sábado, dezembro 16, 2006

Pérolas (XXVI)

Nada como o natal para nos aproximar dos que gostamos.

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Pérolas (XXV)

Fico na dúvida se é um 'blogue' ou um brilhante manual de sociologia.

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Repetição


O meu prazer é a rotina.
Em cada dia é completamente claro o meu percurso.
Todos os dias, todos os meses, todas as estações, todos os anos.
Pego na minha carga e subo a montanha.
Faço o meu esforço diário quase com prazer.
E é um prazer chegar lá cima e aliviar o corpo.
Delicia-me então o efeito majestoso da pedra a rolar violenta pela encosta reduzindo de novo a zero o meu trabalho.
Nunca me desilude este meu caminho.

Falam-me do aborrecimento, da monotonia de fazer sempre o mesmo gesto.
Dizem que o meu viver é absurdo.
Condenam na origem a minha aceitação do castigo.
Negam a humanidade do meu processo.

E eu não sei que palavras usar para me defender, sem ferir a felicidade imensa que vejo brilhar nos olhos dos outros que, ao contrário de mim, não se enredam na simplicidade da rotina nem na vastidão do absurdo.

Fico a olhar cheio de esperança, convencido que estou da inutilidade do meu método, para a bonomia ardente das vidas envoltas na atraente pirotecnia da diversidade industrial.

Agrada-me vê-los.
Perceber as estratégias que usam para ludibriar o destino.
Encontrar aqueles movimentos bruscos que dão sentido às suas vidas irredutíveis.
Aperceber-me dos jogos com que se confrontam para estarem confortáveis.
Ver de longe as piruetas que fazem para se sentirem vivos e actuantes.

Talvez sejam excessos da minha rotina, estes movimentos de voyeur sobre os meus vizinhos felizes.

Não me lembro quando deixei de procurar contentamento.
Antes ou depois de condenado, não sei.
Escondeu-se da memória como os outros propósitos de ser.
Ilustrar cada dia como exemplo passou a ser o único horizonte.
Uma derrota conseguida com investimentos brutais.

Não sei como dizê-lo.
Não sei como afrontar o meu sentimento imediato.
Não me ocorrem as palavras ao mesmo tempo necessárias e suficientes.
Quem estaria na disposição de concentrar a atenção num disco riscado de evidência?
Quem acolheria uma frase que não picasse, de alguma forma, as entranhas?
Quem daria atenção a um gesto que não ostentasse potência?
Quem olharia duas vezes para um rosto sem marcas de escândalo?
Quantos contariam os batimentos suaves dos que não contam?

Nesta montanha há muitos caminhos e todos se chamam difíceis.
Uns sobem, outros descem e outros destroem.
Os antigos diziam não haver nenhum caminho fora desta montanha.
Eu não sei.
Não tenho nenhuma fé.


Sísifo

terça-feira, dezembro 05, 2006

Névoa

Na pior das hipóteses um castelo. Paredes grossas, resistentes, perenes. Pensamento claramente estático e impassível. Capacidade de previsão inútil a longo prazo. Imponente como um sonho, penoso como um pesadelo. Cheio de palavras e inconsciente dos perigos.
Na pior das hipóteses um castelo. Tinha que ter dito as coisas certas como quem põe pedra sobre pedra. Uma ilusão que dure o tempo de se formar cristal. A palavra chega então definitiva, pura das limalhas, forma perfeita para rolar sobre o chão liso.
Havia um perfume para os gestos. Para que nada soasse a falso e para que os dedos se adaptassem sem esforço ao teclado. Batem leve, levemente, os dedos. De cada som inútil saem imperfeições acústicas a custo zero. É apenas um ensaio. Na pior das hipóteses um castelo.
No olhar para a violência dos espaços formam-se humidades relativas que limitam a clareza e isolam o pensamento. A limpidez que havia sido estimada pelas estatísticas sofisticadas, embrumou-se na berma sensível da emoção. Na pior das hipóteses um castelo.
Toquei ontem com dedos hesitantes a lua. Pendente no bolso esquerdo da sobre-casaca, um fio de linho trouxe do passado o pormenor da divindade. Todos os dias defino a prudência como lei. Todos os dias crio novos deuses. Todos os dias renego a fé.
Sobre a mesa a chávena fumega restos de café. No hálito o sabor já é uma saudade. O que ainda está à vista já não é. Do espaço chegam imagens de astros como eram há milhares de anos. Os fotões viajaram anos-luz sem se esquecerem de onde vinham, um trajecto de infinita solidão na esperança de encontrar um olhar. O que me chega já não é, e tento acreditar que a luz fiel não me mente.
A divindade pergunta: que mais faz? Porque será uma ilusão melhor do que outra? Porquê tomar partido entre dois valores igualmente submissos?
É assim que decorre diligente o tempo dos afectos: chamando milagre à ilusão e nomeando ilusão a verdade. Por aproximações sucessivas. Por afastamentos meticulosos. O fio de linho a quebrar-se aqui e a enrolar-se ali sem convicção nem empenho, sem valor nem rendimento.
Na pior das hipóteses um castelo. Irredutível e veemente. Arremedo de vitória, conspiração telúrica, formalismo, puro formalismo.
Mas, contraditório, vem o desejo difamar a presunção e reduzir a pó as retenções na fonte. Movimento larvar da história a configurar os genes para oscilarem permanentemente entre o dever e o haver.

Prólogo

terça-feira, novembro 28, 2006

Binário

Às vezes é água, outras vezes é terra.
O sol escurece opaco e não há estrelas e é ainda a água que fala.
De manhã não amanhece mas permanecem alguns indícios do tempo.
Cora o rosto de tensão por não saber que medo ter.
E há um fluido de imensidão a esquecer-se no terreno.
Águas abandonadas ao seu destino, prosaicas de gozo e liberdade.

Sobre o asfalto da consciência crescem árvores de artifício.
Não é carne nem peixe, nem gesto de defesa.
Apenas a hora a mudar para o canto escuro da impressão.
Digo à noite que não sei nada do regresso.
As pálpebras ecoam cansadas, sem destino nem defesa.

Há no meio da multidão quem clame por justiça.
Diz-se a palavra como se diz adeus.
O reflexo de não saber dizer de outra maneira.
A astúcia especial em conformidade com as normas.
Nada é ilegal até que se prove o contrário.
E no meio do caminho corre a serpente à espera do repouso.
Um dia mais.

Na beira do caminho os transeuntes saltitam.
Já não há lugares fora dos eixos motorizados.
O passo certo deixou de ser natural como a sede de água pura.
E há muito ruído.

Ouvi os teus sinais esta noite ameaçadores.
Diziam palavras de fim sem sentido.
Ocasiões de morte sem regresso nem esperança.
Não é relevante encontrar caminhos sem lugar onde ir.
Pousam pássaros à janela.
Procuram migalhas de interesse e penas perdidas.
Não é hoje o dia de dar atenção à modéstia.

Às vezes a água, ás vezes a terra.
A lua hoje não vem escudada na ausência bipolar.
Sempre palavras a substituírem coisas.
E coisas a substituírem factos.
E factos a substituírem pessoas.
E pessoas a substituírem o teu nome.
E o teu nome a substituir-te a ti.
Não venhas então que eu espero.
Esperar-te-ei sempre que não vieres.

Na noite ocorreram incêndios em fábricas de pirotecnia.
O fogo esquecido vem então em auxilio do desejo.
Discutimos depois as razões.
Por agora ficamos apenas adormecidos a ouvir o som caótico das chamas.

Parei à porta do destino.
Não entrei.
Fiquei a pensar na minha liberdade.
Às vezes é água, outras vezes é terra.
Nunca o fogo se ateou na minha frente à espera das surpresas.
Não interessa.
O que quer que faça a seguir não estará no catálogo do hipermercado.

Beatriz Teresa

segunda-feira, novembro 27, 2006

Inundação

Sobre o Cesariny falarei, se calhar, quando ele fizer cem anos. Ou talvez nem isso porque este sobre realismo de que se fala na morte é tão convencionado e tão pterodáctilo que eu à margem já vejo excesso de realismo em tudo. Sorrio do realismo e rio do surrealismo. Realmente. Sorriu o surrealista e riu-se o sul do realismo. Real ou republicano. Laico ou apenas um passo em frente. Não interessa. Não fica bem. Não fica nada bem na fotografia o efeito do esgar presidencial que se mostra depois da morte libertado (afinal quem era esse gajo?) enfim nas mãos dos que sabem o que querem. Herdeiros levantai-vos que há muito dinheiro aqui à volta. O espólio é pouco para tantos mas há-de arranjar-se um lugarzinho à mesa. Ainda a tempo do natal e para não ficares triste compra uma consola e joga até às tantas as muitas vidas que te restam. OK. Têm razão. Está tudo surrealista. A margem inundou a cidade com neblinas e nevoeiros matinais e outros que tais. Ficou tudo submerso mas ele não veio. O encoberto nem veio nem se veio nem teve o veio devaneio de saber o que fazer para não se perder no horizonte. Ano zero da era surrealista. Hoje ou ontem tanto faz. Faz-se um rótulo novo para pôr na garrafa e bebe-se na mesma. Nada é mais puro que o mundo novo que se constrói com uma teoria nova. Ainda não criou excrescências nem teias de aranha e nem sequer arranha a garganta ao falar do futuro que já não pertence adeus. Até ao meu regresso. Hei-de voltar uma noite. Todos perceberam. Desde o código daVinci já todos os códigos foram descodificados. Não há surrealimo que aguente tanta interpretação. Aguenta-te men, estamos todos em cima dos teus ombros. Construímos o depois antes do antes, o telhado antes da casa, a utopia antes do sonho. Um dia destes, quando tudo acabar e houver tempo, lançaremos a primeira pedra. Afinal estás triste porquê? Vão dar-te várias medalhas e um título póstumo. Não vais ter de que te queixar. Um edifício e uma instituição com o teu nome, olaré! E a poesia, a tua e a dos outros, que se foda. Porra, não era isto que eu queria ter dito. Mas já está, já está. Pegam agora no cão que ele já não morde. Ainda lhe fazem uma estátua sem ódio. Ninguém tem um espelho lá em casa. Os espelhos partem-se. Falta dinheiro para comprar espelhos. Ponham isso no orçamento de estado. Falta dinheiro para tudo. Dinheiro para comprar poetas. Dinheiro para comprar pintores. O dinheiro agora é todo para comprar criativos. Isso mesmo, ouviste bem, criativos. Desses que estão sempre a criar. Têm sorte os gajos. Compram coisas boas, vivem bem, tem planos de poupança reforma aos trinta anos e não ficam à espera que a segurança social vá à falência. Tudo está em tudo. Ouvi isto em qualquer lado e fiquei convencido. Não precisas de te preocupar. Nós ficamos bem entregues. A corja continua o seu caminho e há-de haver sempre uma catacumba disponível para os vivos que estão mortos ou para os mortos que estão vivos, já não sei dizer. Nasce-se à pressa, vive-se mal mas temos o consolo de ser bons quando morremos. Todos seremos melhores quando estivermos mortos. Percebo. Ficaram contentes por terem menos uma reforma para pagar.

