segunda-feira, dezembro 31, 2007

Pérolas (XLIV)

O melhor 'post' de 2007!

terça-feira, dezembro 25, 2007

Pérolas (XLIII)

Um texto muito bem adaptado à época, seja qual for o ponto de vista.

segunda-feira, dezembro 24, 2007

Boas Festas


Este ano, aos que forem passar o Natal à terra, desejo que não fiquem por lá. E aos outros também.

sábado, dezembro 15, 2007

Super cliente Sapo

Nem só os meus amigos 'bloggers' me enviam inquéritos a sondar a minha inefável personalidade. Os meus amigos do 'sapo' também estão muito interessados nos meus dados pessoais, provavelmente porque estão na corrida para identificar quem são os tais que andam a desinquietar a noite da cidade do Porto. Ou quem anda a levar caixas multibanco para casa, sei lá. Aqui vai o último inquérito que me vai garantir 4,5 kg de Toblerones.



Consegue imaginar o que faria com 4,5Kg do delicioso chocolate Toblerone? Consegue? Então tudo o que imaginou poderá vir a ser realidade!


Preencha o formulário que se segue e habilite-se a ganhar um dos 45 Super Toblerone de 4,5Kg


1. Para tal, tem de ser um Super Cliente de um, ou mais, dos seguintes serviços: - Serviço de Telefone Fixo da PT Comunicações - Serviço SAPO ADSL - Serviço Sapo Mail - Serviço SAPO Messenger.


Nome -------------------- Lino Centelha

Morada ------------------ Mem Martins City

Telefone de Contacto -----9XX XXX XXX


Nota: Se for um dos vencedores, será contactado para o número de telefone indicado em "Telefone de Contacto"


2. Sou um Super Cliente...


PT Comunicações - Número de Telefone Fixo ---------- 21X XXX XXX

SAPO ADSL - Username do acesso ADSL -------------- as????????????@sapo

SAPO Mail - Endereço de Email SAPO ---------------- ???????????????@sapo.pt

SAPO Messenger - Endereço de Email utilizado no SAPO Messenger ----------- JAMAIS!


3. Mas não basta ser um Super Cliente... terá de nos convencer disso. Inspire-se e escreva uma frase a explicar porque é um Super Cliente.


Sou um super cliente, mas tão super cliente, que quando se olha para mim se vê logo que sou um super cliente. Tenho um telefone fixo que quase não uso mas que tenho que ter para ter o ADSL e pelo qual pago, quer faça chamadas, quer não faça chamadas 15,32 € por mês. A ligação ADSL propriamente dita custa-me a módica quantia de 35,57 €. Pago, portanto, 50,89 € por mês para "assapar", como vocês dizem. Isto faz de mim um dos melhores pagadores de internet da Europa, com uma velocidade de 4 Mega que é sempre na prática menor que noutros países com velocidades nominais menores e que pagam menos. Além disso recebo, com toda a paciência, este tipo de 'mails' e telefonemas que me garantem que o que pago inclui levar em cima com o marketing que vos apetece. Se eu não sou um super super cliente ao manter-me na vossa rede, quem é que é?


4. Por fim, envie-nos a sua melhor receita para acompanhar ou utilizar o chocolate Toblerone, que poderá ser publicada em http://sabores.sapo.pt.


Os 15,32 € que pago para um serviço que não sei o que é, mas que suponho que sirvam para sustentar o Limbo, que o infalível Papa disse ter acabado, davam para comprar pelo menos 6 Toblerones pretos por mês, que é a dose recomendada pela OMS a quem não viva nos países produtores de cacau (esses que chupem no dedo que já ficam com o imenso dinheiro que sobra dos intermediários Europeus que têm um enorme trabalho a trazer o cacau para cá...) Mas uma boa receita para um Toblerone pequeno é eu a dar uma dentadinha num lado e ela do outro até o Toblerone acabar e depois continuar... Os 4,5 kg de Toblerone hão-de dar até à Primavera e só nessa altura mudar de rede para conseguir manter o hábito.

segunda-feira, dezembro 10, 2007

Postdezanove

Faz muitos anos, já não sei quantos, que fomos uma noite para a Fonte da Telha, fugindo à luz da cidade, ver uma chuva de estrelas. Diziam que seria a maior de sempre - coisa nunca vista - a Terra a atravessar, no seu percurso celeste, uma zona densamente povoada com os restos da formação do sistema solar. E esperávamos vê-los morrer queimados ao atravessarem a nosso protectora atmosfera. Faz muitos anos.

Lembrei-me hoje quando vinha do trabalho. Por que no céu limpo e iluminado, enquanto conduzia, consegui ver um inesperado traço de luz.

Naquela noite, há muitos anos, a ânsia de ver já nos fazia ver riscos onde eles não estavam. Eram necessários para que se justificasse o nosso incómodo. Tínhamos que ter uma qualquer recordação do dia em que tentámos ter alguma recordação. Tínhamos andado dezenas de quilómetros numa noite que não tinha nada de especial a não ser essa manifestação a céu, a substituir-se ao letárgico andar dos dias.

Hoje, talvez por tantos anos, não me lembro se cheguei a ver alguma estrela. Não me lembro se a desilusão foi apenas por as estrelas terem faltado ou por já não haver estrelas para além das estrelas que esperávamos. Mas lembro-me de uma desilusão. Também não me lembro se no teu esforço de não dar por perdido um serão terás visto alguma estrela ou apenas a vontade de ver uma estrela.

Lembrei-me hoje, ao ver, sem as condições ideais da Fonte da Telha, sem aquela escuridão proverbial que permite ver sem o ruído da luz, o fogacho instantâneo de um meteorito a atravessar pressuroso o horizonte ligeiramente acima dos candeeiros da estrada.

Fomos muito longe naquela noite. Os riscos luminosos tinham sido prometidos para a distância do lado de lá do rio e vinham de fora, do espaço, da distância absurda do espaço.

Nessa altura, há muitos anos portanto, enquanto nos deslocávamos para o lugar das promessas, lembrei-me de muitos anos atrás quando eu gostava de me deitar na mesa do quintal, nas noites de verão, a olhar para o céu, por entre as frestas escuras das árvores. Terá sido aí que, por acaso, vi a minha primeira estrela cadente. E foi por ela que lá voltei muitas e muitas noites, à espera que se repetisse a aparição, enquanto a minha mãe não dizia, parando por momento a máquina de costura, que eram horas de ir dormir.

Lembrei-me hoje, por acaso, por ter visto aquele rasto de luz insignificante.

Regressámos ao carro calados. Eu estava preocupado por ter deixado o Uno estacionado à beira da estrada, caindo perigosamente para a berma de areia. Eles tinha prometido uma chuva de estrelas. Talvez elas chegassem mais tarde. Mas no dia seguinte tínhamos que trabalhar e temíamos as filas de trânsito de tantos que, como nós, tinham ido à procura de sinais do céu.

Muitos anos antes eu teria ficado à espera a noite toda, ou até que alguém mais forte me mandasse para a cama. Nessa altura ainda não sabia quem eram aquelas misteriosas viajantes. Apenas sabia que havia homens que há pouco tempo tinham viajado para a Lua e lá tinham deixado pegadas. Tinha lido no jornal que pelo espaço poderíamos andar continuamente, sempre e sempre, e haveria sempre espaço para andar. E era essa surpresa que eu procurava apanhar, deitado em cima da mesa do quintal, olhando fixamente os pontos cintilantes a distâncias que eu não sabia contar.

Não foi nessa noite que vimos estrelas cadentes. Nem depois. Estranhamente não voltámos a conseguir vê-las em nenhum lado. Como víramos no princípio. Depois deixámos de frequentar o frio da noite por não haver tempo para ficar à espera do acaso.


Aibieme

sábado, dezembro 08, 2007

Conto

Cumprem-se todos os dias novas intenções.
No passo certo com que tento deter o cansaço há sempre uma variante de tempo e de espaço.
A repetição nunca se repete da mesma maneira.
E o gesto que se espera vem sempre antes ou depois da cadência.
Nenhuma medida se satisfaz consigo mesma, sem se deter na comparação.


Sempre soube que só o número poderia alguma vez matar-me.
No que estava escrito, tudo era claro menos o número.
De todas as coisas se podia falar sem receio nem omissão.
As palavras seguiam-se umas às outras apenas pelo prazer de dizer.
Depois de cada frase havia sempre outra frase que a negava.
Mas o número, não.


As contas que faço ao volume do meu medo nunca dão resto zero.
A altura a que chega a minha voz é uma oitava do que era.
O preço de cada instante de prazer tende para infinito.
A área da superfície do meu sorriso, tende para zero.


