domingo, dezembro 07, 2008

Difamação

Se Vasco Pulido Valente não for preso na terça-feira, por difamação, vou admitir que isto é tudo verdade ...

sexta-feira, dezembro 05, 2008

Pérolas (LI)

O verdadeiro estado da nação lê-se assim...

terça-feira, dezembro 02, 2008

O Fim (parte 9)

As coisas não acabam quando queremos. Embora possam acabar porque queremos. A maior parte das vezes quando damos conta já tinham acabado bem antes e apenas não nos apercebemos por causa da inércia própria dos corpos. O mesmo se passa com os inícios: muitas vezes quando nos apercebemos que uma coisa começou ela já vai bem adiantada. Quando o rebento aparece ao cimo da terra já houve muito trabalho subterrâneo. Por isso o fim, que se supõe um momento, acaba por ser indeterminado e não observável. Talvez um caso para aplicar a teoria dos limites. E sabemos como os limites são, eles próprios, incompreensíveis. Mas não, não estou a falar da MFL e dos seus lapsos de linguagem, ou do seu piloto automático. Quem ainda se lembra da MFL que confrontou e deu origem à expressão da geração rasca? Eu não me lembro, apesar de fazer parte dessa gloriosa geração. Porque o essencial é o esquecimento. As coisas vão passando e a memória vai sendo dissolvida em ácido, dando uma vaga ideia de fim. Nunca um fim definitivo porque a memória não se lembra do que foi antes e jamais comemorará factos que não aconteceram. Constata-se o fim das coisas que ainda não acabaram ou daquelas que nunca existiram. Tipo: antigamente é que era bom; antigamente é que havia respeitinho; antigamente é que havia ordem; antigamente é que havia gente com valor. Fins e mais fins, uns atrás dos outros a definir a textura sistemática da história. O peixe pescado cresce uns centímetros todos os anos. Continua a crescer depois de comido. A fazenda em África é cada vez mais o paraíso de uma época que derrotou a humanidade. É impressionante como quase nada muda realmente: passam os anos, passam as décadas, passam os séculos e a vaidosa irracionalidade mantém o seu império totalitário. Um pouco menos de arrogância e ambição e talvez se fizesse um espaço habitável. Não sei bem para quê. Era só uma ideia. Decididamente é uma perda de tempo continuar à procura do fim. O fim está entre nós. Não é bem um monstro, é mais um salvador. O fim desliga a tomada no momento em que o adversário vai marcar um golo. Tirando isso não serve para mais nada. Ou para escrever textos quando não há expiração. O que ajuda a provar a inutilidade. É uma delícia poder dizer disparates impunemente. Por mim vou dedicar-me à análise política. É uma forma idêntica de dizer barbaridades e há sempre a hipótese de alguém reparar em nós e achar que a nossa 'performance' justifica aparecer na televisão - a glória suprema! Uma postura cínica, falar de dez mil mortos com a mesma candura com que se fala de bolo de chocolate; não esquecer de chamar Exmo Senhor Doutor mesmo pensando que é um filho-da-p*** da pior espécie, certezas aos molhos, muita indignação com o aumento dos preços e muita solidariedade com os pobres e com os desempregados (mas só aqueles que são verdadeiros desempregados e não com aqueles que, obviamente, não querem trabalhar, como muito bem se sabe no banco de portugal). Ah! e com as crianças também. Vejo o meu futuro como 'opinion maker' envolto em brilhos vários e sucesso. Sucesso é que é. Quanto ao fim o melhor é esquecer. Cada um de nós encontra o seu fim merecido uma vez na vida, o que nivela, por uma vez também, o delicado desejo de diferença. Em princípio um fim é um bom princípio e um bom fim é, por princípio, um fim bom. (O fim, pelo menos este, não continua).

