segunda-feira, julho 04, 2005

A Bhianca

O desagradável cheiro a alcatrão que paira sobre a vila, deixa a Chris agoniada. Se fecho as janelas, o calor opressivo impede até os pensamentos; mas as janelas abertas enfermam o ar de um escuro perfume betuminoso que entra nos pulmões e aí fica a desencadear o gás venenoso das palavras. Ainda faltam alguns meses para que cesse este entusiástico negrume autárquico. Entretanto Chris padece com o calor e com os aromas, resmungando ódios e avolumando ainda mais as suas alvas, estáticas e contundentes formas.

É quase um paradoxo que esta renovada escuridão do asfalto me lembre Bhianca. Lembra-me Bhianca e lembra-me o ainda mais contrastante formato do arco-íris que a acompanhava na sua deslumbrada e livre confrontação com as variedades cromáticas da luz.

Conheci Bhianca no lugar que não era o seu. Na luz de Lisboa ela tinha no rosto o contraste total da cor do seu nome, que não nos olhos, e no brilho polido da pele reflectia-se a multiplicidade deslumbrante dos tons impossíveis. Nascera com a cor natural do lado de lá dos trópicos e viera adolescente na inesperada intenção de colorir o cinzento triste do nosso fado. Vaga intenção, digo eu que amei Bhianca na distância obtusa que a idade impõe. E no entanto...

Conheci Bhianca pelo rasto de cor e vento que deixava na vertigem do movimento provocado pela música: mola automática que saltava dos ritmos que lhe fizeram o corpo, na ancestralidade do seu continente. E mais não vi eu senão a cor que era feita de todas as cores que escassamente cobriam o negro fulgurante que no dizer dos físicos atrai e absorve toda a luz.

Conheci Bhianca como quem conhece a selva luxuriante, onde não é possível a um delicado corpo leitoso sobreviver. Destemida, na força de um corpo dotado - esse sim sobredotado - para projectar a evolução através de seres que valha a pena existirem, Bhianca ousava levar o movimento e a cor para os olhos dos incautos e taciturnos mirones que, como eu, procuravam ainda alguma alma no meio das derrotadas cinzas.

Conheci Bhianca, digamos assim, por uma espécie de exclusão de partes, como se na difracção da luz no prisma, numa escada de cores, eu tivesse, por acaso, aberto tanto os olhos que entre a ultra-violenta cor do medo e a infra-verdadeira cor da honra houvesse lugar para as mágicas cores que uma mulher carbono puro e cristalino pode emitir na dureza máxima do corte da ilusão.

Conheci e amei Bhianca, como a conheço e amo hoje, na arte suprema do que vejo e na combinatória infinita das nuances que desafiam a imaginação e a memória. Falo de Bhianca apenas do que vi e das emoções reflexas que brotaram perante a face de alegria feroz que se arrastava como a fúria de quem quer da vida mais do que promessas não cumpridas.

Ivo Cação
© diasquevoam.blogspot.com


2 comentários:

Bastet disse...

Ai, escasseiam-me as palavras para que te diga de forma menos óbvia que qualquer mulher gostaria de merecer este post. Já te disse, escreves de forma soberba.

vague disse...

Bom, nem sei q dizer. Falando muito a sério, seria um prazer e uma honra (meus) ver estas páginas impressas por uma editora, através de alguém q tenha saiba ver o indizível. Belo, belo, belo.
Obrigada.