Mas isto é nada, com o que se passa à minha volta.
O que interessa são os números grandes e os grandes números.
A competição é pelo volume de sangue a escorrer pelas valas.
Pela quantidade de gente que passa fome.
E pelos ritmos de produção de espingardas.


Também interessam os números do euro-milhões.
Os números da bolsa, do défice, do desemprego, da inflação.
Interessam os golos, os pontos, os espectadores e as receitas da bola.
Os custos de aeroportos, o preço do petróleo e a temperatura da Terra.
Interessam muito os números de circo da estatística das sondagens.
O ordenado mínimo, a esperança de vida e o número de crianças.


Sempre soube que só o número poderia alguma vez matar-me.
O que estava escrito era uma forma de passar o tempo e olhar para ele com ironia.
Liquidavam-se em palavras as dívidas de ignorância.
Passava-se para o momento seguinte numa pirueta de gestos e sons.
E estava na mão a ligação física à terra de que éramos matéria consciente.


Mas o número chegou para nos contar histórias trágicas.
Para nos comparar uns com os outros sem nos ver.
Para nos desenraizar com raízes quadradas.
Para nos somar, subtraindo, e nos multiplicar, dividindo.


Sísifo

quinta-feira, dezembro 06, 2007

Anda demasiada gente preocupada em salvar-me.
Todos os dias, todas as horas.
Na televisão, no telefone, na internet, na rua, nos transportes públicos.
No alto dos montes, nos mosteiros, nas esquadras da polícia, nas assembleias municipais.
Nos governos, nas universidades, nos hospitais e nas clínicas.
Na padaria, no café, no trabalho, nas reuniões de condomínio.
Nas igrejas, nos santuários, nas plataformas petrolíferas, nas minas de ouro e nos bares de alterne.
Nos campos de futebol, nas grandes superfícies, nos tribunais e nas prisões.
Na praia, no campo, na neve, no hotel e no campo de golfe.
No cinema, no teatro, no circo, no museu, no estacionamento subterrâneo.
No elevador, no restaurante, no jardim, no cemitério.

Em todo o lado encontro uma multidão disposta a tudo para me salvar.
Choram por mim, rezam por mim, chamam por mim, preocupam-se comigo.
Não dou um passo que não sinta este enorme calor humano.
A cada esquina uma vestimenta diferente a saudar o meu futuro.

O médico, o curandeiro, o psicanalista, o gestor de conta.
A florista, o padre, a massagista e o coveiro.
O padeiro, o carteiro, o criativo, o taxista, o guarda e o agente de seguros.
O pintor, o barbeiro, a secretária, a porteira, o técnico de contas, o advogado.
A madame, o veterinário, o assessor, a telefonista e o amante dela.
O cantor, o artista, a malabarista, o escritor e o toureiro.
O monge, a freira, o eremita, o quiroprático e o arquitecto.

Que fumo, que bebo, que ando depressa, que não respeito os sinais.
Que me visto mal, que vejo mal, que escrevo mal, que cheiro mal.
Que não dou, que não tenho, que não recebo, que não calculo, que não creio.
Que não sonho, que não penso, que não sei, que não ouvi, que não comprei.
Que não durmo, que não voo, que não acalmo, que não me mexo, que não compreendo.
Que não venço, que não lucro, que não mando, que não apareço, que não quero.
Que me esqueço, que ignoro, que sofro, que perco, que desprezo.
Que fujo, que saio, que erro, que calo, que não existo.

Juntos ou em separado, fazem tudo por mim.
Pensam em mim o tempo todo.
Nada mais os comove que a minha salvação.
E fazem da sua vida um monumento a meu favor.
Acotovelam-se para serem os primeiros a salvarem-me.
Salvar-me é o seu propósito, a sua missão.

Alguns não me incomodam porque percebi que mais não querem que os trocos que ainda tenho no bolso.

Mas há outros que para me salvar estão dispostos a matar-me.

terça-feira, dezembro 04, 2007

Certeza

Tinha uma coisa para te dizer mas não sabia se era verdade e por isso não te disse. Só te posso dizer aquilo que tenho a certeza que é mentira. Na verdade, quando te digo isto, estou a tentar não violar o meu próprio princípio. Mas é difícil. Ao contrário do que é comum, calha-me ter escrúpulos de alguma vez te dizer alguma coisa que possa ser confusa e tomada como falsa quando é precisamente isso que te quero dizer. Por princípio aquilo que digo é verdade. E se o digo a ti é duplamente verdade. Mas quando o digo, a minha intenção é mentir-te para que tomes por verdade aquilo que eu te digo. Se não acreditasses no que eu digo, por uma qualquer razão, mesmo que absurda, eu não teria qualquer hipótese de te mentir. É fundamental, por isso, que eu te diga sempre a verdade para que acredites sempre no que eu digo, ainda que o que eu diga seja sempre mentira. E como é sempre mentira aquilo que eu digo, embora tu tomes toda a minha mentira como uma verdade, não preciso de me esforçar para mentir tal como ninguém o faz sempre que mente, mesmo que convencido que diz a verdade ao dizer uma mentira que lhe contaram.

Seria impossível conversarmos se eu não dissesse sempre a verdade. O que ouves dos meus lábios, ainda que não ouças tudo que eu digo, é sempre a verdade que, de uma maneira ou de outra, estás à espera de ouvir. E isso faz com que seja relativamente fácil mentir. Ao mentir, mesmo que diga a verdade para tu ouvires, estou a conformar-me a ser tão verdadeiro quanto possível. O meu discurso está todo entregue à emissão de uma verdade que te satisfaça e é por isso absolutamente verdadeiro no seu conteúdo totalmente falso. São as minhas palavras que não são capazes de te mentir. Ouves o que é a verdade e é sobre essa verdade que eu construo a verdade que me interessa e que, bem vistas as coisas, é também a verdade que te interessa a ti.

Ninguém, tal como tu, está hoje disponível para chamar verdade ao que, numa perspectiva muito livre, for efectivamente a verdade. Qualquer palavra que eu diga, mesmo estas em que tento explicar o inexplicável, é a verdade efectiva que estás disposta a ouvir, ainda que a verdade efectiva - a que não estás disposta a ouvir (nem tu nem eu) - seja outra que eu não sou capaz de dizer agora. Isto apesar de não haver qualquer dúvida de que aquilo que eu digo, e especialmente do que te digo a ti, ser a pura verdade. Em caso algum sou capaz de dizer alguma coisas que não seja absolutamente verdadeira. E isso mostra como tudo o que digo é mentira. É mentira tal como é mentira o que tu me dizes, mesmo que eu seja capaz de pôr as mãos no fogo pela verdade das tuas palavras. Porque se há algum lado em que a mentira é permanente, a tal ponto que nunca se duvida, tu és o seu oráculo e sacerdotisa. Não há momento em que eu consiga pôr em causa a absoluta verdade das tuas mentiras e todo o meu esforço é amador quando minto até à exaustão para te dizer a verdade.

Muitas vezes penso, mesmo não pensando muitas vezes, que o que te posso dizer que não seja verdade já tu conheces há muito tempo. Acreditas, por isso, em cada uma das palavras que mentindo sou capaz de te dizer, sem denunciar o nervosismo de por algum lapso te poder dizer, sem querer, a verdade. Não sei se minto quando te digo o que penso sobre ti, porque quando o digo é de tal maneira verdade que eu próprio fica na dúvida sobre a verdade do que te digo. Estou convicto de que o que te digo é mentira e por isso o digo com o à vontade de quem diz a verdade, mesmo sabendo que está a mentir. É tão falso que eu minta como é falso que diga a verdade, e também é completamente falso o contrário. Mas é sempre verdade que eu minto, mesmo que sempre que eu minta seja verdadeiro.

Na verdade não sei se é bom ou mau ter-nos Deus dado este incontornável jeito para mentir.

Prologo

sábado, dezembro 01, 2007

Desde então

O Finúrias, no seu paradoxal blogue, gosta de nos provocar com imagens aparentemente inócuas. Depois fica à espera do relato das perturbações induzidas. Vão lá colaborar...


Desde então por cada prazer uma ruga. Estranha esta contabilidade do céu. Dar e receber. Rugas pelos nossos prazeres e rugas pelos prazeres dos outros. Um comércio tradicional. Uma alegria no tempo a trazer lágrimas hoje. Ou o contrário. Passos que não dei para que eles dessem passos mais firmes e seguros. Ilusão, claro. É por esse lado que vão as minhas mãos que já perderam a eficácia e têm agora o passado inscrito. Numa estranha linguagem escreveu-se aqui um texto que define a minha perda. O meu diálogo violento com o tempo. O meu crédito de ternura. A fotografia fica parada e trai-me. Põe na minha mão a potência do passado. Os sonhos. Quando ainda tudo era possível. Mesmo que a desconfiança aconselhasse a não esperar.