*** Os asteriscos não são 'pis' de pudor, são apenas para evitar que através dos motores de busca aqui venham ter filhos-da-p*** que andam à procura de filhos-da-p***.

terça-feira, novembro 18, 2008

Postevintidois


Ah! Reconheço que estava à espera de um pequeno registo na tua árvore de sentimentos. Qualquer coisa de ligeiro. Um vestígio. Mas, ainda assim, uma pequena marca visível. Daquelas que passam despercebidas ao transeunte apressado ou mesmo ao observador rotineiro, e apenas recebem o reparo do obsessivo que encontra dez diferenças nos passatempos em que apenas estão previstas sete. Não que eu ande à procura de diferenças. Procurei enquanto achei que valia a pena, e bastante tempo mais depois de achar que já não valia a pena, e depois fui embora para casa descansar. O que não quer dizer que não seja obsessivo com as diferenças, ou que não sejam as diferenças o sal da minha monótona vida. Nem vale a pena falar de diferenças. Talvez noutra altura e noutro lugar. O que eu esperava, lá no fundo, era um pequeno registo historiográfico, uma nódoa que fosse a marcar presença, a dar a curta impressão de existência. Nada que fosse uma ténue marca de água - que infelizmente sempre me coloquei na discreta, cómoda e orgulhosa posição de espectador ausente - mas uma mancha tombada na margem da fotografia, dedada de gordura que estando a mais pareceria ainda uma forma de estar presente.

Reconheço que estava à espera de ter existido, digamos assim, por interposta pessoa, como um empecilho ou um resto de sobremesa. Uma bagagem perdida. Estaria lá, nem que fosse por se ver uma sombra num dia de sol mais inclinado. Mas não foi assim. O que salta à vista, ainda que filtrado pelo inevitável sabor a mofo, é a vacuidade de todo um esforço para existir na inexistência. Desejos que não se conformaram aos factos e que não quiseram ter certezas por saberem que nunca as teriam. E uma fuga quase contínua aos gestos exagerados. No fundo uma horrível inaptidão para a pose.

Dirás que lá estou eu a chamar virtudes aos defeitos ou a orgulhar-me de perícias inúteis. Saltos de cavalo em tabuleiros de xadrez muito frágeis. É provável. Hoje já não estou em condições de disputar as razões que perdi demasiadas vezes. E nem é disso que estou a falar. Estou apenas a referir o vácuo, a maneira lisa como me esfumei da história sem deixar um leve aroma. Há dias, num contexto absolutamente diferente de todos, alguém se referiu a mim - ou mais concretamente a um meu personagem - que dos fracos não reza a história. Suponho que, com tempo, se poderia construir toda a humanidade sobre esta frase e a estranha concordância que ela gera. Eu próprio, se tivesse talento e tempo, poderia desconstruí-la nas suas inúmeras ramagens coloridas que enfeitam uma inegável enormidade de orgulhosas campas.

O meu reino, chamemos-lhe assim, passou ao lado de todas as possibilidades de sucesso. Mas permanecia essa ideia estranha de ser marca de alguma coisa em algum lado para alguém. Não sendo assim dá a impressão de ter ficado o caminho ainda mais limpo de destroços e o tempo mais conforme com as necessidades da alma. Ainda hoje me apercebi que é bastante fácil, querendo, encontrar Deus dentro de uma manga. Refiro-me ao fruto manga (embora não ponha de parte a ideia de O encontrar no encobrimento tecido de um braço). No entanto não sou capaz de descrever por palavras esta sensação que, por momentos (precisamente enquanto comia uma manga), se me tornou evidente. Fica a ideia apenas, para explorar depois da reforma, com os tais anos de saúde que o futuro promete para depois da nossa época produtiva.