Artur Torrado

domingo, novembro 26, 2006

Pérolas (XXIV)

Para o caso de haver alguém que passe por aqui e ainda não saiba, e como não sou egoísta, recomendo uma visita diária a um lugar onde não se compreendem as mulheres. Recomendo também algum cuidado por que pode ser viciante.

terça-feira, novembro 21, 2006

Indivíduo

Após ler Palavras em Linha


Parece existir no humano uma inadaptação ao limite.

Em criança, quando soube da extensão imensa do universo, aceitei que nunca iria aprender o infinito. Parecia-me que na minha pequena dimensão não caberia nunca essa coisa estranha, essa impossibilidade de um caminho que nunca acaba.

Adolescente, enredado entre a hormonas e a estreiteza insondável dos átomos e da sua miserável pequenez, angustiado por entre dois pontos haver sempre um terceiro, impotente para acompanhar as potências negativas dos números, não acreditava que alguma coisa fosse mais complexa que não haver fim.

Só mais tarde, quando me confrontei com a fronteira, quando tive pela frente o desenlace dos fenómenos, quando o rosto anónimo da morte se impôs como destino, percebi como era bem mais fácil compreender o infinito.

Ao humano, por força do acaso, foi dada a possibilidade de ser o que não é. Lutam nele duas dimensões inconciliáveis: ser finito que pensa infinito. Dividido, corre todos os passos à procura de não ser verdade. A cada acontecimento associa uma esperança e a cada término um reinício.

Nenhum outro animal tem na mente o infinito. Coube ao homem a dureza da opinião, saber sem saber, conhecer sem conhecer, compreender sem compreender. Entre o infinito intolerável e o finito que não suportamos sem ter alguma coisa depois. Mais inconciliável não poderia ser.

Sobre esta disfunção se construiu o delicado equilíbrio da existência humana. Para o não saber criou-se a fé. Contra o fim criaram-se os deuses. Contra o medo criou-se o poder. Contra a angústia criou-se a ilusão. Pela paz criou-se a submissão.

Blindaram-se os sentidos com alusões a sabedorias secretas. Marcaram-se no terreno os extremos do sagrado. A alguns foi dado o direito de subir mais alto. E a todos os outros destinou-se como nobreza o sofrimento.

Não é fácil o confronto com o limite. Saber que ali à frente a curva do caminho se dobra sobre si desarticula a consciência. O fim não tem sentido. O fim é sempre o recurso pobre de um mau escritor de novelas.

Artur Torrado

domingo, novembro 19, 2006

Promessa

O sentido mata um texto. De madrugada. Porta aberta. Vejo as nuvens numa caneca de barro. Penso em ti. Gesto difícil. Quase a seguir há um acordo de princípio entre dois sonhos. Não fico a ver o que se passa. Por preguiça subo a escada até ao sótão. Poderia antes ter descido por uma questão de gravidade dos factos. Mas sabia a mar. E o outro lado da rua fica muito longe. Pesam os restos de ontem nos sacos de dormir. Não é branco nem tinto. Tanto faz que saibas como não por que é. Veio um cobrador buscar os últimos tostões. Não era legítimo. O pai fugira com outro barco mais flutuante. Era o que diziam as criadas à boca cheia de sopa. Durante a manhã choviam canivetes suíços. Abria-se o queijo que o diabo amassou no trânsito infernal. Doía. Pareciam esporas. Trotava-se na encosta. Vigiávamos os passos do conselho. Havia gritos também. Não percebo como foi. Disse que te amava. Era de madrugada. Subiam estrelas ainda. Não tinha onde pousar o pensamento. Foi em ti. Uma noite longa. A madeira gemia de medo. Pausa para respirar. Lá fora era como cá dentro. Um jeito de olhar a direito. Lugares pouco comuns. Sorrisos até. Um xaile a embrulhar os pés. Não percebi ou não persegui. Não sei. Havia ruídos suspeitos de te terem acordado. Eu tinha sono. Ainda. Faltava um sonho para acordar. Nem tinha que ser. Sei de vontades superiores. Como se fosse um tiro. Sem segundas intenções. Um pedaço fino de medo. Lotes para alugar. Não sou daqui. Nasci noutra aldeia. De roupa escura. Negros da fuligem. E do tempo. Ouvia-se também um rio. E um riso. Dizias que não era eu. Que não há sobras. Apenas sombras. Raio das palavras. A crepitarem. Impuras. Salgadas. Não tenho medo de morrer. A laje estava preparada. Haveria sol nesse dia. Os talheres traziam alimento à boca do mundo. Passei a mão pela testa. Vinha branca de cal. Logo a seguir segui-te. Tu não ias nem querias. Ossos de dinossauro. Dê Éne Á de mente. Destino retorcido. Tinha que dizer qualquer coisa. Calado. Mais sombras e menos dias. Não devia ter vindo hoje. A humidade minava a distância. Os saltos batiam na pedra. Não era medo. A fotografia. Preto no branco. Nocturno. Uma soma avultada. Um riso à beira rio. Mistério. Escondi-me. O cigarro queimava os vestígios. Um vulto de cinzas. Os pratos lavados a tilintar. Água a correr sem destino. Vesti-me sem pressa. A luz tardava. Um motor saía de casa. Adeus. Não creio. É um luxo viver aqui. Mais tarde se verá. Por justa causa. Sentia-me nu. A água ainda corria. Tu não sabes nada. O luxo da morte. A casa treme. Não faz mal que ninguém venha. Sinto que não interessa o que vem a seguir. É uma fila muito grande. Chegará para todos. Voltará. Acreditemos nos padrões. O mal repete a seguir ao mal. Como o bem. Ela não percebe o que eu digo. Não percebe nem acredita. É a mesma coisa. É leve a carga. O gesto solto. Poderia nevar. Amanhã faremos promessas. Sóbrios. Pura rotina. Dizer impossíveis. Soletrar. Beijo-te. Ou não. Há um horóscopo e um copo. Bebes dos dois. Eu sei pouco do futuro. Tu sabes tudo. Puxo o fio da camisola. Desfaz-se lentamente. Uma avó levara dias a tecer o meu gesto. Eu ignoro. Ela sabia. Ela dava. Não sei o que mudou. Já não sinto. Mas dói. É o desejo. A nata escolhida. A superfície. O gesto sem causa nem efeito. Vazio absoluto. Palavra pura. A pureza da morte. Escolheste o ponto mais alto. Sem subir. Sem saber. Amanhã faremos promessas. Prometo. O sentido mata um texto.

Artur Torrado

sexta-feira, novembro 17, 2006

Ocaso

Já não gela o topo da montanha.
Escoaram-se as últimas águas anos atrás, quando o tempo quente substituiu a arte de sobreviver.
Junto com a água foram alguns sonhos, e o que se quis que sobrasse como método, foi deixado ao acaso.
Havia então uma providência que sabia por nós todos os caminhos.
Ignorar não era, então, uma coisa boa, e acreditava-se.
A fé era toda feita de visões e parecia que a alavanca não era uma força da banalidade.
Entre a terra e o corpo havia transacção de fluídos vitais.

Sou outro velho do Restelo.
Perco o meu tempo em justificações impossíveis.
Comparo todos os movimentos com a posição onde estava antes e tiro daí impressões de desilusão.
Não são fáceis os caminhos de quem vê.
Por ter passado a ser rotina tropeçar nos pequenos ramos de que antes a tradição troçava.
Hoje come-se com a cegueira e olha-se para qualquer diadema com a ingenuidade dos primitivos.
Cada divindade decadente deu origem a múltiplas divindades douradas.
Os deuses só são deuses enquanto não lhes chamamos deuses.
Entretanto governa o que ainda não tem nome.

Não, não é bom saber.
Pesa sobre os ombros a insuportável responsabilidade.
O que interessa é viver o momento mesmo que seja escasso e precário.
Logo a seguir tropeçar no gesto ingénuo, lido como desgraça e calamidade.
Confundido o instante com o preço da eternidade, dilui-se o rosto seco da facilidade em trejeitos de inocência.
Em algum lugar o génio deixa a lâmpada acesa para que o caminho seja cada vez mais fácil ao cada vez mais néscio.
Orgulhosamente néscio.

Já não gela o topo da montanha.
As estações onde antes parávamos para beber já são secas, ausentes, desabitadas.
Todos os regatos confluem para um lugar apenas onde se afogam prazeres simples e banais.
Fora eu eterno e o incómodo me mataria.
Mas assim vou esperando que a intenção casual que colocou na terra a vida, siga o seu curso de indiferença perante a indiferença que se olha a si mesma com desdém.
A montanha não teme diluir-se no nada.