Desde então por cada beijo um desgosto. O ofício a dobrar o músculo sobre a obrigação. Os passos doridos pelo cansaço diário de não parar, de não dar tempo ao pensamento nem à dor. Tudo a equivaler-se na oração já desesperada. Para quê, Deus? As mãos fizeram o seu trabalho e andaram sempre próximas da verdade. Por isso trazem em si toda a história. Contam-na à sua maneira em gestos cada vez mais soletrados. O passado perde importância à medida que o futuro escasseia.

Desde então por cada surpresa uma dor. Não sobraram intenções. Não sobrou a volúpia de querer vencer. Não sobrou nenhum vestígio do desejo. Dizem que a cada sete anos a matéria que nos faz é toda renovada. E com a matéria vão as memórias e os desejos. Vão também os sons que se perderam e as vozes que atravessavam a alegria das conversas. Coisas que vêm do nada e a ele voltam. Só a matéria, que se renova cada vez mais disforme, permanece moldada à pressão das intempéries. E as mãos. As mãos permanentemente a negarem-nos.

Desde então por cada dia uma derrota. O sol a queimar o rosto e a esperança. A evaporar o amor e as amizades. A derreter a firmeza de laços provisoriamente eternos. E as notícias da noite a falarem de uma terra cada vez mais povoada. E o meu horizonte cada vez mais vazio. Os passos a serem cada vez mais curtos e vacilantes. E nenhum gesto de atenção a esta sobra do tempo. De repente, ainda somos, mas já não somos. As vozes já só se dizem para nos instruir, para nos ensinar o que não precisamos de saber. O que sabemos já não interessa.

Desde então por cada pensamento uma angústia. Vidas geradas para tentar. Mundos novos a descobrir. Frases novas a escrever e contar. Cumprir o estranho destino de ser. Estranha esta contabilidade do céu que só nos deixa conhecer o futuro depois, que nos dá o sonho para nos desiludir, que nos renova para nos enterrar, que nos alimenta para nos escravizar, que nos solta para nos perseguir, que nos dá a memória para esquecer, que nos dá a voz para mentir, que nos dá os sentidos para nos submeter.

Desde então por cada filho um universo.

domingo, novembro 18, 2007

Palavras cegas

A Mo comentou o Cisne, e eu, sabendo que o Ivo não recomenta, comento o comentário da Mo e o não comentário do Ivo, aproveitando um 'post' da Mo que poderá estar na origem, ainda que remota, do 'post' do Ivo que andava retirado há uns largos meses.


O cisne de que fala o Ivo é o mesmo de que fala a Mo. É um cisne público que se agrega como símbolo a um imaginário que se tornou comum. É um cisne integrador que se lexicalizou e que, dentro de um contexto bastante alargado, permite comunicação e entendimento. O Ivo não recorda nenhum cisne que tenha forçado esses parâmetros que se partilham apenas pelo nome. Por isso diz que o seu cisne é apenas um cisne como os outros, sem a peculiaridade de outros cisnes que ele vê esvoaçarem irrequietos na realidade de outros testemunhos.

O periquito da Mo, consigo eu vê-lo de maneira semelhante a ela (não sei o que diria o Ivo), porque refere sinais que também existiram nas minhas saídas da escola. Mas percebo que é um periquito sem a universalidade do cisne. É um som particular, um sabor localizado no espaço, uma 'private joke' para 'especialistas'. O periquito da Mo não é tão particular como a figueira do Ivo, mas não é tão público como o cisne.

Também a cobra da Mo não se equivale à figueira do Ivo. Talvez se compare com o tigre de que ele fala de raspão, sem dizer nada que o exponha para além de falar de um tigre ou de um leopardo, como de uma oliveira ou de outra árvore qualquer. Por que a cobra de que a Mo fala trás consigo uma história que ela começa a contar. Começa apenas, porque depois pára para esconder as 'n' associações que podem inundar a página e tornar-se novos pontos de uma imagem.

Suponho que é esta subtileza que provoca a diferença entre o texto necessário e o texto supérfluo: algo que quando dito acrescenta o indivíduo à prosa, gerando a estranheza no meio do menor número viável de reconhecimentos. A maior parte do tempo o nosso discurso faz-se no campo da identificação. Falamos para ser facilmente entendidos; contamos a mesma história vezes repetidas, variando apenas pequenos pormenores; falamos e rimos de um filme que vimos, descrevendo apenas os elementos necessários à identificação; partilhamos essencialmente o que já todos sabem. A globalização quer, precisamente, que estejamos todos sintonizados no mesmo caldo: um vocabulário mínimo que seja reconhecível sem estranheza.

A exigência da literatura e da arte é a criação de mundos novos. E mundos novos são mundos individuais que têm a 'sorte' de ser diferentes e ousar a exposição. É o indivíduo a tornear a marcha unânime do grupo. É a leitura divergente da cobra, porque sentida sem ser requerida, que pode acrescentar alguma coisa ao existente. É o caso particular de uma figueira precocemente plantada que pode ter alguma novidade no mundo. É ir desnorteada numa estrada de calçada amarela. A maioria das vezes estes mundos particulares não despertam o interesse de ninguém, nem do próprio que os viveu ou imaginou. Outras vezes são entendidos e têm um grupo receptivo à particular vibração da corda.

É por isso que raramente um produto inovador é bem sucedido. O reconhecimento tem muito mais procura que o conhecimento.

Sobre o cego, lembro-me da 'Terra de Cegos' do H. G. Wells e de como ele serve de prova para a possibilidade de o melhor olhar não ser o primeiro mas o que passa ao lado do óbvio. E esse olhar que passa ao lado só pode nascer no indivíduo e na sua história peculiar.


Pode ler-se a 'Terra de Cegos' numa das versões originais e numa tradução com sotaque brasileiro.

sábado, novembro 17, 2007

Cisne

Porque é que quando vejo um cisne vejo apenas um cisne? Embora quando vejo um tigre veja sempre muito mais do que um tigre. A pomba, por exemplo, mesmo que eu tente, não me consegue parecer mais do que uma pomba. Mesmo que seja branca. Já o golfinho é sempre outra coisa que não um golfinho. Muito mais do que um golfinho. Uma árvore, uma dessas árvores a que damos nomes bonitos como pinheiro, sobreiro, carvalho, nogueira, castanheiro, é sempre muito mais do que uma árvore e deixa na mente ramos de ideias e sentimentos entrelaçados. Mesmo uma oliveira retorcida, como se transformasse sofrimento em ouro, é sempre mais do que uma oliveira, mais do que ela e do que eu.

Mas isso são as maneiras como eu vejo. E como gosto de ver. Não interessa muito o que as coisas são e interessa tudo o que vemos nas coisas. Interessa a cada um a maneira como vê, e nada interessa da coisa mesmo que a coisa seja uma coisa independente do que nós vemos. E se o que eu vejo na coisa não é o mesmo que tu vês, isso então quer dizer que a coisa é mais do que ela própria para cada um de nós.

Admito que haja quem veja num cisne mais do que o próprio cisne, por que eu vejo no leopardo muito mais do que um leopardo. Mesmo que seja um leopardo concreto de que eu tenha ganho a amizade. E digo isto por que admito que sei - ainda que possa estar enganado - o que é suposto ver quando se olha para um cisne, na sua forma mais rudimentar de cisne. E, quando alguém diz que vê num cisne outras coisas para além dessas que eu sou capaz de ver num cisne, e que não me parecem nada de especial, e guardo para mim que essas coisas que se podem ver e eu não, são da mesma natureza das que eu vejo num tigre para além daquilo que eu seria capaz de ver num tigre, na sua forma mais objectiva de tigre.

Em criança plantei uma figueira e por causa desse percalço da minha infância, aquela figueira passou a estar para mim no lugar de todas as figueiras que depois encontrei, e mesmo naquelas que se foram referindo pelos seus frutos e pelas suas palavras. Figueira, então, cresceu comigo nas minhas formas de ver e passou a ser muito mais do que uma figueira, agarrada ao meu passado e ao meu murmúrio de infância. Talvez fosse diferente se eu tivesse, por outra razão ocasional, soletrado um cisne no entardecer das minhas brincadeiras. O meu cisne não nadou no meu lago que não havia na minha memória. Ficou, por isso, um cisne que não se emociona com a passagem do tempo.

sábado, novembro 10, 2007

Ciclo vicioso

Presume-se um objectivo, ainda que parcial.
Um objectivo pressupõe um projecto, ainda que desestruturado.
Um projecto adivinha uma estratégia, ainda que incipiente.
A estratégia dirige o acto, ainda que inconsciente.
O acto é o que se vê, ainda que na sombra.
A revelação é a leitura, ainda que superficial.
O que se lê é o que fica, ainda que subjectivo.
O que permanece é a memória, ainda que infiel.
A memória é a história, ainda que parcial.