Não estive lá. É isso. É como o lameiro que está calmo sob o viaduto. Os viajantes passam todos por ele mas não existe por não ser visível da velocidade rigorosa com que se atravessam as coisas. Uma velocidade que traz o desejo imponente de chegar. O lameiro ouve o rugido das viaturas carbomovidas e sabe da sua existência. Mesmo que alguma caia despistada no acaso de um voo diurno etilizado, a morte ou o álcool ou o simples aborrecimento evitarão a maçada de um lameiro na história da elegância. E não há nada mais aborrecido que uma comparação para fazer valer um argumento. O certo é que não estive lá.

domingo, outubro 19, 2008

O Fim (parte8)

O fim é um assunto interminável. Apesar de inevitável e palpável é interminável. E digo-o com pesar porque queria sair airosamente desta experiência macabra e não consigo. A minha ideia era proporcionar um fim digno a um blogue que nunca foi indigno. Dizer da minha justiça e deixar em paz o moribundo para um repouso eterno. Mas a linguagem é desastrosa. Repouso eterno! Quem pode ficar descansado com o repouso eterno? É angustiante. Passar uma noite em claro já é uma proeza que me ultrapassa. O repouso eterno é mortal! Repousar já é em si destrutivo. Indigno mesmo. Repousar eternamente é ter tudo para nada. Uma eternidade disponível e logo para estar quieto sem mexer uma pálpebra. Éne vezes insuportável. Por mim começava de novo, noutro lugar, noutra latitude, noutra atitude. Assim uma espécie de hipótese de segunda tentativa mas agora a sério. Mas o meu guru - claro que tenho um guru - disse-me, em lamento, que a única tentativa séria é a primeira. O que vem a seguir já é comédia. Um resgate de intenções produzido por simulação em computador. O que não quer dizer que doa menos. Sinto-me obscuro. Hoje não era para ser um bom dia para voltar ao fim, mas como já aqui estou o dia tem que ser bom nem que seja à força. Suponho que o pior é a falta de tema que está a inundar o mercado. Falar da crise para quê? A crise é uma coisa de que se foge, como se foge de tudo o que se sabe que não temos a solução na nossa mão. A espiral da destruição. Alguém, do outro lado do mundo, na sua miséria cada vez mais profunda, há-de pagar a nossa crise com o que lhe resta de sangue. É esta a lei desde o início dos tempos, e mais ainda desde que alguns homens começaram a acreditar que eram mais homens que outros e usaram a força para o mostrar. Uma veste especial e aí temos alguém capaz de determinar o destino de quem não tem uma veste especial. Um tubo metálico na mão e aí temos alguém capaz de se impor a quem não tem um tubo metálico na mão. Tudo por causa da crise. Crise de água, crise de fruta, crise de carne, crise de sexo, crise de frio, crise de terra, crise de dinheiro, crise de poder, crise de medo, crise de sonho, crise de afecto, crise económica, crise de tempo, crise de nervos. Eu tive uma fazenda em África. Agora tenho um partido que zela pelos meus interesses aquém e além mar. É uma maldade dizer estas coisas depois de jantar, com a barriguinha cheia, as luzes de baixo consumo bem acesas e a televisão a debitar um concurso de perguntas fáceis e respostas difíceis, ou um programa de anedotas inteligentes patrocinadas por uma ou mais multinacionais. Amemos a gravata. Acima de tudo a gravata. Onde há uma gravata há felicidade. Onde há muitas gravatas há muita felicidade. O meu reino por uma gravata. Como símbolo não está mal e o nosso tempo, exemplar, é um tempo de símbolos, de verdades irrefutáveis. Como se pode ver, ouvir e ler, o fim tem as suas naturais contradições. O fim de uns é um excelente começo para outros. Abutres e hienas, para não falar de vermes menos evidentes, são dedicados apreciadores de bons fins. Ainda por cima as hienas riem. Embora não se saiba porquê. A ideia do fim é, portanto, gerar novos princípios. Regenerar. Reciclar. Reutilizar. Colocar no ciclo natural os restos mortais do ciclo anterior, dando à eternidade o aspecto simbólico da cobra que engole a própria cauda. Ficamos assim purificados de todas as más intenções que antes do fim alimentámos: gestos e gestos de ansiedade reduzidos a fuel de novas experiências. Reencarnação sistemática dos resíduos através de transformações químicas muito simples. E água, água, água, muita água. No fim a terra há-de ser um bloco de ferro incapaz de se transformar noutra coisa qualquer. A não ser que aconteça alguma catástrofe. (continua... se calhar)