Sísifo

quarta-feira, novembro 15, 2006

Pérolas (XXIII)

Não sei se é possível escrever melhor do que isto...

terça-feira, novembro 14, 2006

Escuta

Deveria poder dizer do que não gosto com a mesma firmeza com que digo do que gosto. Fazer uma lista dos desgostos tão extensa ou mais que a lista dos afectos. Partilhar com todos dos efeitos sobre as crises de fígado que acontecem quando pela vista passam artifícios que não se harmonizam com a minha atmosfera. Deveria, mas não o faço.
Sei que só assim poderia afirmar alguma liberdade. Só assim faria sentido invocar direitos e deveres com a mesma insistência. Por direito tomaria a possibilidade de dizer do que me dá prazer e alegria. Por dever, por inverso direito, enumerar com rigor, o horror, a náusea ou o simples mal estar. Poderia mas não posso.
Seria honesto da minha parte não deixar passar sob os arcos da sensibilidade as perturbações que rebelam o prazer. Vedar a passagem às agressões elementares e, numa palavra, defender-me. É um direito, suponho eu, recusar a administração de substâncias nocivas à saúde. E mesmo assim não recuso.
Observei por aí os efeitos desastrados de dizer o que se pensa quando se pensa perante o que pensa quem não pensa. E vi que nas simetrias das razões e nas assimetrias das faltas de razão, o género de questões que se põe é do mesmo teor das assimetrias da irracionalidade. Nada parece pertencer a um mundo minimamente preciso, como se por trás de cada afirmação solene mais não houvesse que um ego à procura do desastre.
Não será sempre assim. Acredito. Quero acreditar e é isso que me faz escutar as razões que, no café, às vezes ecoam a mesa ao lado da minha. Vejo o outro lado, outra e outra vez. Um passatempo entre o anárquico e o decadente. Dizem, os que dizem, obcecados com a sua própria justiça, da razão imensa que têm nas disputas que os opõem. E são todos honestos nos seus sentimentos. Tal como eu sou honesto quando uso os meus para me ocultar de odores que me desagradam.
Continuo sem saber se os gostos se discutem. Por um lado, parece que não poderemos nunca compartilhar a dificuldade de sentirmos sempre à nossa imagem e semelhança, e não ser, por isso, possível repor os factos senão da maneira como os recordamos. Por outro, não vejo o que discutiríamos uns com os outros se não fossem essas coisas informes e descuidadas a que chamamos com muita propriedade os nossos gostos.
Discuto o meu gosto e queixo-me de mim, de coisas horríveis que fiz antes de ser o eu que sou hoje. Nada de grave portanto. Trata-se apenas de achar horrível o que então, quando ainda não pensava assim, ou ainda não pensava, ou ainda não tinha deixado de pensar, me parecia bem e por isso o fiz numa convicção qualquer, ainda que instantânea, que me dava a segurança de estar no bom caminho.
Parece ser assim que o tempo passa e se apropria de nós. Leva com ele os lados que entretanto se tornaram desagradáveis e deixa na nossa frente os restos mortais de um sonho especialmente brilhante. É esse o fulano que depois sai à rua e vai divagando sobre o passado, o futuro e os outros que são, à sua maneira, puros reflexos do passado que carregam às costas como um pecado.
Preferia que não houvesse bem nem mal, mas, uma vez que houvessem, fosse clara a maneira de os distinguir e, melhor ainda, que pudéssemos escusar da nossa frente o que não fosse próprio. Mas não sei. Escuso agora, enquanto posso, esse mal que seria não haver nem bem nem mal.

Prólogo

segunda-feira, novembro 13, 2006

A dificuldade de ler (80- C7/P8)

TM - Eu leria. Confesso que à medida que fui investigando foi aumentando a curiosidade.
IM - Talvez seja melhor assim. Na altura ninguém percebeu o que eu escrevi. Aqueles poucos que leram, e os ainda menos que comentaram não perceberam nada. Estavam completamente a leste do que estava escrito. Mas como não queriam passar por parvos perante um texto escrito por um adolescente, fizeram uma festa. É o mesmo que se passa hoje. As coisas não mudaram coisa alguma desde aquele tempo. Quando não se percebe nada, em vez de dizer abertamente que não se percebe nada, fala-se da multiplicidade de significados, da subjectividade do texto, da materialização de caminhos contraditórios, de imensidades criativas e de todo o tipo de disparates do mesmo calibre. O escritor que tem a lata de publicar umas palermices sem significado arranja sempre uma seita de seguidores que depois de se aperceberem do logro - admitindo que alguma vez se apercebem - já não têm como descolar. Umas vezes o grupo engrossa. Outras vezes acaba por desaparecer engolido por outra eclosão que faz os adeptos irem a correr atrás de outra lebre.
TM - Fico estupefacto com a essa sua ideia. Quando se lê a imprensa da época o que ressalta é uma grande admiração pelo seu trabalho. Adorava ler alguma coisa para conseguir perceber o que me quer dizer. O Isidro não me poderia deixar ler pelo menos um deles?
IM - Por mim não me importo que os leia todos se quiser. Só que eu há muitos anos que não tenho nenhum. Aos poucos foram desaparecendo. Suponho que a degradação interior os corroeu.
TM - E não procurou que os reeditassem?
IM - Para quê? Todos os dias se editam uma série de coisas inúteis e redundantes. Para quê alimentar essa onda?
TM - Há pessoas interessadas em lê-lo. Há pessoas curiosas sobre esses textos da sua juventude. É uma frustração não conseguir encontrar um único livro disponível.
IM - É melhor a frustração que a desilusão. Seria um erro enorme gastar dinheiro a reeditar aquelas porcarias.
TM - Não deveria falar assim de textos que marcaram uma época!
IM - Oh Torcato, não me faça rir. Estou a falar de coisas que eu escrevi. Você só 'gosta' desses livros porque nunca os leu. Mas já percebi que não há nada a fazer...
TM - Devia dar uma hipótese aos seus leitores. Não é justo que os prive...
IM - Talvez tenha razão Torcato. Mas enquanto não os lerem a minha fama estará mais segura. Eu próprio fico confuso com os meus sentimentos em relação a isso. Se eu porventura reeditasse esses livros corria até o risco de eles terem sucesso o que seria um drama terrível. Mas na improvável hipótese de notarem a trapaça que eles são o drama não seria menor. Foi mesmo bom que eles tivessem desaparecido todos.
(continua)

Torcato Matos

domingo, novembro 12, 2006

A dificuldade de ler (79- C7/P7)

TM - Acha que "A Águia da discórdia" era premonitório relativamente ao vinte e cinco de Abril?
IM - Eu não tinha sonho nenhum. Eu não era capaz de materializar, nem na forma de desejo, as estranhas sensações que a prima Vera me proporcionava apenas pelo facto de existir, ainda que a grande distância, a mesmo muito grande distância. Era costume a família mais chegada reunir-se algumas vezes por ano. Mas a única altura em que a prima Vera aparecia era no Natal. Não sei se consegue aperceber-se da problemática ontológica que se esconde por detrás de uma vontade insistente que valoriza o ano apenas pela ideia que há-de chegar a noite de Natal. Eu, tal como as crianças, esperava a noite de Natal. Mas o que eu esperava na noite de Natal, a minha estrela de Natal, a minha epifania era a prima Vera.
TM - A Primavera no Natal?
IM - A minha prima Vera vinha sempre à grande reunião de família. Eu escondia-me para que não me visse mas vigiava-lhe todos os movimentos. No Natal de setenta e três ela trouxe o noivo.
TM - "A Águia da discórdia" foi publicada em Julho desse ano.
IM - Sim, ainda escrevi a continuação até Dezembro. Depois nunca mais.
TM - Li no DN de Julho de setenta e três: "Sob a forma de fábula, Isidro Medário, o nosso mais prometedor prosador da jovem geração, desenha uma trama extremamente elaborada que de forma rigorosamente poética se encaminha entre o simbólico e o formal, numa ânsia incontida de, perante a anarquia natural das figurações, ofuscar a realidade com uma interrupção brutal do progresso narrativo, evidenciando um estilo marcadamente irregular e criador de soberbas angústias existenciais. O futuro da prosa de raíz sumamente nacional passa por aqui. Depois desta Águia da discórdia nada será como dantes. As letras portuguesas estão de parabéns e entregues em boas mãos".
IM - De novo o tio Alberto. Sempre incapaz de ler. Sempre incapaz de escrever. Sempre incapaz...
TM - Não concorda com esta leitura da sua obra?
IM - O tio Alberto não leu nada. Ele nunca teve paciência para o que eu escrevia. Achava-me um presunçoso. Não percebia uma única palavra. O sonho dele era escrever o meu epitáfio.
TM - Também não consegui encontrar este livro...
IM - Procurou?
TM - Procurei em todo o lado. Andei com a lista dos seus livros nas bibliotecas, nas livrarias, nos alfarrabistas. Está tudo esgotadíssimo. Ninguém entende porque não há reedições.
IM - Hoje não haveria quem lesse aquilo.
(continua)

Torcato Matos

sexta-feira, novembro 10, 2006

A dificuldade de ler (78- C7/P6)

TM - Não sei se se apercebe de como é estranho ter passado todos estes anos sem escrever: o seu último livro data de setenta e três...
IM - Quem lhe disse que eu passei estes anos todos sem escrever?
TM - (...)
IM - Não publicar não significa não escrever. Escrevi. Escrevi muito. Escrevi todos os dias. Não deve ter passado um dia que eu não tenha escrito qualquer coisa.
TM - Refiro-me a ficção... Literatura... Texto literário...
IM - Sim, isso mesmo é o que eu tenho escrito todos os dias.
TM - Há pouco disse que lhe faltava escrever tudo do novo livro...
IM - E é verdade. Uma coisa não invalida a outra.
TM - Escreve para a gaveta?
IM - Escrevo para mim. Escrevo para gastar palavras. Nada mais do que isso. É um processo de consumo como outro qualquer. Poderia gastar muitas outras coisas mas gasto palavras. Sou um consumidor de palavras.
TM - As palavras não se gastam...
IM - Hum... Você aborrece-me. Não me apetece explicar-lhe agora como é que as palavras se gastam. Às vezes irremediavelmente. Tem mais perguntas?
TM - Bom, tenho esta que é a principal: vale a pena esperar por um novo livro?
IM - Não. Muito sinceramente não vale a pena esperar. Nunca vale a pena esperar. No último livro... não me lembra agora o nome...
TM - "A águia da discórdia"
IM - ... eu prometi voltar. Era uma sequela. Tinha a intenção de escrever uma história longa, uma tal densidade de texto que não sobrasse nada para contar.
TM - Que é que impediu essa continuação?
IM - Foram várias coisas ao mesmo tempo: uma espécie de conjugação de contrariedades. Houve duas catástrofes principais. As outras foram acessórias. Em menos de uma semana a minha prima Vera casou-se e logo a seguir deu-se o vinte e cinco de Abril.
TM - A Vera era a sua musa?!
IM - O meu mundo desmoronou-se. Eu não sou capaz de dizer que sonhos tinha; que ilusões alimentava ao escrever histórias sem pés nem cabeça; que marcas havia no tempo que eu procurava registar. Sei que há emoções que condicionam os movimentos. E as palavras são veneno puro.
TM - Não voltou a escrever depois do vinte e cinco de Abril?
IM - Nessa altura eu já sabia tudo. Tinha percebido que me faltavam uns pormenores acerca da realidade, havia alguns tópicos que me passavam ao lado, mas acreditava que não eram muito relevantes e que no fundo, embora não me apercebesse, esses pormenores que pareciam surpreendentes, estavam há distância de uns míseros minutos de reflexão.
(continua)

Torcato Matos

quinta-feira, novembro 09, 2006

Blogues e comunicação

Às vezes não concordo. Outras vezes nem tanto. Hoje o JPP pareceu-me bem.