A história é o alicerce, ainda que pouco firme.
O alicerce é a profundidade, ainda que fluída.
A profundidade é o desconhecido, mesmo que idealizado.
O desconhecido é o não saber, ainda que pressuposto.
O não saber é o intuído, ainda que deduzido.
A intuição é o automatismo do corpo, livre da interferência racional.
O corpo automático move-se pelas emoções, ainda que no limite da tolerância.
As emoções nascem no mar do inconsciente, ainda que submersas de inibições.
O inconsciente é a história, ainda que individual.

A história é o alicerce...

sexta-feira, novembro 09, 2007

Fado

Nós, portugueses, não somos tristes nem melancólicos. Pelo contrário, somos alegres e despreocupados. O que nos leva a andar sempre de cabeça baixa e olhos no chão é o medo de pisar cocó de cão.

segunda-feira, novembro 05, 2007

Pérolas (XLII)

Uma estória bem contada!

sexta-feira, novembro 02, 2007

Passatempo

Fico à espera que o tempo passe, e o tempo passa mas não passa a vontade que eu tenho que o tempo passe. Passa o tempo mas não passa o que eu quero que não passe, mesmo que fique à espera que o tempo passe para que passe, ao mesmo tempo que o tempo, o que eu não quero que passe. Por outro lado quero que passe o que não passa mas não dou um passo para que o que não passa passe. Neste caso, ao contrário de outros em que esperei que o tempo passasse para que passasse também o que eu queria que passasse com o tempo, eu espero que passe o tempo que faz passar ao mesmo tempo as coisas que se quer que passem, mas espero ao mesmo tempo que o tempo passa que não passe o que espero que passe mas não quero que passe. Espero, portanto, apenas que o tempo passe, sem que passe mais do que o tempo e não passando aquilo que tem que passar enquanto o tempo passa, é como se o tempo não passasse e se ficasse à espera de um tempo que não passa. Passo a passo, passo o tempo que não passa, embora eu saiba que passa porque passam algumas coisas que costumam passar enquanto o tempo passa e enquanto passam as coisas que costumam passar com o tempo é seguro que no mesmo passo passa também o tempo que faz com que as coisas passem. O que não passa é apenas uma coisa que eu quero que não passe porque não sei como passaria se essa coisa passasse e que passo poderia dar se tendo passado contra a minha vontade ainda teria vontade para esperar que o tempo passasse. O passo que não dou é um passo interrompido à espera que o tempo passe enquanto espero que não passe essa coisa que passa com o tempo mas eu não quero que passe enquanto espero que o tempo passe. Estou, portanto, parado à espera, dando os passos que o tempo dá, sem sair do lugar da coisa cujo passado me prende o passo por não saber de razão nenhuma para dar um passo de um passado que eu não queria passado mas que passasse como eu passo, em passo certo com o tempo que vai passando. Por mim não passará a passado o passado que tendo passado eu não quero que seja apenas passado. E não querendo eu que passe, mesmo que o tempo passe a dizer-me que passou, e passem outras coisas que o tempo passa para passado, não passarão no tempo que passa por mim ou então passará o tempo a não passar por mim quando tiver feito passado das coisas que eu não deixo que passem.


prólogo

quinta-feira, novembro 01, 2007

Subterrâneo

Há uns dias, neste 'post', a Addiragram desafiou-nos a desfiar considerações sobre o que é andar por aqui a 'postar'. Ela própria teceu a sua teia de razões que merecem ser comentadas. Entretanto coloco aqui o texto que lhe mandei, e ela já me deu a honra de publicar no seu rigoroso Aguarelas de Turner.


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É muito provável que a informação que se consegue nos jornais - e cada vez mais nos livros e nas revistas - tenha pouca relevância ou seja já do conhecimento de qualquer pessoa informada. Tirando aspectos específicos de áreas muito localizadas, ou os acontecimentos do dia que as agências noticiosas vão recolhendo do imprevisível, os jornais enchem-se de informação reciclada que não cativa um leitor mais exigente que chega a aborrecer-se com a sensação de tempo (e dinheiro) perdido. Esta noção poderia conduzir a uma efectiva redução da leitura dos jornais, e é provavelmente isso que está a acontecer.

Os meios audiovisuais como a televisão ou a rádio têm uma capacidade de actualização de notícias que faz os jornais parecerem, na leitura da manhã, objectos históricos. A única vantagem que os jornais têm é uma espécie de acesso directo àquilo que interessa, que pressupõe da parte do leitor uma maior liberdade do que no caso do acesso sequencial da rádio e da televisão. A televisão ganha ao informar o espectador que não tem ideia da informação que quer, que está disponível para a arbitrariedade do emissor, e é, portanto, um leitor que à partida não faz questão de seguir um caminho seu e filtrar aquilo que vê. A multiplicação dos canais televisivos, que poderia configurar uma liberdade de escolha, mais não é que um multiplicador de imposições. Num sistema com cinquenta canais facilmente se 'desperdiça' a meia hora de atenção disponível para "ver" num 'zapping' desenfreado e inútil à procura da 'melhor' coisa que está a 'dar'. Cria-se a impressão de liberdade numa jaula de opções que se limitam reciprocamente.

A surpresa da 'internet' é dada pela sensação de autonomia de quem a utiliza. O acesso é directo. Entre os acontecimentos e a sua 'publicação' o tempo é mínimo, podendo em alguns casos o acontecimento ser seguido em tempo real. O acontecimento não tem a obrigatoriedade de ser universalmente relevante para ser mostrado - basta que seja relevante para quem o publica - podendo ir ao encontro do gosto peculiar de um único leitor, dando por isso peso idêntico ao popular e ao marginal. A informação permanece disponível sem degradação nem tempo de exposição determinado pelos interesses de um emissor particular: a 'internet' é um livro na estante à espera da nossa disponibilidade, não nos pressionando nem ameaçando a nossa independência. E, talvez mais importante ainda, a 'internet' coloca-nos a possibilidade de ser tão emissores como receptores, a anos luz da limitada participação das cartas ao director. A 'internet' é um EDITAL em que todos podemos inserir o nosso prospecto sabendo que tem o potencial de ser visto no mundo inteiro.

Estes potenciais que vemos hoje como difíceis de perder ou de serem ultrapassados, não são mais do que a generalização - na proposta aldeia global - do processo comunicativo entre as pessoas. E, visto nesta perspectiva benigna, assemelha-se ao melhor dos mundos. Mas é sabido que mesmo os melhores dos mundos que se vêm revezando ao longo da história tiveram sempre os seus poderosos lados negativos. Nem sei se é justo falar em lados negativos quando fazem parte das características que enformam toda e qualquer actividade humana, que tem o destino de ocorrer sempre no estreito intervalo entre o brilho e o nada*.

Aquilo que é o maior bem da 'internet' é também o seu maior 'mal': a dimensão. A informação é tanta que se torna impossível saber o que é relevante. E nem vale a pena pensar em saber qual da informação é verdadeira, porque aí, como nas outras formas de transmissão da informação, a probabilidade de estar perante uma fraude é muito elevada.

O 'blog' não é mais do que um 'site' em que foi reduzida ao mínimo a dificuldade de edição. O preço a pagar por essa simplicidade é o estabelecimento de uma interface relativamente rudimentar quando comparada com os potenciais que hoje estão disponíveis para um 'site' clássico. Mas a simplicidade compensa porque permite o acesso à publicação na internet a pessoas que não têm vocação nem interesse em mergulhar nas crípticas linguagens dos computadores. Foi essa simplicidade, consequência da generalização da internet universitária à 'world wide web' aberta ao mundo 'civil', que permitiu a explosão de emissores que a actualidade está a conhecer.

Uma matriz que parece manter-se nas sucessivas gerações de utilizadores e modelos da rede é a formação de comunidades. De uma maneira ou de outra a necessidade de aproximação ao 'outro' é o motor de todas as formas de comunicação e a porta que a internet abriu tem uma dimensão que ultrapassa todas as previsões. A democratização da bidireccionalidade coloca-nos a todos no caos ensurdecedor de um gigantesco café em que todos falam ao mesmo tempo que tentam escutar alguma coisa. Ao contrário dos outros meios em que a hierarquia comunicacional está bem definida, na internet ela é apenas rudimentar e dá ao leitor a hipótese de se submeter ou não conforme o seu gosto ou disposição. É esse estreito caminho de liberdade - apesar dos enormes esforços que estão a ser feitos para a domesticar - que pode conceder à internet o estatuto de refúgio último para aqueles que já perderam a esperança de uma sociedade de valores elevados e se vêem cada vez mais empurrados para a margem das decisões políticas e sociais. Agrada-me imaginar a internet como um subterrâneo onde se vão conservar pelo tempo que for necessário, as ideias clássicas que a barbárie quer abolir nesta escura idade média que atravessamos.