Torcato Matos

segunda-feira, setembro 29, 2008

O Fim (parte 7)

Longe de mim a intenção de ser contestatário. Está-me no sangue mas não está em mais lado nenhum. Estou perfeitamente de acordo com o status quo, e para onde virar o mundo virarei eu também. A prática da vida faz-nos sentir a vantagem do sentido prático. A mim, pelo menos, faz. Não que eu seja um pragmático. Na verdade não tem muita importância o que eu sou ou não sou. E pensar desta maneira não tem vantagem alguma. Estou, portanto, devidamente orientado para ser uma pessoa construtiva, naquele sentido em que não tenho intenção de destruir nada. Um colaboracionismo por omissão. Por que, não nos esqueçamos, o que interessa aqui é o fim. O fim, podemos dizê-lo, nasce no princípio. Parece uma tautologia mas prova-se que não é, pela dificuldade que existe em tentar demonstrar. Para mim, um fim sem princípio não é melhor que um princípio sem fim. Fiz as contas. No primeiro dia de aulas a filha da minha prima, nos seus ofuscantes catorze anos, leva com ela 153 euros em livros, 77 euros em material escolar, tudo dentro de uma mochila de 95 euros, vestida com cerca de 370 euros de roupa e adereços de moda, (ainda está calor), falando por um telemóvel de 275 euros (com 43 euros de chamadas e 1.500 mensagens grátis por semana) e 30 euros na carteira para as despesas do dia. Os livros estão caríssimos. Suponho que um dos divertimentos preferidos dos humanos, e até de alguns animais, desde os primórdios da humanidade, é fazer demagogia. Fica bem desde a mais selecta reunião social até à mais tinhosa das tascas, passando pela multifacetada televisão ou pela frondosa imprensa escrita. O que não fica bem num blogue é falar mal da imprensa escrita. Por que um blogue que se prese há-de ser falado um dia, com pompa e circunstância, na imprensa escrita, passando então a existir. Daí que o verdadeiro blogue, aquele que não tem mesmo nada que se possa dizer que não é um blogue como deve ser, é editado por um profissional da imprensa nas horas mais vagas que tem. Demagogia pura, meus senhores. A palavra demagogia é, em si, demagógica: quando falo de demagogia estou garantidamente a fazer demagogia. É das poucas palavras que não tem metalinguagem possível. Um demagogo nunca metalíngua no saco. Sócrates, o filósofo, num dos seus mais famosos diálogos perdidos - que nem o Platão salvou - punha a elevada questão de saber qual era o mais antigo profissional do mundo, se o demagogo, se o chulo (duas profissões muitos mais antigas que aquela que se convencionou chamar a mais velha profissão do mundo). Como o diálogo não se salvou nunca saberemos as conclusões que foram tiradas na época. E agora também não me apetece pensar no assunto. Já em criança a minha professora de português, a primeira por quem me apaixonei, dizia que eu passava muito pela superfície das coisas, tendo muitas ideias - não necessariamente boas - e não levando nenhuma até ao fim, ou, pelo menos, a alguma profundidade. A minha ideia era espalhar sementes pela terra e depois desandar. Um princípio devastador, como podem imaginar. A profundidade é mais conseguida pelo sedentário que pelo nómada e eu não tinha um caminho mas vários e em todos eles muitos obstáculos e contradições. Não valia a pena. Nenhuma pena. Nem de pato nem de Sintra. Há sempre um momento em que chega a estupidez, uma das mais produtivas actividades humanas. A tal professora de português dizia que eu deveria saltar do barco antes de ele se afundar, apesar de o barco ser uma péssima metáfora. Um metáfora enjoativa. E um barco à vela ainda é mais enjoativo. Ondas e mais ondas e a gente a andar sem mexer as pernas nem gastar energia. Que estranho mundo este em que os barcos servem de metáforas. Tudo para que no fim haja um náufrago. O objectivo de qualquer metáfora embarcadiça é gerar um ou mais náufragos, uma apetência sistemática dos mitos e da literatura. Navegar, portanto, tem por objectivo naufragar, mais tarde ou mais cedo. E antes mais cedo que mais tarde. O fim é o naufrágio, meter água por todos os lados, enchendo as gargantas de incapacidade para gritar. (continua... talvez...)