A dificuldade de ler (77- C7/P5)

TM - Em tudo o que li sobre si nunca notei essa modéstia que agora assume. Sente que o tempo o reduziu? Perdeu combatividade?
IM - Foi o Torcato que preparou essas perguntas?
TM - Fui.
IM - Onde é que foi buscar essa da modéstia? Eu sou um intelectual! Um intelectual a sério. Um intelectual modesto é um intelectual morto! Os livros que eu escrevi há mais de trinta anos não têm nada sobre mim! São livros sobre um adolescente ranhoso e atrasado mental! Percebe? Um gajo tão parvo que preferiu fechar-se num quarto a escrever palermices em vez de sair para a rua e comemorar estar vivo e ser jovem e ter saúde...
TM - Não precisa de se enervar. Apenas quero dar aos leitores informações actualizadas sobre si.
IM - Não estou enervado. Estou a dizer-lhe o que penso. E eu digo sempre o que penso, doa a quem doer. Se me fizer perguntas cretinas, chamo-lhe cretino com as letras todas.
TM - Será sempre a sua opinião. Eu faço o meu trabalho. O senhor responde se quiser.
IM - É uma coisa que me impressiona. Se eu lhe chamar cretino fica ofendido?
TM - Devia ficar?
IM - Eu perguntei primeiro.
TM - É a sua opinião. Não é por me chamar cretino que passo a ser. Não tem o dom de me transformar num cretino. Antes e depois de me chamar o que quer que seja, eu sou o mesmo.
IM - Eu ficaria terrivelmente ofendido. Consideraria uma difamação. Uma afronta. Não consigo interpretar alguém que ouve uma ofensa e dá a outra face. Não consigo entender como se consegue viver defendendo apenas os dois metros quadrados onde se vai ficar enterrado.
TM - Talvez eu não tenha nenhuma fama a defender. O meu bom nome não vale o que vale o seu. Pelo menos em termos comerciais.
IM - Tretas. É tudo uma questão de sensibilidade. De educação. Eu fui educado a competir, a procurar o meu lugar à força. Luta por luta. Disputa de recursos: o mesmo que faziam os nossos antepassados há milhares de anos. Quando quebramos esta regra a evolução pára, a civilização morre. Passamos a invertebrado.
TM - Eu acredito que só se torna violento quem se sente ameaçado. Isso sim é uma reacção instintiva. Digamos que é o medo que desperta a agressividade.
IM - Eu não tenho medo de ninguém e há pessoas que me apetece agredir. Pessoas, coisas, animais. Tudo o que me parece mal deveria ser destruído. Como vê, uma acção de pura protecção do ambiente. Protejo o ambiente liquidando tudo o que o destrói. Já me imagino o herói solitário a não deixar pedra sobre pedra no caminho dos que querem destruir o planeta.
(continua)

Torcato Matos

quarta-feira, novembro 08, 2006

A dificuldade de ler (76- C7/P4)

TM - O seu livro de sessenta e oito, "O pardal apardalado", também resultou de uma sublimação?
IM - Poderia dizer-lhe que sim e você ficava satisfeito. Como prezo acima de tudo a honestidade, digo-lhe que não sei. Ou de outra maneira: que raio de coisa é que pode fazer um rapaz de 18 anos agarrar-se a um caderno que não seja uma terrível vontade impossível de estar a fazer outra coisa? Eu não sei... Realmente não sei. Hoje vejo gajos a serem cínicos ainda adolescentes. Aprendem com a televisão. Mas há trinta anos era preciso ser de muito boas famílias para o conseguir. Quando não se consegue rir contam-se anedotas.
TM - A nota do DN era muito animadora...
IM - Você andou a ler essas porcarias todas?!
TM - "... vertigem dos sentimentos ilustrada com a amargura de sorrisos apenas entreabertos. Os sons que rasam as janelas são demências a florir e o voo solitário acaba por ser o refúgio do herói. Mil e uma incertezas perturbam os segundos de uma alma atormentada pela arte da culpa..."
IM - O tio Alberto era um prato. Ele escreveu muito toda a vida. Mas ninguém o percebia. No jornal acabou a fazer os elogios fúnebres e alguns fretes aos amigos.
TM - Qual é o assunto d'"O pardal apardalado"?
IM - Assunto? Que quer dizer com assunto?
TM - O tema. A temática. A motivação.
IM - Você é engraçado. Não leu o livro?
TM - Não o consegui encontrar. A editora já não existe.
IM - Hum... Quer mesmo saber? O assunto é o mesmo: a prima Vera.
TM - A sua prima?! A filha do seu tio Alberto?
IM - Daqui a pouco o Torcato conhece a minha família toda. A minha prima Vera era mesmo o meu assunto preferido. Toda ela. Não me lembro nada do pardal mas sei que tinha a ver com ela. Sei que foi por causa dela. Quando foi publicado já ela estava em Paris. Se você quer um assunto interessante, um verdadeiro furo jornalístico, procure e encontrará uma prima Vera em cada revolução. É uma inexplicável constante social.
TM - Ela estava em Paris no Maio de 68?
IM - Mais do que isso, ela foi um dos motores. Mas isso é um assunto que não me interessa em nenhum aspecto. Não nasci para promover a minha prima.
TM - Mas escreveu livros sobre ela...
IM - Eu não disse isso. Os livros não são sobre ela: são por causa dela. É completamente diferente. Na pior das hipóteses os livros são sobre mim. Sobre o eu que eu era naquela altura. E como era pouca coisa, o livro é nada.
(continua)

Torcato Matos

segunda-feira, novembro 06, 2006

A dificuldade de ler (75- C7/P3)

TM - O DN diz, e cito: "... transcreve, numa maturidade insuspeitada, um regresso da primavera pleno de metáforas, revolvido numa consciência permanentemente material e evocando com subtileza as belezas próprias de uma juventude que tem o futuro na mão. Adjacente ao peculiar ensejo de comunicar um estado de alma, Isidro enumera sem vacilar, a fugacidade imanente de todas as transgressões. As influências não são óbvias, temos um criador! ..."
IM - Foi o tio Alberto. Já me lembro. Mas deve ter sido a minha mãe que lhe ditou o texto. Ela não deixava nada ao acaso. E foi ela que lhe arranjou o emprego no DN. Mas é melhor não pôr isso na entrevista. Mas eu explico, embora seja um bocado embaraçoso.
TM - Se não quiser não é necessário explicar o emprego do seu tio no DN. Passou muito tempo e talvez não seja um pormenor relevante da sua vida literária.
IM - E não é. O que digo embaraçoso é a génese da "Volúpia de uma andorinha". A filha mais velha do tio Alberto - e minha prima - chamava-se, e ainda se chama, Vera. Era um nome relativamente comum na altura. À partida um nome idêntico a tantos outros, sem nenhuma carga mitológica e com a carga semântica benigna da verdade. O problema é que nessa altura era comum as famílias serem numerosas e era raro o rapaz que não tinha algures uma prima Vera. Ainda assim, nada de mais. Não deveria ser diferente ter uma prima Vera ou uma prima Zita. Mas há fenómenos que nos ultrapassam. Vários estudos feitos na década de oitenta demonstraram que enquanto uma prima Zita é sempre espalmada, usa óculos e não se sabe vestir nem despir, uma prima Vera é estranhamente sobre-dotada pela natureza e, por um desígnio integralmente insuspeito que nem o aquecimento global consegue explicar, está sempre particularmente adiantada para a idade.
TM - A andorinha é a sua prima Vera?!
IM - Não, de maneira nenhuma. A minha prima Vera é a volúpia. E a andorinha, se você não percebe também não lhe vou explicar...
TM - De facto não consegui encontrar o livro. Está completamente fora do mercado.
IM - E para que é que queria o livro?
TM - Quis ler os seus livros para me preparar para a entrevista...
IM - Ó homem de Deus. Que é que você estava à espera de encontrar no livro? Eu tinha dezassete anos, a minha prima Vera tinha vinte anos e era a materialização do desejo. Estávamos em sessenta e seis. Que é que acha que eu podia fazer além de escrever um livro? Quando não conseguimos chegar aos objectos, escrevemos palavras. Mas isso não implica que as palavras falem dos objectos. As palavras são a baba que vai escorrendo para aliviar a pressão. Há quem lhe chame sublimação. E de facto é sublime...
(continua)

Torcato Matos

domingo, novembro 05, 2006

A dificuldade de ler (74- C7/P2)