*Gosto de pensar a existência de vida na terra como uma metáfora do percurso humano. Apesar de existir um Universo com tendência para infinito, o intervalo em que a vida é possível é tão estreito que numa escala cósmica é indetectável. Para mim esta solidão cósmica é a maravilha maior, por se ter formado a complexidade num estreito nicho de possibilidade.


zumbido

domingo, outubro 28, 2007

Postdezoito

Como sabes sou uma figura virtual. Desajeitado, não acompanho os tempos nem as realidades objectivas. Perco-me no meio dos livros numa busca absurda de compreender o que os outros sabem de antemão não se adaptar ao entendimento. Em tempos associei a esta busca, por força de mitos que me perseguiam, uma benignidade que de certa maneira compensava o desleixo que a natureza me deixara. Mas a sucessão de fracassos, o desmentido insistente das vozes circundantes, a própria inconclusão dos projectos e das pesquisas, derrubaram sem piedade quaisquer veleidades do incipiente amor-próprio. O facto é que só procura quem não tem, e se quiséssemos constituir sobre a experiência uma moral elevada, veríamos confirmada a loucura que é querer chegar a algum lado quando se parte demasiado de trás. E se houvesse algum mérito na procura, esse seria o de cumprir os passos necessários para amar.

Ninguém pode gostar do que não gosta, forçando o gesto ou disfarçando a impaciência. Uma figura virtual é sempre amável e encontra facilmente quem a afague em gestos de ternura surpreendida. Na tragédia do dia a dia o doce movimento de darem a mão, o tempo e a atenção sincera, cativa o rosto e o momento, até que o devaneio e a força do sentir se sobreponham no avaliar da situação. É nesses intervalos que a figura virtual sobrevive e é deles que faz a sua dieta desequilibrada de sentimentos. Depois, mesmo esses ocasionais vestígios de afecto secam e a figura virtual fica à deriva, na carência irracional de um gesto que a faça ser. Entretanto, o objecto da sua atenção, permanece enredado em desejos de realidades ideais, relegando a figura virtual para os pontos baixos da travessia.

Não se é figura virtual por gosto ou por dever. É um local de passagem à espera de oportunidade melhor. Por vezes acredita-se que a mão que se dá é uma mão que se toma e que essa é a ocasião de sobreviver. Mas provavelmente nunca acontece. Há sempre o drama de temermos que as nossas vidas se percam por tão pouco e fique no ar todo o mundo que, por uma pequena razão, se rejeita. Há uma economia da figura virtual. Não se consegue amá-la mais do que um pedaço e isso não chega nem para quem a ama, nem para a figura que espera um afecto que a salve da sua virtualidade.

O que a figura virtual pede, na sua irracional ansiedade, é ser querida tal como é, sem precisar de uma mutação genética que a faça parecer tão real que não envergonhe ninguém nos lugares de esplendor eleito. Por que a figura virtual ficará sempre justamente intimidada pelo contraste do excesso e da grandeza.

Reconheço que há uma armadilha no sorriso doce da figura virtual. Quer mais do que pede; pede mais do que é capaz de ter; tem mais do que é capaz de desejar. Faz o que pode para ser escolhido mas não pode muito, porque soçobra em todas as comparações, e depois, no fim dos tempos, fica à espera de ser capaz de voltar a sair à rua e enfrentar o sol.

aibieme

Compleccidade

Esta noite uma fúria de cavalos mongóis atravessou a largueza quase infinita da estepe e durante horas permaneceu no ar uma nuvem de poeira que demorou a prática do amanhecer. A quilómetros de distância sentiu-se como um sismo nos aparelhos mais sensíveis. Numa palestra, um cientista aprumado, referiu o facto indirectamente e por antecipação, designando a vida como o sistema mais complexo de todos, apesar de abundante no meio dos gritos. Também houve quem dissesse que era mentira. Ou que a mentira era mais abundante no meio da complexidade, por ser um resultado inesperado de se saber. Também a complexidade poderá ser falsa se isso for necessário para provocar um sismo mais efectivo e capaz de trazer o medo para ordem do dia.


Esta noite uma fúria de cavalos mongóis feriu temporariamente o silêncio quase infinito da estepe e perturbou a harmonia oriental do tempo. As informações recolhidas no terreno são contraditórias. O próprio terreno é contraditório. Algumas horas depois do possível acontecimento já o planeta se revolve incomodado no seu assento confortável. As notícias bifurcam-se e milhares de opiniões ponderadas até ao limite, amplificam as cavalgadas das estepes para as suas consequências globais, para o equilíbrio geopolítico e para a gestão equilibrada dos recursos e da fé. Nenhum passo é deixado ao acaso ficando pouco espaço livre para a natureza nos surpreender de novo. Um alto funcionário do ministério da fraternidade universal garante que todas as medidas estão a ser tomadas para que os prejuízos no bem estar das populações sejam mínimos.


Esta noite uma fúria de cavalos mongóis, entregues sem freio à sua liberdade, perturbou a delicada impaciência do sono dos justos. Fonte autorizada afirmava pela manhã que é completamente estúpido que um corpo queira outro corpo abraçado ao seu, e esse outro corpo não possa ser outro corpo qualquer mas um corpo de que sabe o nome e alguns pormenores da razão e que tenha de ser aquele e só aquele. Haveria de ser feita legislação a legitimar em referendo sobre estas reprimíveis peculiaridades da complexidade das células. Na internet corre uma petição a favor da estepe.


Esta noite uma fúria de cavalos mongóis consumiu a sua energia vital em inúteis acções de prazer. As nações unidas irão deliberar sobre a tomada de notas de todos os contribuintes para que colaborem no esforço global de produtividade. O consumo de futilidade cresce e não há mãos a medir. No Brasil, como cá, chamam otários aos que cultivem, ou tentem cultivar, os valores clássicos que contrariam a lei da selva. Foi decretado, pela ordem natural das coisas, que os modelos de sucesso são os que se medem pelo poder e pela sua decidida estruturação.


Esta noite uma fúria de cavalos mongóis, contente com a sua natureza prática e instintiva, trepidou a lâmina delgada onde se abriga uma multidão de afectos desencontrados. Correu pelos ares a poeira longínqua a assentar sobre a lágrima titubeante dos rostos desconhecidos, já incapazes de se aperceber do trote magoado que passa silencioso à sua porta. Detectives particulares apontam o dedo à complexidade excessiva. Consideram necessário um recuo. Foi-se longe de mais. Que se tomem medidas para que não haja tanta divergência nos caminhos das estepes. Urbanizem-se as consciências. Desenhem-se com clareza os caminhos e os sentidos. Calem-se os trotes desafinados e as disfunções operativas. Respeite-se o estabelecido e as suas definições.


Esta noite uma fúria de cavalos mongóis estilhaçou mais um pote certezas.


Beatriz Teresa

sexta-feira, outubro 26, 2007

quinta-feira, outubro 25, 2007

Gurulândia

O meu fundamento é ser capaz do impossível. Passar a correr sobre o banal e colar-me com ambiguidades a incertezas absolutas, contabilidades de números primos afastados pela força do vento moderado a norte do sistema monte junto à estrela cadente.

Todas as manhãs acontece este arrefecer do tempo que resta num clima de suspeitas do costume milenar. Acordo com o real um texto de princípios activos combinados com insatisfação pelas coisas difíceis que fazem a vida parecer-se com uma viagem ao centro da terra prometida por um político activo como um detergente concentrado pelo marketing.

O guru diz que nenhum gesto é impuro e garante que já a seguir o número será perfeito, ajustado ao valor da inflação do desejo e ponderado pelo peso insignificante de um sonho de claras em castelo de mouras encantadas. Jura o guru que não jura por ser conhecedor do futuro e temer acima de tudo o passado com a sua história mal contada pelo sim pelo não pelo talvez não se consiga conhecer para além do primeiro momento em que ainda todo o segredo é pouco.

Não é justo que se queime um destino com um fio de navalha a pena do tigre que já moribundo às riscas desarmadas, inscrito na paisagem apagada pela morte inesperada de Deus todo ponderado em libras de ouro negro de fome e peste ratada pela misteriosa ganância dos dedos que guardam no bolso barragens cheias de suor e sangue azul de febre e cansaço infame. O medo caiu como chuva ácida sobre a multidão aconchegada à sombra dos direitos tortuosamente conseguidos no papel de embrulho da revolução cravada de hipocrisias e insistências em objectivos sem gente nem sentido, trocando tudo por um ai pode ou não pode comprar mais uma lembrança deste dia, desta hora, deste segundo que já cá não está e precisa de ficar marcado na memória imediata do navio mercante que vai à china buscar a mercadoria que compra nadas vazios e alarga alegremente a curva de gauss espalhando em todos os graus o sismo pragmático do contentamento por estar vivo e produzir nem que seja mais um momento branco no alvo do silêncio.