Torcato Matos

sábado, setembro 06, 2008

O Fim (parte 6)

Pensavam que tinha acabado, mas enganaram-se. O fim, como bom português, foi de férias em Agosto. E como não teve nenhum acidente na estrada, nem no mar, nem lhe caiu o avião, nem sofreu um assalto violento - um qualquer-coisa-jacking como se diz agora - voltou. Não sou capaz de garantir se o fim está a acabar ou se ainda está no princípio. Há coisas que não somos capazes de dominar. A natureza é, em si, um bocado bruta e não obedece a lógicas muito práticas. Eu limito-me a acompanhar os acontecimentos, a força do vento e a teoria das probabilidades. Deus não joga aos dados com o Universo. Talvez beba uns copos para esquecer a embrulhada que criou mas nada de jogar aos dados. É bom que se perceba que o fim tem sempre algo de transitório. Aí não se distingue das demais ocorrências do universo. Há o princípio, há o meio e há o fim. Cada um com o seu tempo próprio, muito subjectivo e também muito desequilibrado. Apetecia-me chamar a esta prosa de hoje qualquer coisa do tipo: "Fim, o Regresso!". O mês de Setembro tem esta estranha característica de ser o princípio e o fim. E é mais o fim por ser o princípio do que o princípio por ser o fim. O regresso às aulas encheu os hipermercados e as bocas das mães e dos pais. Não há nenhum dinheiro que custe mais a dar do que o que é necessário gastar em livros nesta altura do ano. Não admira que a maioria dos miúdos fique traumatizada: cada vez que tiverem de comprar um livro hão-de sentir esta imprecação paternal. Os livros deveriam ser dados pelo estado já que o tal ensino é obrigatório! O mal é que os livros de estudo não são importados, não vêm com boas marcas estampadas, não são devidamente publicitados na televisão por ídolos da juventude, e , temos de o dizer, são excessivamente baratos. Falta-lhes o brilho de objecto inútil que é padrão de muitas outras coisas. E, last but not the least, destinam-se à coisa mais chata que há: a escola! Também neste sentido Setembro é o fim. Exactamente por ser o princípio. Mas eu não me queria desviar dos meus nobres propósitos de eclipsar com a devida pompa um 'blogue' que teve a dada altura o objectivo de ser o mais popular do meu bairro. Claro que a ideia não era assim tão humilde. Um passo de cada vez. Começa-se pelo andar, depois o prédio, depois a rua, depois o quarteirão, depois o bairro, depois a cidade, etc. Ao que sei chegou a estar entre os cem mais do meu bairro. Não se pode considerar mau no universo dos 'blogues' que estavam desejosos de mudar o mundo. O que não era o caso deste, pelo menos na parte que me toca. Mesmo assim eu mudava o mundo. Mudava algumas coisas para ver se ficava melhor. Um método de tentativas e erros que parece ter sido o de Deus mas um pouco mais ousado, com recurso a mais estatísticas e a mais entrevistas telefónicas. Talvez se conseguisse eliminar o desemprego. Noventa por cento das ofertas de emprego são para "Call centers" e exigem uma razoável dicção. A minha gaguez, o 'sshee sshee' e ler os vês como bês retira-me dessa corrida. Mas estou em condições de preparar as entrevistas e fazer os relatórios. O heróico correio morreu. Felizmente ainda há uns estrangeiros que aprenderam suficiente português para fazerem entregas das cartas dos bancos, dos seguros, do estado e da publicidade. O resto vem por e-mail, mal escrito e mal pensado, mas sempre com os melhores 'comprimentos'. Os telefones já só são usados para mecanismo de controlo. "Onde estás?". "Que estás a fazer?". Comunicar muito para não dizer nada. Por que já está tudo dito. Já todos sabemos o que vai ser dito a seguir e por isso é inútil ouvir a próxima frase. Só por estatística. Estamos todos convergentes para a média. A nova idade média. A idade dos média. Assim tenha tempo vou escrever uma tese sobre este assunto antes que o comentador absoluto Pereira o faça em meu lugar. Estudar é completamente inútil. Comprar livros de estudo também. Seguir o senso oficial é apenas esse enredar no conhecimento médio e sem desvio padrão. É um bom princípio que conduz a um fim médio. E nunca estivemos tão absolutamente confortáveis, nunca as nossas necessidades de consolo foram tão satisfeitas, nunca tivemos tanto pão e tanta manteiga. É certo que nem todos... Mas, digamos, aquela parte do mundo que interessa está bem e recomenda-se. Talvez devamos agradecer a Deus. (continua, se calhar)