TM - No seu entender o que é que, digamos assim, impede a saída em breve do seu tão aguardado trabalho?
IM - É uma longa história. Talvez você tenha paciência para a ouvir, mas eu não tenho paciência para a contar.
TM - Dito de outra maneira: o que é que lhe falta escrever?
IM - Tudo.
TM - Tudo?!
IM - Sim, onde é que está o espanto? Um livro antes de ser publicado tem que ser escrito. Antes de ser escrito tem que ser pensado. Eu sei que muitas vezes não chega a ser pensado, mas esse não é o meu método. Eu penso uma história, investigo, acumulo elementos, escrevo esboços, reescrevo e só na fase em que já estou farto de reescrever é que considero a obra terminada. Digamos que termino por desistência. Porque estou farto, porque não posso mais.
TM - Foi assim com os seus primeiros livros?
IM - Hum... Não sei, já não me lembro. Embora pareça que foi ontem não me lembro dos pormenores. Aliás, não há coisa que me aborreça mais do que os pormenores. Perdemos demasiado tempo com pormenores. Hoje é assim que eu escrevo.
TM - Isso quer dizer que está a meio de um texto e está à espera de se aborrecer na respectiva reescrita e por isso não é capaz de prever uma data para esse cansaço...
IM - Nada disso. Ainda nem o comecei a pensar. Como sabe iniciei recentemente um relação amorosa muito intensa e absorvente. A Cátia é uma mulher muito exigente e a minha ex-mulher não é menos. Tem sido uma luta titânica com os elementos para conseguir levar a bom termo esta tarefa. Ainda sou do tempo em que se fazia uma coisa de cada vez para que ela ficasse bem feita. Quando este passo estiver dado passarei a outro. É este o andamento natural da história. Se fazemos concessões no processo artístico, acabamos irremediavelmente a reescrever não o que criamos mas o que outros criaram.
TM - Em mil novecentos e sessenta e seis publicou, em edição de autor, "Volúpia de uma andorinha". Tinha dezasseis anos e o livro foi recebido com grande entusiasmo...
IM - Dezassete. Tinha dezassete anos.
TM - A nota do Diário de Notícias (DN) fala em dezasseis anos...
IM - Foi a minha mãe. Sempre teve dificuldade com as datas. Ainda hoje me trata como se eu tivesse doze anos. Não tenho nenhuma explicação para isso. Mas não é por mal. A esta distância tanto faz. Dezasseis, dezassete. Se fosse hoje já teria algumas medalhas de campeão de futebol. Não há diferença nenhuma. Hoje não deixaria que a minha mãe interferisse no meu processo criativo. Mas nessa altura era menor.
(continua)

Torcato Matos

sábado, novembro 04, 2006

A dificuldade de ler (73- C7/P1)

Capítulo VII (estéreo)

TM - Dr. Isidro Medário, depois do extraordinário sucesso do congresso internacional da Literatura Inclusa, que tão bem organizou e nos deu a honra de divulgar, agradecemos-lhe a disponibilidade que demonstrou para responder a algumas questões sobre a sua carreira literária.
IM - Primeiro tire o Dr.. Desde que renunciei à vida académica e me apercebi do absurdo dos títulos passei a ser simplesmente Isidro. Apesar de já antes prescindir do título fora das minhas tarefas académicas e principalmente na qualidade de escritor. Depois não percebo o que quer dizer com 'também' organizei...
TM - Eu disse 'tão bem', não disse também...
IM - Ah! Tem razão. É que estou tão habituado a em certos meios o 'também' se dizer 'tão-bem' que já me tinha esquecido do 'tão bem'.
TM - Pois é Isidro, eu estava a dizer-te que organizaste o congresso muito bem...
IM - O Torcato desculpe mas eu apenas disse para não me tratar por doutor, o que não quer dizer que tenha que me tratar por tu.
TM - ...
IM - A língua portuguesa tem uma diversidade suficientemente grande para não termos que nos tratar todos da mesma maneira. O facto é que não andei consigo na escola, nem na tropa, nem frequentamos o mesmo café e provavelmente não somos do mesmo clube. Além disso, embora esse aspecto me custe, tenho mais do que o dobro da sua idade, caramba.
TM - Peço desculpa, Dr. Isidro...
IM - Porra que você é extremista!
TM - Não vai voltar a acontecer.
IM - ...
TM - A primeira pergunta que eu tenho para lhe fazer é a que os seus incondicionais adeptos mais fazem: para quando a saída do seu sétimo livro?
IM - Essa poderia ser uma excelente pergunta se eu pudesse dizer-lhe uma data. Sim, seria excelente se eu pudesse dizer, por exemplo, sai daqui a um mês. Ou, sai daqui a um ano. Até já me agradava se pudesse dizer sai dentro de dois anos. Mas como não lhe posso dizer nada disto, é, desde já, uma péssima maneira de começar, uma péssima pergunta, portanto.
TM - Compreendo... Mas há-de compreender que os seus leitores estão há trinta e dois anos à espera...
IM - A arte, amigo Torcato, é irredutível. Não podemos sujeitar-nos às exigências dos leitores. Lamento dizê-lo desta maneira. Trinta e dois anos passam muito depressa. Parece que foi ontem...
(continua)

Torcato Matos

quinta-feira, novembro 02, 2006

A dificuldade de ler (72- C6/P6)

Como vês, hoje foi um dia duro. Duro e ingrato como é próprio dos dias em que se quebram as verdades universais. Sei que amanhã vou descobrir novas incertezas e vou ficar a não saber coisas que hoje ainda sei. É provável que esta seja a última vez que te reconheço e que os momentos que aí vêm me tornem irremediavelmente distante. Para ti isso não é novidade: sempre soubeste que este não era o meu meio, e disseste-me para não vir para que eu viesse com mais entusiasmo. É provável que esqueça o teu nome como quase já esqueci o do pai e o da mãe. Sei que é aqui que não vou ser feliz, mesmo que essa nunca tenha sido a minha ambição. Poderia ter escolhido outro lugar qualquer ou deixado que o acaso decidisse por mim.
As vozes que ouço lá fora, agora que anoitece, são alegres de quem não regressa cansado de um dia de trabalho e está à espera da noite para conhecer. Mas não ouso, hoje, voltar a ouvir-lhes o tom diferente da voz a dizer-me boa-noite. Fico eu, desta vez, a olhar por detrás das cortinas, a ver as sombras que evoluem na rua, divertidas na sua maneira resoluta de andar, como se tivessem uma absoluta ligação ao tempo e ao espaço e por isso não temessem nenhum movimento inesperado. Eu não sou daqui. É provável que nunca venha a ser daqui. Serei estrangeiro, então. Ficarei prudentemente à beira das coisas, na expectativa de um desenlace inesperado. Eles não esperam nada inesperado e por isso eu não sei o que eles esperam nem sei o que eles são. Conheço-lhes as vozes que tomam para mim a diferença na expressão e me põem com isso no meu lugar à margem.
Tu dirás, como sempre disseste, que eu ouço o que quero ouvir e que me coloco no lugar em que sou capaz de estar. Dizes isso depois de teres fugido daqui numa reacção brusca, de que ainda hoje te arrependerias se fosses capaz de te arrepender de alguma coisa. Eu arrepender-me-ei de ficar, da mesma maneira que me lamentaria para sempre se tivesse agora a coragem de abandonar o meu destino. Talvez eu dificulte um pouco a linearidade dos sentimentos. Admito que algumas coisas possam não ser exactamente como eu as vejo. Mas este é o meu primeiro dia aqui, meu irmão. Ontem, por esta hora, passava eu os meus passos pelas poças de chuva à procura da fechadura onde cabia a minha chave. Estou agora num lugar estranho, com um tempo estranho, ouvindo pessoas estranhas que rezam à lua e sabem tudo sobre mim com um simples olhar. Passou pouco tempo. O suficiente para eu saber que cometi um erro e estar na disposição de o manter para todo o sempre. Cometo este erro em vez de outro qualquer. Que é que isso tem de especial?
Digo-te adeus caro mano. Apesar de tudo sempre gostei de ti. És o meu irmão mais velho e ensinaste-me a não aprender, a não gostar, a não querer, a não sonhar. Devo-te, portanto, tudo o que poderia querer não ter sido e sou.
(continua)

Torcato Matos

Livremente

Não quis que soubessem o meu nome quando atravessei a altura máxima da montanha.
Assim também tinha guardado para mim os lamentos e evitado que me vissem eu.
Da mesma forma me dirijo aos lugares ermos e de lá volto no escuro da invisibilidade.

Ontem morreu alguém na montanha.
Tinha todos os gestos certos mas houve um que falhou e a dureza do tempo aproveitou-se.
Não me ocorre agora a tristeza por isso ou por tantas vidas que ontem se perderam.
Ocorre-me antes pensar nesta natureza que cumpro em mim e a que não dou nome.

Não sei até que ponto é patético desfolhar a luta diária com os elementos.
Eles vêm de diversas formas e tomam as nossas mãos nas suas para sempre.
Invadem a propriedade e a atenção como se não pudéssemos ser.
Negam os desejos por um acaso em que não estejam interessados.
Limitam os movimentos às zonas nobres como se esperassem com paciência infinita.

Mas, não, eles, os elementos, não querem.
Passam pela voz pendente dos sonhos e determinam a partir da indeterminação.
Desdenham das poses sem chegarem a desdenhar, indiferentes.
Não pousam o pé na nossa lógica e seguem o seu caminho sem olhar para o caminho ao lado.
Dispersam os porquês em passos aleatórios, abismos, potências, fogo.
Movem o peso pesado do tempo na margem da absoluta marginalidade.

A terra seguiria divina a sua marcha sem nós.
Levaria o seu impulso até que outro impulso maior a perturbasse.
Pó, pedra e lume seguiriam ainda o rasto do lume, da pedra e do pó.

Aqui, no meu passo simples, sou tão natureza como natureza é o trovão.
Sou tão inofensivo como inofensivo é o riacho que desce a gravidade.
Sou tão apático como apática é uma lua a honrar um sol.
Sou tão leal como leal é o frio que volta no inverno.

Não há nomes que cheguem para dar a todas as coisas.
E, por isso, algumas ficam esquecidas de ser e de se ouvir.
Como se a indiferença nascesse de não haver um lugar perfeito para a colocar.