Prólogo

segunda-feira, outubro 22, 2007

Pérolas (XL)

Vêm aos pares! A numeração romana é muito traiçoeira.

Focagem


Ambição

- Quando me dizem que não tenho ambição percebo que gostavam que eu tivesse as ambições de quem me diz.

Grande plano

- A ideia é fazer planos e a prática não os cumprir. Ter rotinas e quebrá-las. Jogar muito e perder sempre. Sonhar de noite e falhar de dia. Desconfiar do futuro e recear a morte. Rir de tudo escondendo a dor.

Heliopatia

- O sol ofusca e tem o efeito de queimar entrevistas. Com Catalina Pestana percebeu-se que já tinham passado os tempos de lucidez. O procurador mostrou que é um gato em risco de se constipar. Quem mais vai o sol queimar?

Deus

- Ainda falta surgir no universo das crenças uma religião que acredite em Deus como supremo incompetente.

Corrente

- Desde que vi por aí a "corrente da página 161", passei a só ter à mão livros com menos de 150 páginas.

Ternura

- Há um pretensiosismo descabido em nomes como País Basco ou República Checa. Mereciam a ternura de se chamarem Básquia ou Chéquia.


sexta-feira, outubro 19, 2007

Tuning desportivo

A 8 de Setembro surpreendia-se o Público Digital com a sondagem Marktest a considerar que "Wrestling é o site desportivo mais visitado". Também a mim o 'desportivo' me soou como uma pancada na cabeça, mas acho que recuperei.

Nos últimos tempos o fenómeno dos auxiliares químicos para melhorar o físico dos atletas parece ter-se tornado o desporto favorito dos homens. E das mulheres.

O desporto-rei, pelo menos cá entre nós - que noutros países há outros - já só é atraente se jogado e ganho pela nossa equipa.

Perante estes factos e outros semelhantes, evidencia-se que, tal como o Geocentrismo e Deus, o Desporto morreu. A ideia romântica de Ele ser uma forma de unir e exaltar o humano está definitivamente arrumada no sótão. O ténis, o golf, o futebol, a fórmula um, até o atletismo, são formas de valorização económica como quaisquer outras, e destituídas, por isso, dos valores humanistas que as geraram: o atleta é um painel publicitário ambulante.

Proponho por isso, para que não sejamos obrigados a assistir diariamente a mediáticos actos infames e a não menos mediáticos arrependimentos, que se passe a aceitar em sede própria os fenómenos desportivos como eles são.

Poderia haver, sem prejuízo do que já existe, uma Volta à França para Dopados. Porque não? Não há já a Volta à França do Futuro? Esta seria ainda mais à frente. Quando vou para o meu emprego com uma dose adequada de anti-depressivos todos me felicitam por trabalhar tão bem disposto.

Poderia haver um campeonato mundial de Fórmula I para espiões. Ou uns Jogos Olímpicos para atletas carregados de esteróides - Jogos Esteroidimpicos! Se há os Paralímpicos... Aí sim, haveríamos de ver os verdadeiros limites do ser humano, e ficaríamos maravilhados por um humano - com o devido tuning - fazer os cem metros em menos de 5 segundos. No símbolo dos Jogos, em vez de cinco argolas, poderiam estar cinco comprimidos... às cores.

Em termos económicos seria fascinante. As modalidades haveriam de ser mais diversificadas. Surgiriam novos canais temáticos especializados a passar vinte e quatro horas por dia os melhores - ou os piores - momentos. Haveria mais e melhores patrocínios. Porque uma equipa de râguebi em que só se bebesse cerveja poderia competir com uma que só bebesse whisky e pelos resultados sabermos o que é melhor: as marcas teriam aí um confronto directo de potencialidades. Com a vantagem de se poderem conceber modalidades que tirassem partido das novas realidades sociais, como equipas só de emigrantes clandestinos, equipas só de ex-toxicodependentes, equipas só de pedófilos, selecções nacionais só de estrangeiros, equipas amadoras só de divorciados, equipas de jornalistas tendenciosos a jogarem - e a ganharem - com jornalistas isentos falidos, campeonatos mundiais de aberração. São milhentas as hipóteses que existem de ir ao encontro do que realmente as multidões anseiam.

Cá em Portugal, por exemplo, para promover as audiências, seria garantido o sucesso de um desporto, tipo futebol, em que os árbitros só estivessem autorizados a favorecer o Benfica...



Lino Centelha

quinta-feira, outubro 18, 2007

Adiamento

Na base da montanha espera-se um milagre.

Saio de manhã cedo para o meu mistério e vejo agitação nas ruas.

Rostos ansiosos, gestos bruscos, gritos nas vozes.

A sombra é ainda grande e a cidade ilumina-se à mão.

Escolho o trilho mais seco para ouvir no chão os meus pés.


As linhas paralelas encontram-se no infinito.

E uma mentira pode sempre encobrir-se com outra.

A falta de esperança não me entristece.

Nenhum mundo é deste reino.


O movimento muscular aquece o coração e o sonho.

Cada passo presume outro e bastam-se todos com essa certeza.

O cansaço, hoje, ainda está longe.

Vem apenas quando o objectivo já está à vista e já é inútil.

Como os gritos da partida, como os olhares ansiosos, como a esperança.


O tempo acompanha-me calado.

Sinto-o ao meu lado, monótono e irrepetível.

Faz de cada passo uma festa mas a timidez esconde-lhe a exuberância.

Entre mim e ele nem uma palavra.

Porque também o silêncio vem connosco.


É assim que se repetem as minhas manhãs húmidas ou secas.

A própria paisagem deixa-nos passar como se tivéssemos vontade.

Mas a vontade não veio por não saber comportar-se.


Vamos sós, portanto.

Eu, o tempo, o silêncio e a minha carga.


À tarde voltaremos com o cansaço atravessado na garganta.

A sensação perfeita de uma missão não cumprida.

O corpo arrastado na sua segura insegurança.

A roupa colada ao ardor da pele.


Nas ruas, os rostos ansiosos, bruscos, em gritos.

Assustados mas contentes pelo milagre de estarem vivos.


Sísifo

Pobres de dia


Espera

Podemos fixar-nos em pequenos pormenores da existência, como palavras, risos ou encolheres de ombros, e dizer deles que não são tudo ou que o tudo é outra coisa, nenhuma coisa. Ainda assim tudo o que se diga será prova de impaciência.

Centro

Há aqueles que consideram os seus locais os melhores do mundo. E há outros para quem qualquer lugar é melhor que o seu. Os primeiros têm o privilégio de viver no centro e aí poderiam ficar se fossem honestos. Os segundos viverão uma procura inquieta por terem nascido já derrotados.

Défice

A minha necessidade diária de ficção tem-se reduzido a um ritmo superior ao do défice.

Vertente

Deixei de ler poesia vertida. Mesmo a que é feita por poetas é um trabalho escorrido em segunda mão.

Livros

Sobre o livro "Como falar dos livros que não lemos?" do Pierre Bayard - nº1 Top Vendas França - só me ocorre dizer que é uma grandessíssima merda.

Pobre de espírito

Cavaco Silva diz que o "envergonha um pouco" haver em Portugal dois milhões de pobres. Pois eu tenho muita vergonha por haver pobres em Portugal e noutros lados, e de ter o Presidente que tenho, que age e fala como se não tivesse nada a ver com isso.

Posse

Depois de ler uma polémica sobre a cópia na internet de músicas e textos, lembrei-me que faltava referir a questão da posse, uma figura social que se mantém inexplicável.

terça-feira, outubro 16, 2007

Pena de morte


Muro

Foram muitas horas de treino em frente ao espelho. Um trabalho duro, difícil. Mas agora também já consigo sorrir sem que ninguém perceba.

Selva

Mesmo uma empresa honesta, admitindo que existe, tem toda a vantagem em chegar ao mercado com perfil desonesto, por que toda a gente sabe que honestamente ninguém tem grandes lucros e tanto os investidores como os clientes gostam de estar do lado do sucesso.

Filosofia

Aos treze anos dizes, defendendo o teu ponto de vista, que "ser humano é querer ter dinheiro", à maneira do "penso, logo existo" de Descartes. Saiu-te sem pensares, ou porque já não é preciso pensar para pensar assim.