Torcato Matos

domingo, julho 27, 2008

O Fim (parte 5)

Apesar da sua ambiguidade significante, o fim está sempre a acontecer. Diz-se, depois, como é que foi o fim, e fica na história quando há algo de notável na ocorrência. Confesso que sempre me causou alguma perplexidade o gosto de 'ficar na história'. Essa intenção de conferir à existência uma sobrevivência à morte da memória, não resiste a dez segundos de racionalidade nem a três segundos de emoção genuína. Por isso não consigo ver uma origem para esse desejo a não ser nas formas amorfas da patologia clínica. O que também não é de estranhar num universo humano que cultiva a doença como factor de desenvolvimento económico, de progresso e de selecção dos mais adaptáveis. Mas isto sou eu a desviar-me dos objectivos bem claros a que me propus ao escrever este epitáfio bloguístico. E por 'fim' entendo aqui o momento imediatamente antes de a forma antiga se dissipar. Tem sido difícil no correr destes dias assumir o fim como entidade clara e definitiva. Por que ao mesmo tempo que acaba uma coisa acabam também muitas outras coisas. E ainda que os níveis da ingenuidade sejam múltiplos, cada um que se quebra dá origem a uma angustiante surpresa sobre o mundo em que de facto vivemos. Parece que um fim chama outros, ou que, de repente, a temática do fim se instala e convoca todos os temas e lemas para uma discussão funerária sobre o ser e o ter, sobre a justiça e a indiferença, sobre a legalidade e a corrupção, sobre o medo e a ignorância, sobre a brutalidade e a compaixão. E já agora, sobre o amor e o despeito. O modelo de sucesso para a existência é, nestes nossos dias, a posse. Até aqui, neste exercício de semântica, não escapo de buscar algum entusiasmo na súbita posse de um local abandonado. Mas como todos sabemos, não são os locais abandonados que entusiasmam a posse: o que interessa a quem quer poder são os locais ocupados, levando a posse a ter o lugar e os que o habitam, numa escala hierárquica socialmente reconhecida e integrada. Para a posse ser efectiva e gratificante tem que trazer à mistura o sal humano, o sangue, a carne e o servilismo. De pouco adianta, nesta abordagem da existência, possuir o que não tem valor, e só tem valor o que é objecto de múltiplo desejo, de conflito, de inveja e de classificação. Um dos fins que descobri nos últimos tempos foi perceber que uma visão diferente desta, admitindo que existiu, já se finou. Globalmente a perspectiva da ganância é tão natural como a sua sede. Estranho é não querer. Estranho é não ambicionar saltos maiores e importância superior. É como se o registo genético que se foi acumulando por eliminação dos mais fracos, apurasse a raça inequívoca dos adoradores de ouro. No futuro deverá ser possível diagnosticar na primeira ecografia se o feto é ou não um potencial ambicioso. E, esse sim, será um factor consensual sobre o aborto terapêutico. Salvar o mundo de inadaptados é o grande desígnio dos próximos séculos. Claro que o ambicioso se quer ao mesmo tempo combativo, eficaz, eficiente e integrado. De nada serve um ambicioso que combata alarvemente o sistema, dando a entender que quer, não da forma que todos querem mas de uma forma diferente que ponha de parte a ambição consequente dos demais. Por que é sabido que a maior percentagem dos ambiciosos se terá de contentar com as migalhas dos ambiciosos maiores, ou mais bem sucedidos, ou mais bem colocados na grelha de partida. Há, portanto, ambição que chegue para todos mas não há recursos para tão grande distribuição. A escassez de recursos é, em si, um elemento reprodutor de ansiedade e, por consequência, o primeiro dos factores que isolaram no humano a necessidade de lutar por eles e usar de tácticas e estratégias para acumular para si o que puder tirar aos outros. Civilização seria, então, caminhar no sentido de recusar racionalmente a estratégia do confronto pré-histórico e, na posse do conhecimento, laborar para o equilíbrio da posse. Ah! Ah! Ah! Esta teve piada. Até eu me rio*. (continua... se calhar...)