Fogem pelo caminho passos mais apressados que os meus.
Vão animados à procura do que resta para enfeitiçar.
Querem, porque a vontade os impele, querer outras coisas que também querem e fogem.
E o fluir constante dos desejos faz animar o vento e as forças ocultas.

Lá longe, no lugar onde se fecha o horizonte, e onde parece que as espécies outonais se comprimem, há nomes a morrer e outros a nascer, selados os documentos que a história irá avidamente recolher.

Sísifo

quarta-feira, novembro 01, 2006

Pérolas (XXII)

Memórias do fiel-amigo do fiel-amigo...

A dificuldade de ler (71- C6/P5)

Devo dizer que não foi fácil regressar aqui. Estarás neste momento a lamentar o meu execrável sentido de orientação e a rir-te com gosto, imaginando-me às voltas sobre o mesmo lugar, perdido num labirinto construído na minha imaginação. Estou-me nas tintas para o que tu penses. O facto é que este não é o meu meio. Não me sei mover em lugares em que as pessoas são distantes e mudam de tom quando me falam, e em que as casas se parecem mover e mudar de aspecto de cada vez que as olhamos. Esta terra não é sólida. Molda-se como uma gelatina à forma que por acaso a contenha. Tinha andado mais de quinze minutos quando vi uma jovem a quem pensei perguntar o caminho. Foi aí que percebi que não sabia como indicar o meu destino. Hesitei. Ela cumprimentou-me com a palavra chave: bom-dia. Pareceu-me, mas não tenho a certeza, que usou uma maneira ligeiramente diferente da dos seus conterrâneos. Eu ouvi uma coisa diferente mas sou suficientemente lúcido para aceitar que possa ter ouvido o que queria ouvir. Sim, exactamente como tu dizes que eu funciono, quando me queres irritar. Estupidamente perguntei-lhe se me podia dizer qual era o melhor caminho para chegar a minha casa. Ela não se mostrou surpreendida e disse que seguisse pela rua em frente e virasse na terceira à direita. Seria depois a terceira casa à esquerda.
E era. Poucos minutos depois estava aqui sentado a pensar que este não podia ser um lugar para permanecer muito tempo e muito menos para ousar sequer pensar em penetrar nos seus segredos e fixar-me para sempre. Repara que ela sabia que era esta a minha casa tendo eu chegado aqui ontem à noite sob chuva e com as ruas desertas. E eu sabia que ela sabia porque senão não lhe teria perguntado. Este não é um lugar normal, meu irmão. Tu estiveste aqui alguns dias e retiraste-te com o rabinho entre as pernas. Eu sei. Tu não me disseste mas a mãe contou-me. Desesperaste e foste embora.
Está bem. Por isso vou eu ficar. Vou vencer o meu medo e vou ficar. Não é para te vingar. É para mostrar que sou mais capaz do que tu. Que vou mais longe; que aguento melhor as decepções e sou mais persistente.
Ainda não sei como vou fazer. Tenho que respirar fundo e pensar uma coisa de cada vez. Este não é o meu meio e vou ter que lutar todos os dias contra isso. Sei que os que nasceram cá têm à partida mais facilidade em orientar-se. Sabem alguns segredos mas, acima de tudo, é este o ar que melhor conhecem; nasceram a respirá-lo e tratam-no por tu. Eu cheguei agora. Não sei nada. Fico assombrado com o mais pequeno movimento da vegetação. E estou à defesa: à espera de um golpe que há-de vir quando menos o esperar. Apenas tenho esta decisão de não fugir para não me parecer contigo e ficar também, para sempre, a rir-me das impossibilidades.
(continua)

Torcato Matos

terça-feira, outubro 31, 2006

A dificuldade de ler (70- C6/P4)

Nem sempre estamos preparados para a violência. Sabes bem que eu nunca estou preparado para a violência. E naquele sentido que tu costumas usar - e que eu manifestamente herdei - de dar às palavras a oportunidade de se revelarem, estou a ver-te a chamar a violência por um nome belo de uma mitologia qualquer, que os gregos ou outros trastes velhos que te viessem à memória, tinham adoptado para dar vitalidade a uma acção de contraste máximo. Pois eu vejo a violência como qualquer acto inesperado, qualquer coisa para que não estamos preparados, tudo o que destrói um cenário arduamente construído. Esta comunidade violentou-me ao primeiro contacto através de um cumprimento desajustado da minha necessidade. Matou no instante inicial a minha boa vontade. Liquidou com um golpe seco toda a minha ilusão.
Só te digo isto assim porque o teu olhar cáustico está ausente. Se estivesse aí ficaria silencioso como sempre, à espera ainda assim, com um peso de ansiedade permanente, de um comentário exagerado sobre as coisas mais normais e comuns do mundo. Esta distância é boa por isso. Sei que estás aí, e posso discorrer sobre as minhas dificuldades sem ter que ouvir o eco dramático que as coisas simples, os sentimentos claros, parecem ganhar quando frequentam o teu entendimento castrador.
O meu primeiro impulso, hoje de manhã, depois de ouvir a miserável saudação, foi entrar outra vez em casa, fechar-me e morrer aqui de fome e de sede na esperança de que ninguém desse pela minha falta ou sentisse o meu cheiro. E sabes porque não o fiz? Por vergonha. Exactamente, por vergonha. Tive mais medo de fugir do que de enfrentar. Eu sei que é a tua velha treta: substituímos um medo por outro; o corajoso é aquele que tem um medo oculto mais forte do que o medo visível. Eu tive medo que sentissem que eu tinha medo e por isso atravessei a rua, com as lágrimas a quererem rebentar e segui em frente como se soubesse para onde queria ir, dando a impressão de que tinha um destino e para ele teria que avançar de imediato com resolução e vontade.
Várias pessoas me saudaram. Homens e mulheres: em todos o mesmo injusto bom-dia a que fui respondendo com a voz a sumir-se. A seguir, perdi-me. O meu olhar estava de tal maneira posto em mim que não percebi os caminhos que tomei e os passos automáticos levaram-me para onde as escassas casas já eram nenhumas. Alguns passos ainda dei na hesitação de alguém perceber que me encontrava perdido - estranho paradoxo este que cai assim de me encontrar perdido - e só depois, seguro de que ninguém me via, inverti a marcha na esperança de que a minha intuição me devolvesse ao meu novo lar, à minha nova pátria.
(continua)

Torcato Matos

Seno de Pi

Se não tivesse dentro de mim uma cidade;
Se ao redor do rosto se não construíssem castelos;
Se nas nuvens altas não houvesse o vislumbre opaco da beleza;
Se por contar o verde da montanha não houvesse emoção;

Se na tarde outonal os homens não marchassem inclinados;
Se no perdão das sementes não estivesse pendente a vida;
Se, ao largo do horizonte, o chapinhar ousado das aves se esquecesse da óptica ilusão;
Se no lato senso do saber se não contassem semelhanças;

Se na pausa alegre do café se não bebessem muralhas;
Se durante o amor não se fizessem promessas;
Se oculta nas árvores não estivesse a sabedoria;
Se em cima da mesa não se sentisse o frio da lâmina;

Se no olhar ausente não estivesse também o devaneio;
Se por detrás da escada se não subisse ao contrário;
Se o universo não estivesse todo amortalhado no vácuo;
Se as forças da natureza não fossem as mágoas da prisão;

Se o imenso céu não fosse perdido todo em tempo;
Se à sombra da nogueira não se contassem histórias;
Se pela brisa da tarde não ecoassem os vestígios do medo;
Se o canto das aves não se perdesse na dureza da infância;

Se pendurados na certeza não estivessem o ódio e a ambição;
Se sentado à beira do rio não se ouvissem as sirenes;
Se no corte seco da carne não se ouvissem os ais adormecidos;
Se o beijo dado na boca do desejo não fosse um filme;

Se a pátria onde me acolho tivesse um tecto alto e confortável;
Se à beira do precipício não sentisse a atracção do vazio;
Se na prosa árida de quem escreve não se escondesse o desejo;
Se ao pintá-la de fresco a realidade mudasse;

Se na dádiva do tempo o pêndulo rodopiasse uma vez;
Se ao acaso dos sonhos se juntasse alguma vez a satisfação;
Se os olhos pudessem ver algo mais que sombras;
Se o medo servisse apenas para assegurar a sobrevivência

Então, hoje, talvez não quisesse dentro de mim uma cidade.

Artur Torrado

Posttreze

Há muito tempo que não te falo de amor. Reparei há dias que a palavra, sem que se gastasse, se tornou ausente das frases, dos períodos, dos textos e das conversas. Reconheço-lhe uma ausência que não é notada como nas coisas que, por uma razão, ou outra, ou nenhuma, perdem popularidade e deixam de andar nas bocas do mundo. Voltam à memória por razões de acaso ou por nos lembrarmos que já não nos lembramos delas durante os inventários das inexistências.

Há muito tempo que não falamos de amor. Dei conta porque no desuso das palavras elas ecoam como lacunas e cria-se no espaço um vazio de uma leveza inverosímel. No princípio era o verbo que conformava a acção; saíam do desejo os sons articulados em voz activa e flutuava no ar a insistência dos sentidos, e o que se dizia era, mesmo quando não era, a firmeza intransigente do amor.

Há muito tempo que não se fala de amor. Foi o que eu senti quando li sobre expectativas que já não esperavas serem as expectativas que tinhas esperado. Pensei que tinha a ver com a ausência de palavras que soubessem dizer de outro modo o que o corpo já não sabe. Mesmo que o corpo ainda conserve a memória do que perdeu e já não é, nem nunca foi, mais do que expectativa.

Há muito tempo que não te digo amor. Lembrei-me agora ao tomar o café: “amar é a melhor coisa do mundo” está escrito no pacote de açúcar que eu devia dispensar mas continuo a colocar na bica. O doce de uma palavra que fica na boca a dar prazer enquanto atiça as bactérias que desintegram os dentes. Doce que é amargo antes e a seguir, para que tudo se sinta renovado na dinâmica da conquista permanente.