Justiça

Parece-me que a principal razão por que alguns políticos estão a eleger o fim da pena de morte como prioridade internacional, é a tendência recente para levar a julgamento antigos governantes.

Esperança

Li num 'blog' que os 'Sinais' do Fernando Alves permitem enfrentar "um dia agitado com um sorriso imenso na alma". Fiquei contente por saber que havia mais alguém.

Forma

Todos os dias sou confrontado com evidências sobre a inexistência de lugares perfeitos. Mesmo assim há no bater contínuo do coração uma qualquer particularidade que me faz continuar a procurá-los. Pelo menos estou entretido.

Sentido

Quando há o risco de a História se inverter, com os pobres a perderem a vergonha e a começarem a roubar os ricos, os governos compram pistolas novas para os polícias.

segunda-feira, outubro 15, 2007

Manga curta

Margens

Tudo o que disse ontem sobre margens parece-me hoje bastante errado. Margens erradas. A noite de domingo não é propícia a dizer coisas definitivas. É véspera de fato e gravata e de movimentos controlados pelo tempo. Há margens que cheguem para todos. Mesmo à multidão podemos aceitar as acefalias como temporárias - tais como os nossos instantes de lucidez - e ter, por isso, esperança que o mecanismo celular da evolução não se dê por esgotado ou satisfeito.

Eu

Papeis, textos, restos, pedaços, tempo, vontade. Listas. Regresso. Vai ficando a vida dispersa em pedaços, e esta surpresa resulta, como as outras, de marcar o futuro com formas previsíveis. Tudo é surpresa e nada é surpresa. O movimento do tempo é igual ao do texto e daquilo que se quer comunicar - ou esconder. Procura-se a essência, por vezes o esqueleto, a estrutura, outras o princípio vital, o sopro inicial, outras vezes outro mito qualquer, a irrecusável analogia, porque se parte do lugar onde se está e não de outro sítio qualquer. Entender, compreender, tornar possível, contínuo, o discurso do conhecimento. Insatisfaz o salto - a quem insatisfaz, que não ouso entrar no que outros pensam - porque qualquer descontinuidade é uma ruptura, uma imperfeição. Ainda assim o único discurso legítimo, porque tendencialmente um testemunho, é a primeira pessoa, a abominável primeira pessoa, livre do território das hipóteses secundárias, e sempre afirmativo, mesmo que errado, mesmo que duvidoso.

Melodia

Quando não perceberes a letra tenta dar atenção à música.

Insectos

Hoje voltei a vestir manga curta. O aquecimento global veio visitar-me com um sorriso vencedor. Eu e os mosquitos ficámos felizes.

Susto

Estava a olhar para a beleza jovem de uma empregada de bar e a pensar que esta beleza a que damos valor não resistiria às dificuldades de uma vida um pouco menos amparada. Lembro-me de como uma mulher que amei ficava feia quando se afligia ou perdia o controlo da situação. O rosto do medo é, ele próprio, aterrador. Perante o desconhecido o rosto transfigura-se e revela o que parece estar antes dele. Não deixa de ser estranho que considere mais autêntico o que se revela na aflição do que o que ocorre na normalidade.


Artur Torrado

domingo, outubro 14, 2007

Pérolas (XXXIX)


Publicar o que se escreve, mesmo desta forma universal e directa, é propor ao estranho o embarque nas peculiaridades do nosso mundo. O sucesso, chamemos-lhe assim, é conseguido quando, independentemente das razões, o nosso mundo tem eco no mundo de um leitor. Esse eco, essa receptividade, é um acaso que comove pela sua improbabilidade. Um dia talvez me detenha a enunciar a multidão de factores que contribuem para que mundos de alguma semelhança se não encontrem. Mas não é esse o meu propósito, agora.

Interessa-me antes pensar como essa improbabilidade ao mesmo tempo que fascina, perverte. A enunciação que hoje se promove procura filtrar-se das consequências angustiantes do acaso. Instala-se, por isso, no lugar das multidões, na esperança de uma visibilidade reforçada e de que o olhar particular pouse, por definitivos momentos, sobre o texto sofrido. Mas a multidão é cada vez mais um ruído uniforme que marcha em uníssono e, refém da sua própria visibilidade, fixa a limitada atenção no dedo que lhe aponta o caminho. Perante a voz monocórdica da realidade restam ao humano os caminhos da integração ou da margem:

integrado passa a dispor o seu mundo como o dos outros e, alinhado, terá a alegria de um sistema de códigos evidentes e reconhecíveis, e a facilidade dormente do pensamento pré-fabricado, imune à estranheza;

na margem, na dispersão infinita das possibilidades, apenas terá garantidos a consciência e o olhar.


O puro acaso levou-me, há uns tempos, a uma página que se propunha numa limpidez inocente. Cativo das palavras, liguei-me a elas e fui seguindo a sua efervescência. Depois houve o "Registo de Nascimento" que trouxe da Livro do Dia e agora o "E como ficou chato ser moderno" recolhido em Lisboa, para evitar o mau ambiente que o fim-de-semana levou a Torres Vedras.

Agrada-me que a convivência com o acaso tenha estas surpresas vitais: caminhos que são alternativas à estrada principal, congestionada pelos modelos fortes da produção. Em vez do drama oco da política, em vez da comédia fácil da economia, em vez do ensaio obeso das religiões, em vez do obsceno romance financeiro, a poesia singular de quem vive.

sábado, outubro 13, 2007

O Segredo do Nobel

De ano para ano vai-se confirmando que o comité que escolhe o Nobel da Literatura tem um critério totalmente determinado pela edição em Portugal.

Muitos falam de pressões políticas, económicas, religiosas, etc., mas após uma cuidadosa verificação dos dados acumulados ao fim destes anos todos, os únicos parâmetros que permanecem incontornáveis são a inexistência de edição do novo Nobel em Portugal (ou edições descuidadas e há muito tempo esgotadas) e estarem sempre fora das listas de 'nobelizáveis' enunciadas pelos comentadores nas várias publicações que antecedem a grande decisão.

Começa a ser claro que o comité Nobel tem como objectivo - incompreensível - lesar os editores portugueses. Ninguém poderia acreditar que houvesse tão sistematicamente critérios errados na escolha dos autores a editar. Só pode mesmo tratar-se de uma tramóia. E tendo o Nobel da Literatura o único objectivo de promover as vendas de determinado autor, estamos perante uma atitude inqualificável por parte da Academia.

Estou a imaginar que nas semanas que antecedem a atribuição, a Academia Sueca destaca para Portugal um ou mais agentes que vêm verificar exaustivamente os autores viáveis que em Portugal não se vêem nem se falam. Perante os relatórios e os faxes e 'e-mails' com as sugestões que aparecem nos jornais, o comité Nobel limita-se a ir riscando da lista qualquer nome que tenha o privilégio dos editores portugueses. Depois, entre os que sobram, fazem um sorteio, porque estão muito em cima da hora da entrega e já não há tempo para os ler.

Só isso explica que uma escritora como Doris Lessing, com mais de cinquenta livros publicados, tivesse hoje à venda nas livrarias apenas a obra "Gatos e mais gatos", que, por acaso, são histórias sobre gatos, mas poderia ser uma obra sobre os disparates do Governo, ou sobre o PSD (o tal saco de gatos), ou mesmo um manual para cuidar desses fantásticos animais.

Uma vez mais a Academia troçou dos Editores Portugueses. O que vale é que mesmo sem Nobeis, alguns editores vão sempre arranjando um Segredo para compor as contas.


(A título de exemplo, o Nobel de 1955, Halldór Laxness, foi editado este ano em Portugal... ao que sei, pela primeira vez. Mas mesmo nisso alguns editores são pouco escrupulosos, pois anunciam como inéditos livros que estão esgotados ou que tiveram novas traduções.)

Artur Torrado

quarta-feira, outubro 10, 2007

Queda

Adblock

Há quem diga que as letras das músicas não têm que ser poéticas. A prova disso é a voz desta leitura que acrescenta música e sentido a um texto que não os tinha. Obrigado Finúrias.

Sísifo

terça-feira, outubro 09, 2007

Corrupçãozinha

A minha corrupçãozinha ocasional consiste em roubar textos que de maneira clara dizem coisas que me agradam, me supreendem ou me indignam. Os autores que me desculpem, mas eu pagava para que estes textos estivessem disponíveis para todos... desde que não fosse muito caro...


domingo, outubro 07, 2007

Ecologia mental

A televisão enquanto produto tóxico.

sábado, outubro 06, 2007

Pérolas (XXXVIII)

Há 'bloguistas' que custa a crer que sejam desta terra de pensamento engessado...

