

Rumores (1)

Ele lançou a bomba!

sábado, abril 19, 2008

O meu pé de laranja lima

Mesmo que não mate, a doença vem de repente e apossa-se da nossa vontade. Eu tinha dito que não voltava a cair. Eu tinha repetido para mim próprio que não queria voltar a ficar assim dependente de drogas duras, de venenos poderosos, que não sabemos se nos curam ou nos destroem. Tinha sido uma decisão pensada em dor, depois de ter caído uma segunda vez nessa mesma impossibilidade. O que eu escrevi, em páginas e em tempo, a justificar elevadamente essa decisão que, num certo sentido, equivalia a uma morte antecipada! Quanta frase solta, desligada de sentimento, deixei cair no saco roto das boas razões! Razões pensadas dessa maneira pragmática que diz ser melhor morrer do que sofrer.

Mas tem que se lhe tirar o chapéu. É mestre em estratégia. Vem de lugares inesperados. Inesperados em todos os aspectos. Nem nos meus mais arbitrários pensamentos me teria lembrado de defender aquilo que, a ter um equivalente, seria o buraco de minhoca que liga e aproxima lugares do universo a inconcebíveis distâncias canónicas. Não, nunca me teria defendido de coisas que nem acredito. Meras teorias, pura matemática. Tirava-lhe o chapéu, se o usasse. E vergo-me à ironia. Eu, encostado à teoria da relatividade, sondando nas insónias os paradoxos da mecânica quântica, jogando aos dados com o prazer da bondade do caos, fui apanhado na dobra da esquina de uma humanidade sem uma pinga de sofisticação cínica.

É brutal imaginar que depois de Hugo, Proust, Joyce e Mann ou de Beckett, Bellow, Bernhard e Borges ou mesmo de Musil, Vila-Matas, Walser e Yourcenar, pudéssemos, ainda humanos, estar sujeitos à casual diletância dos humores. Tínhamos tudo para ser hoje marinheiros seguros mesmo no mais encrespado dos mares. Atrás de nós foi assegurada em celebrada glória, a transição digna de assustados e miseráveis a orgulhosos e prudentes. Estamos, talvez desde Newton, sobre os ombros de gigantes. Como é então possível que olhos que viam deixem de ver?

Se eu fosse capaz de perder este orgulho mínimo garantido, talvez aceitasse que afinal ainda há coisas capazes de surpreender. Talvez fosse capaz de reconhecer que pelos caminhos mais exóticos podem chegar ilusões de calibre exagerado. Talvez até chegasse a acreditar que os afectos são mais do que moléculas em súbita e implausível concentração. Mas o tempo fez de mim este pedaço de cérebro entranhado de maneirismos, sempre atento às bolorentas relações de causa-efeito, e insatisfeito apenas quando a função matemática não se ajusta claramente ao objecto animado.

Não me bastava já a prosaica relação de amor-ódio com o acaso, sempre disposto a ironizar sobre o meu destino, fazendo-me ter do jogo o suave uso regular, para, nas derrotas sucessivas, acumular um crédito capaz de um dia me fazer proverbial justiça. Porque é verdade que não são notas que eu quero, e a música tem sido o meu salário de fome. O que esperava era um prémio de paciência, de consolação ou, eventualmente, de mérito estatístico.

E quando dou por mim, vejo nas mãos vazias um tremor repetido. Voltou como o ladrão ao local do crime onde alegremente se serviu. Desta vez encontrou-me com defesas que eu julgava intransponíveis. E derrubou em três tempos a minha perspicácia. Liquidou a minha intransigência e fez de mim um amável espantalho, disposto a vender a alma por um fio de luz.


Ivo Cação

sexta-feira, abril 18, 2008

Pérolas (XLVII)

Cá por casa estávamos preocupados com a redução de magia no mundo. Mas entretanto surgiu o Pirum e uma nova fonte de pérolas.