Há no tempo que passa, entre o sóbrio e o sombrio, entre o temor e o tremor, entre o dom e a dor, finas teias de ligação, entre o eterno e o etéreo, entre o prático e o apático, entre o saber e o sabor, que levam os olhos, entre o ver e o viver, entre o crer e o querer, entre o durar e o dourar, para os lugares solitários, entre o vento e o evento, entre o passo e o compasso, entre o cais e o caos, onde se criam amarras, entre o sólido e a solidão, entre o ético e o frenético, entre o mítico e o místico, a coisa nenhuma, entre o vácuo e o vazio, entre o oco e o seco, entre o mérito e a morte...

Aibieme

segunda-feira, outubro 30, 2006

Pérolas (XXI)

O terceiro estado da matéria colectável.

A dificuldade de ler (69- C6/P3)

Quando cheguei, ontem à tarde, a estação estava vazia. Ninguém mais desceu nesta paragem e provavelmente o comboio nem pararia se o revisor não soubesse que havia um passageiro com este destino. É certo que chovia. Mas isso até poderia ser razão para haver gente recolhida no átrio sombrio. As bilheteiras estavam fechadas como se fosse evidente que ninguém irá ter vontade assim de repente de sair daqui. À frente da estação um largo escorrendo alguma água e espaço aberto até uma distância exagerada. Na cidade os lugares estão mais próximos. Não nos falamos mas gostamos de estar em colmeia a fingir que não pertencemos uns aos outros. Aqui há uma estranha segurança como já te disse. As casas ficam a uma distância assinalável umas das outras, dando tempo à terra de ser visível. As indicações que me deste foram milagrosas. Suponho que estas horas todas depois ainda não teria encontrado esta casa que me foi destinada. A chave que trouxe e que agora guardo como um talismã, tirou-me a última dúvida sobre o meu novo refúgio. Gostava de te descrever esta casa mas ainda não olhei bem para ela. A mala pesava e cheguei demasiado cansado para me pôr a vasculhar os compartimentos e a procurar vestígios de anteriores habitantes. Tu tinhas-me recomendado que não trouxesse livros. Mas eu já não sei se as tuas recomendações são bondade ou ironia. Como sabes que faço questão de não seguir os teus conselhos, às vezes já me parece que me dás os conselhos que queres que eu não siga. Seja como for vim carregado de livros. Metade do peso eram livros. Trouxe tudo o que sabia que em condições normais me recusaria a ler. Tudo o que é aborrecido como a morte. Não te rias. Vejo perfeitamente que te estás a rir.
A esta distância não é importante o que penses. Para todos os efeitos agora estou por minha conta, e se te faço saber estas coisas sobre o que se está a passar comigo é agora porque ainda não criei raízes e ainda não sei o que fazer ao tempo. Brevemente deixarás de saber de mim apesar de me parecer que é isso mesmo que queres. Não deveria ter-te dito atrás que não tenho grandes expectativas sobre o que virá a seguir. Por uma questão de orgulho. É-te indiferente o que eu espero ou não. Mas não quero ir por aí. Não me interessa o que pensas. Ponto final.
Foi esta manhã que ouvi lá fora as pessoas a saudarem-se com todo o entusiasmo. Pareceu-me bem. Animou-me. Achei que tinha chegado a um lugar em que as pessoas se conhecem e reconhecem em vez de se temerem. Fiquei contente de aqui estar e preparei-me com cuidado para sair à rua e dar uma primeira impressão agradável, sem estrondo, sóbria. Houve mesmo um instante - daqueles que resultam da tensão natural - em que admiti que tinha todas as condições para vencer muito rapidamente. Posso dizer-te - porque aqui a esta distância não verei o teu olhar sarcástico - que fui capaz, num relance, de me ver já num futuro bem sucedido e mesmo brilhante.
O que me destroçou foi o tom. Um tom monocórdico de bons-dias dados como que mecanicamente. Foi uma verdadeira martelada no sorriso franco com que saí à rua. Logo aqui, ali à porta, a primeira pessoa que passou, quase sem olhar para mim, disse aquele bom-dia mortal.
(continua)

Torcato Matos

sexta-feira, outubro 27, 2006

Pérolas (XX)

Escrevendo direito por linhas tortas: a lei é dura mas é a lei!

quinta-feira, outubro 26, 2006

A dificuldade de ler (68- C6/P2)

Bom, mas isso era o que eu tinha pensado para mim próprio. Ou pelo menos é o que hoje penso que pensei na altura. Embora tenha que reconhecer que não me recordo com precisão se esta ideia me surgiu já aqui, quando a minha imaginação se sentiu defraudada pelo tédio e pela estranha vontade dos autóctones de olharem para o pormenor dos hábitos de quem chega de fora.
Não sou do meio. Estou aqui mas num certo sentido estou expulso. Não sei se te apercebes do que é estar num lugar e sentir que os que estão à tua volta te consideram um estranho. Faças o que fizeres o teu movimento será sempre rudimentar, incapaz de pertencer à harmonia de gestos do grupo. Eles, ao contrário de mim, conhecem os segredos que se foram aconchegando com o tempo à alma que os faz uniformes. Digo eu que conhecem, porque os observo de fora e me parecem mover-se com à vontade na irregularidade medonha dos caminhos, como se estivessem perfeitamente seguros, como se tivessem uma ciência própria capaz de interpretar as mais difusas ameaças.
Não quero que sintas, nem por instantes, que me pretendo colocar num patamar superior. Nem por sombras. Conheces-me, mais depressa faria precisamente o contrário. Mas aqui estou com um objectivo claro de ser justo e ao mesmo tempo consciente da habilidade do tempo para me surpreender. Este não é o meu meio e temo - temer é uma palavra exagerada - que faça o que fizer nunca virá a ser. Não será aqui que algum dia me vou sentir em casa.
Eu sei que me disseste que não me seria proveitoso sentir-me bem num lugar. As tuas teorias do desequilíbrio contínuo - que tu sabes bem me aborrecem continuamente - só fazem sentido ditas à mesa de um café, e mesmo assim depois de um almoço devidamente regado. Dirás - sei que dirás - que é nos meios hostis que as habilidades se revelam. Que é a ter adversários que se aprende a lutar, e outras barbaridades do mesmo calibre. Mas isso é aí no teu lugar onde ninguém te hostiliza e onde te sentes sempre em casa e com as costas quentes. Além disso, aqui ninguém é contra mim. Nem contra nem a favor. Indiferença pura.
Também sei que já estás a pensar que o que me perturba é ignorarem-me. É verdade que para eles eu não existo. Estou aqui mas não existo. Toleram-me, embora eu não saiba dizer a que poderia assemelhar-se um sinal qualquer que demonstrasse que não me toleravam. Sou eu que sinto que me toleram porque não sei dizê-lo de outra maneira. Não há nenhuma manifestação evidente de rejeição. O que eu queria dizer é que a maneira como me dão os bons dias é diferente da que usam para se saudarem uns aos outros. Isso faz-me sentir como não pertencendo ao meio. Tão simples como isto.
(continua)

Torcato Matos

quarta-feira, outubro 25, 2006

A dificuldade de ler (67- C6/P1)

Capítulo VI (mono)

Sabes? Eu não sou do meio. Não respondo pelos mesmos nomes, não dou os bons dias aos da terra sem que eles o façam primeiro porque nem sequer sei se são da terra ou se são de fora. E eles dão muita importância a ser da terra. E quando me dizem bom dia é porque são da terra mas sabem perfeitamente que eu não sou de cá e por isso os bons-dias que me dão não são iguais aos bons-dias que trocam entre eles. As diferenças na entoação, no calor da voz, na firmeza que substitui o canto habitual. Eu sei que é assim porque os ouço trocar os bons-dias quando ainda estou em casa a fazer a barba e eles passam uns pelos outros do lado de fora da minha janela. Falam alto para que todos saibam que se cumprimentam uns aos outros com benignidade e se aceitam e frequentam as mesmas ambições há muito tempo.
Eu não sou do meio. Vim aqui parar por acaso, por força de determinações que me ultrapassam, o que para todos os efeitos tem o mesma importância que o acaso, o puro acaso. Também isso ajuda a que eu não seja do meio. Poderia ter acontecido ter aqui vindo parar por razões de vontade. Poderia ter um desejo há muito escondido no meu interior de vir para este lugar. Mas não foi o caso. Eu apenas tinha uma ideia muito ténue acerca desta existência e nem me passou pela cabeça tentar saber antecipadamente os lugares onde poderia ir parar, para antecipadamente me ir informando e até, quem sabe, começar a desejar estar em algum dos lugares possíveis. Por isso este lugar era como outro qualquer dos que eu não conhecia nem tinha, reconheço, nenhuma vontade especial de conhecer.
Isto aqui não me diz nada, sabes? Claro que cheguei a desejar estar num lugar vago. Mas nunca me parece que tenha sido este. A imagem que eu tinha na cabeça sobre o lugar para onde deveria ser mandado era muito incipiente, talvez um estereótipo daqueles que resultam de algum filme visto na infância ou de uma imagem que se tenha imposto num momento qualquer. Ou uma colagem. Isso, uma colagem de memórias, uma manta de retalhos a fazer de meu lugar futuro. Mas nenhum dos recortes dizia respeito a este lugar. Acho que não me passou pela cabeça que as pessoas dessem os bons-dias umas às outras todas as vezes que se cruzassem. Não isso não acontecia no meu lugar imaginado.
Também não tenho a certeza de no lugar que imaginei haver pessoas. Não que não houvesse lá pessoas, claro que havia, não faria sentido que um lugar fosse lugar se não tivesse pelo menos as pessoas necessárias para o chamarem pelo nome e lhe darem dignidade dizendo a quem as quisesse ouvir que pertenciam àquele lugar. Portanto, o lugar que eu imaginava tinha pessoas, mas não apareciam na minha imaginação. Não estavam à vista. Acho que é fácil de perceber quando as pessoas, ainda que imaginariamente, não querem aparecer. Pessoas tímidas que não se mostram. Ficam a espreitar pelas frinchas das janelas e pelo intervalo dos cortinados, mas não as vemos.
(continua)

Torcato Matos

terça-feira, outubro 24, 2006

Pérolas (XIX)

A magia de ouvir música sem ligar o som.