A K e o Y

A Presidência da República fez um espectáculo comemorativo do 5 de Outubro com Katia Guerreiro, apoiante e mandatária de qualquer coisa durante a campanha eleitoral.

Carmona Rodrigues também usou dinheiro da Câmara de Lisboa para fazer espectáculos com o seu apoiante Toy.

De muitos casos semelhantes se vai ouvindo falar no nosso jardim à beira-mar plantado.

Suponho que é esta a atitude educativa que melhor define a detenção do poder em Portugal: usar os bens públicos para servir os amigos.

E a amizade é uma coisa muito bonita.

Vão passar muitos anos, séculos talvez, antes que o espírito pimba que enforma as nossas 'elites' perceba que um K e um Y não chegam para parecermos modernaços.

E que antes de falar da importância da educação se perca um bocadinho a pensar na importância da cidadania e da honestidade.

sábado, setembro 29, 2007

Dia de azar

No dia de ontem ninguém no país ganhou o Euromilhões, a equipa de rugby não levou nenhuma cabazada e ainda por cima ganhou o Menezes. Nas próximas eleições vamos ter que escolher entre o senhor feliz e o senhor contente...

Bruma

Nem extenso nem profundo, para não assombrar a Obra. Limitado e emprestado, formal como uma apresentação de prestígio. Páginas para saltar a correr, na pressa de chegar ao âmago da questão. Ah, e aceitar as coisas como elas são: opinião amiga, pretexto para um texto que será muro de protecção.
Mas não. Pode acreditar-se nisto, como em qualquer outra coisa, que não se perturbará o acaso do mundo e a sua enviesada memória. Umas vezes maravilha, outras dislate técnico.
É falso que tudo seja igual e é verdade que estamos aqui com a estranha função de detectar as diferenças. E se possível desfrutar delas. Ou aniquilá-las.
Nas brumas de Burma ocorrem cenas e desejos que nos aniquilam pela sua dignidade. Nos momentos em o mal é claro, e antes que as aparências se sobreponham e as máquinas devorem a verdade, a revolta absorve-nos pelo seu ar de essência.
Um mundo feito à medida de nada, condicionado pelas condições iniciais, reduzido aos mínimos comuns e incapaz de endireitar as costas. Factos em vez de ética. Deve ser melhor assim...
No princípio era o verbo. Aceito. Por uma questão de princípio. Analogia por analogia, fico com a que me sabe melhor. O universo na sua vastidão a começar num ponto, num pequeno zero cheio de potencial. E a ficar aí eternamente em vez de se dispersar a criar um tempo que se perde. Um bom princípio. Lá onde todas as hipóteses ainda se vislumbram ou, mesmo que não se imaginem, admitem o inimaginável. Potencial. Acumulação de ética sem factos.
Há um grande conjunto de palavras inúteis. Assim como objectos inúteis. Inúteis por se inscreverem em lógicas deterministas. Numa altura em que as coisas ainda estão a começar e a expansão do acaso é a lei.

Prólogo

sexta-feira, setembro 28, 2007

Ética comercial

O dilema ético de hoje pede-me que escolha entre um político demagogo, incompetente, vaidoso e ciumento, e uma estação de televisão presunçosa, cínica, inimputável e ridícula (ou vice-versa).

Por favor, poupem-me!

Ou, como diria um certo filósofo: "porque me pedem sempre, com tanta deferência, que escolha entre dois pedaços de trampa?"

quinta-feira, setembro 27, 2007

Descobrem cada coisa...

"Transparência (TI) diz que os centros de decisão financeiros mundiais, sedeados nos países ricos, jogam um papel central na corrupção dos mais pobres."

"O criticismo dos países ricos à corrupção dos pobres tem pouca credibilidade, quando as suas instituições financeiras assentam a sua riqueza no roubo das pessoas mais pobres do mundo", diz a vice-presidente da organização, Akere Muna.



Público de hoje

domingo, setembro 23, 2007

Sonhos

Roubei os sonhos do Paulo Moura no Público

domingo, setembro 16, 2007

Vácuo

Aceito que nos passos que descrevem um percurso há uma equação universal,
Nos pequenos pormenores de todos os dias sou capaz de ver teorias de tudo,
E nas dobras coloridas dos caminhos encontro referência a leis fundamentais.
Aceito que esse possa ser o campo de uma razoável crença.


Leio, na escuridão preenchida de estrelas, obscuros romances inacabados.
Sinto, no esforço muscular da subida, as marcas da escultura do tempo.
Percebo, na violência cinzenta do vento, a harmonia frágil da consciência.
Ouço, próximo da margem do rio eufórico, a atracção universal dos corpos.
Sonho, quando a força já não obedece, a equivalência entre a dor e a luz.


Acima das nuvens há um horizonte maior,
A distância sobre a verdade transforma todas as coisas em pequenos nadas,
O relativamente difícil torna-se relativamente fácil,
E os dons que suponho anteriores a cada gesto, tornam-se súbito acaso.


Descer de novo à terra e à sua vã esperança é um suave tormento.
Cada ciclo aproxima-me de distâncias cada vez maiores.
A mancha cinzenta do real revela-se em pormenores escurecidos,
E das paredes húmidas desce o aroma acre do sofrimento,
Enquanto se testam, sob os rochedos, formas dementes de destruição.


Não era isso que tínhamos pensado no início.
Queríamos saber apenas como esgotar nos poros a curiosidade;
Vasculhar a profundidade e o exagero, com prazer e delírio.


Queríamos encontrar uma razão que soubesse muitas razões.
Queríamos tomar connosco o tempo como companheiro de viagem;
Sacudir, na gargalhada ocasional, a certeza biológica do efémero.


Mas há, no discurso ambíguo da inteligência, lugares abandonados ao seu destino,
E o opaco medo de não ser, parece resistir a todas as tentativas de clarificar a natureza da matéria.


Sísifo (sobre a bomba de vácuo)

quinta-feira, setembro 13, 2007

quarta-feira, setembro 12, 2007

Público Embolado

Estamos mal de adjectivos. Há falta. Nota-se que a procura excede a oferta e, num certo sentido, pode mesmo falar-se em crise. Hoje em dia é difícil encontrar um bom adjectivo. Passam-se semanas sem que apareça um que nos faça olhar duas vezes. Mesmo aqueles que eram considerados adjectivos caros, passaram a ser usados no dia a dia e perderam o valor e o interesse. Gastaram-se. Eu já nem sei, quando me apercebo que estão a usar um adjectivo assim para o pesadote, se estão a adjectivar ou se estão a gozar comigo. Provavelmente é uma questão de gradação. Talvez haja falta de níveis (falta de nível há de certeza). Talvez o problema não esteja no adjectivo mas na força com que é usado. Que fazer quando uma frase, uma simples frase, escrita às três pancadas e deixada a correr num texto de prosa taxada à sílaba, pode ser apelidada de extraordinária? Suponho que não se pode fazer nada. Tem que se esperar que a poeira assente e a ganga hiperbólica se gaste com as múltiplas lavagens. Mas por enquanto há que aguentar. Parece que vivemos no topo do mundo. Tudo o que acontece, mesmo que banal, e temos que reconhecer que à vista desarmada é tudo banal, é adjectivado com o topo de gama da adjectivação. Nem seria mau se fosse por brincadeira. Se fosse uma sofisticada ironia (eu leio sempre como se fosse uma sofisticada ironia para me proteger dos efeitos secundários depressivos). Mas o colosso hoje pode não passar de um miserável engano sobre multidões. Um vermezinho que consiga o olhar simultâneo de uma multidão hipnotizada, é um monstro mediático. Como não há muitas coisas a serem propriamente alguma coisa que valha, há que adjectivá-las superlativamente para que passem a existir nos intervalos do seu próprio vazio. Daí o consumo excessivo de adjectivos. Daí a falta. Daí a sensação de irrealidade quotidiana de que já há uns anos o Eco fazia eco. Tive um amigo, que talvez ainda tenha se não se perdeu num comparativo de superioridade, que todas as vezes que me encontrava tinha para contar a melhor anedota que alguma vez ouvira. Como ele estava adiantado no tempo. Este agora é um tempo em que temos que viver aos saltinhos, com gritinhos de prazer à mistura. Cada momento superlativo do anterior.
Suponho que uma das razões para a crise de adjectivos é a proliferação de jornais gratuitos: muito em breve já ninguém estará disposto a pagar por um bom adjectivo, confundido pela mata densa de adjectivos menores. Soube há pouco que das redacções do Público e da Bola vão sair, até ao fim do ano, as notícias necessárias e suficientes para um novo gratuito. Não querendo deixar de colaborar em tão benemérita empresa, proponho daqui, para escolha de quem de direito, que o novo jornal se chame Bola Com Creme ou Público Embolado...


Ikivuku