O travão intelectual

"... em Portugal não é possível ter uma boa discussão - nem sequer entre amigos. As pessoas fogem do confronto, sentem-se mal perante as diferenças de opinião e levam as opiniões tão a peito que sentem as diferenças como afrontas que ferem os sentimentos mais do que excitam a razão e que podem danificar amizades sem com isso aprofundar a verdade."

José Victor Malheiros no Público de hoje e desviado para aqui

segunda-feira, outubro 23, 2006

Vítimas

É verdade, talvez só me interessem as vítimas. Os vencedores, os degoladores, os que gritam da sua genialidade e da sua ligação especial a Deus, os que militam nos privilégios de que gozam e gozam dos privilégios que têm e que fazem com isso poses grotescas e incham a ponto de pensarmos que vão rebentar, esses, esses não me interessam.

Também não sei dizer a que ponto me interessam as vítimas porque não me interessam por serem vítimas. As vítimas apenas me interessam pelo facto de não conseguirem deixar de ser vítimas. É provável que me veja ao espelho e o reflexo me cegue. E logo a seguir pense que estou no meu lugar e poderia estar noutro lugar se tivesse querido ir à procura dele e soubesse enfrentar com a violência necessária os artifícios escabrosos da guerrilha.

É inevitável falarmos de nós próprios. Não me dói nenhuma esperança nem gosto de coisas insossas como solidariedade e outras palavras ainda mais compridas. O medo é simples; a solidariedade enrola-se na língua e fica sempre com uma parte comida dentro da garganta. Interessam-me as vítimas para tentar perceber porque suportam a dor em vez da morte. Porque ficam à espera sabendo, e eu sei que sabem, que nada vem a seguir a não ser tempo e mais tempo de sofrimento.

Há sempre uma vítima a abençoar a glória de um vencedor. Não uma vítima mas várias, porque estas coisas medem-se pela quantidade. A qualidade de um vencedor mede-se pela quantidade de vítimas que provoca. O riso é tanto mais profundo quantos mais forem os súbditos que se rendem ao ridículo.

Por detrás de um homem de sucesso estão, a grande distância, é certo, um punhado equivalente de miseráveis a quem, evidentemente, faltou o querer, a inteligência, o génio, a ambição, a educação, a força e a ganância pare reter junto de si o pouco a que tinham direito.

O interessar-me pelas vítimas, e como já disse nem é bem pelas vítimas mas pelo que as leva a ser vítimas, não quer dizer que goste delas. Não gosto delas nem mais nem menos do que dos abutres que as comem - sem querer ofender os abutres cujo carácter a ciência tem aos poucos reabilitado.

E quando falo das vítimas que me interessam, ou desse jogo estranho que leva as vítimas a procurarem a dor e a encaminharem os seus corpos ordeiramente para a deglutição macabra dos poderosos, refiro-me às vítimas mesmo e não àquelas que soltam queixumes estridentes por estarem ainda na escalada ascendente da usurpação e se sentirem por isso injustiçadas pela lei e pelos que as atiçam.

Este passatempo não tem limites. Depois de um ardiloso comedor morrer, vem outro que lhe fica com a carcaça e nos ombros dos seus iluminados amigos há-de subir ainda mais uns degraus na escala da filantropia. Há dois tipos de degoladores: os que se fecham no silêncio dos seus castelos onde não chegam os rumores pesados da carnificina e aqueles a quem o sangue ferve com mais vigor perante a visão ululante da chaga aberta.

Beatriz Teresa

domingo, outubro 22, 2006

Descolagem

Terapia de grupo

"Hoje não é um bom dia para perceber como isto funciona. Sempre que há futebol, são poucos os doentes. Devia ter vindo a uma segunda-feira..."

Público 22/10/2006

sexta-feira, outubro 20, 2006

POLÉMICA !!!

O Jakim está contra o sim!

quinta-feira, outubro 19, 2006

Desconhecido

Às vezes fico a pensar como seria se eu gostasse das mesmas coisas que é costume dizer que se gosta. Andar pelos mesmos lugares que é costume andar. Ver os mesmo filmes, ler os mesmos livros - aqueles de que todos falam dizendo que gostam muito ou pouco, tudo ou nada. Fico a pensar que seria interessante poder também dizer que segui exactamente os mesmos passos que alguém recomendou; alguém por quem todos temos muita consideração e nós mesmos recomendamos aos outros, assegurando-lhe que perdem muito em não saber desse lado da realidade que toda a gente conhece. Como seria se também eu fosse àqueles mesmos lugares ver aquelas mesmas exposições, mostrando o meu assentimento e a minha discordância, falando alto e bom som de como era irrespirável um determinado autor e outro, meu Deus, indispensável, absolutamente indispensável. Dizendo, portanto, do meu gosto e da minha sensibilidade pelas imagens que fluem e fazem este lugar onde me encontro e onde me movo. Se eu gostasse das mesmas coisas que os outros gostam e as seguisse pelas mesmas razões e pelas mesmas faltas de razão, pelas mesmas emoções, à espera de uma ressonância idêntica, ouvindo os mesmos sons, vibrando nos mesmos espectáculos, fazendo assim comunidade, comunicando, passando a impressão de estar em consonância, ainda que por vezes discordante, mas alinhada no fundamental de ter uma espécie de mesmo Deus e mesma liberdade.

Às vezes fico a pensar como seria se não me desse esta preguiça de pegar em livros aparentemente esquecidos e que eu também não quero que mais alguém leia e levo para casa com a capa voltada para dentro receoso que de repente algum jornal, alguma rádio, alguma televisão, algum ministro cultural, reclame a sua essência de obra prima e quebre o encanto de estar na presença de um inútil que não foi capaz de vender adequadamente o que escreveu, nem antes nem depois de morto e ficou, por isso, à margem, dispensado da grandeza exuberante do número, recolhido à intimidade da inexistência. Fico a pensar como seria se não fosse este egoísmo de ficar frente ao mar a ver ondas únicas e a escutar-lhes o rumor estando à minha volta o deserto de uma praia fria onde não se aventuram os lugares comuns e as certezas absolutas. Se não me desse esta preguiça de não querer ouvir outra vez as mesmas razões porque um vinho, ou preciosidade do mesmo calibre, que nasceu atrás da protecção de uma marca e colhe a benção de uma autoridade, é tão melhor que outro que foi pisado na pequenez de um segredo familiar.

Às vezes fico a pensar como seria bom que tivesse na minha infância e na minha adolescência e na minha juventude e mesmo depois, estado atento àquilo que foi a marca de cada época, e tivesse visto, lido e ouvido os marcos e as marcas que foram eleitas, e tivesse absorvido os mesmos clássicos e as mesmas ideias e os mesmo padrões, e tivesse, no fundo, passado pelo lugar certo à hora certa, em vez de ter perdido o meu tempo a ver, ler e ouvir, objectos absolutamente inconfessáveis, irremediavelmente desviados do significado activo do meu tempo.

Às vezes fico a pensar que não sei estar aqui com a atenção necessária para perceber a importância dos mestres e a polidez dos seus gestos. De facto, que adianta andar por andar sem ter em mente a mágica função de ser luz? Às vezes fico a pensar que não sei ainda o elementar para perceber sequer a importância daquilo que é importante.

Artur Torrado

quarta-feira, outubro 18, 2006

Requerimento

Eu, abaixo assassinado, venho por este meio requerer aquém e além mar de gente vulgar mente com os dentes postiços todos os dias santos e domingos de ramos altos castelos, verdes e amarelos canários na gaiola das malucas mulheres perdidas em série e mulheres sérias perdidas no labirinto de Creta novas leis para abortar o pensamento que o machado corta pela raíz cúbica no volume elevado do som da voz do dono da bola azul cobalto está alto mora todos o vêem e ninguém o atura a gemer imprecações sobre o futuro e o passado desastrado em partes de leão na selva de cimento armado cavaleiro para libertar a avenida de Ceuta das convulsões mecânicas e satânicas sublinhadas com marcador verde eléctrico no Cais do Sodré e não te magoas por levares capacete de aço inoxidável adaptável à evolução dos tempos mortos das pausas para o café esplanada nicola com erros de português e de castelhano a comprar uma aljuba rota por tuta-e-meia volta-volver e devolver o que é nosso a quem não tem nada na profundidade da barragem de fogo preso à lei contra os incêndios das escadas e das almas-penadas e dos corações ao lado esquerdo de quem vê de frente para os olhos de água salobra de santa Engrácia no Carmo ou na Trindade divina da vinha e do vinho que faz uma civilização e depois se corrói com outras drogas estranhas de psicotrópicos ilegais como os imigrantes que chegam como nós carregados de ilusões e ficam satisfeitos com a sopa dos pobres por se estar bem aqui a sobreviver como quem aprende a não ter que saber mais do que a conta da água e da luz e do dinheiro que falta para um euro por dia ou um dólar, tanto faz para atravessar o limiar da fome que acorda o impulso que há em si de investir na bolsa e na energia e na diferença que faz a indiferença perante o movimento uniforme que mente acelerado no vácuo absoluto do Deus único e de serviço permanente sem horário de trabalho e de descanso, tirando um escasso dia em toda a eternidade e é pouco para quem se levanta cedo e não se deita, não chega, anda cansado, deveria tirar férias a alguém, passar uns tempos noutro universo paralelo que pudesse dar-Lhe descanso eterno e ideias brilhantes e com a experiência adquirida fazer nova tentativa, com novos modelos, mais sofisticados, mais ousados, menos agachados às instâncias do poder e menos passíveis de corrupção e de medo e não sei que outras coisas porque a minha profissão, graças a Deus, é não ser Deus e, por isso, não tenho que pensar nem no meu futuro nem no futuro inebriante dos outros que estão aqui ao lado e, por enquanto, não sei quem são nem o que querem, admitindo que querem alguma coisa mas, admito, tem sido difícil chegarmos a um acordo e por isso o melhor é dormir pelo que peça de ferimento.

Prólogo