* Na parte 4 referi que 'rio de flores' e algumas pessoas pensaram que me estava a referir ao novo treinador de um clube da primeira divisão. Acontece que não ligo nada a futebol e nem fazia ideia que havia flores a treinar. É pura e antiga alergia. Alergia pura.


Torcato Matos

quinta-feira, julho 10, 2008

O Fim (parte 4)

É meu desejo manter-me dentro da temática que interessa. Meu desejo e meu propósito. Talvez mais propósito que desejo. É que pode dar a impressão que esta dissertação não tem um projecto bem definido. E eu quero tudo menos dar impressões erradas que eventualmente levem a pensar em pensamentos desviantes. O tema, de um ponto de vista de profundidade, é a oportunidade - ou oportunismo - de nos equilibrarmos sobre os ombros de gigantes sem chegarmos a corar. Para todos os efeitos sou a favor. Mal seria se não fosse pois teria que renegar uma parte significativa da minha vida, eventualmente toda a parte significativa da minha vida. Mas não é este o lugar para apreciar esse pensamento e derivar dele as inúmeras consequências éticas e morais. Interessa, sim, não me afastar demasiado do que é importante. Quando nos propomos relatar ao mundo a verdade, só a verdade e nada mais do que a verdade, devemos analisar com muito cuidado toda a informação que passamos. Há quem diga que 'a verdade é só uma' o que faz dela uma espécie de cúmulo da raridade. Por muito que digamos que não há dois objectos iguais ou que dois grãos de areia nunca são iguais ou o que quer que seja do mesmo género, sabemos que para efeitos de classificação apenas olhamos para as características mais relevantes, deixando os pós e as teias de aranha para uma segunda oportunidade de classificação mais fina. É portanto, e aqui está um objectivo mais profundo, uma questão de 'zoom': olhamos de acordo com a lente que usamos. A mim basta-me uma verdade rudimentar, tipo pronto-a-vestir, eventualmente de marca branca sem nada de muito elaborado. Pessoas mais exigentes chegam a querer uma verdade com certificado ISO 9001, ou mesmo uma homologação por instituto credenciado. Não tenhamos ilusões: a maioria das verdades são fabricadas na China por jovens que trabalham 16 horas por dia sem direito a folga e que ficam muito felizes com o nível de vida que assim conseguem. Nenhum consumidor de verdade precisa, portanto, de sentir qualquer espécie de culpa, uma vez que está a contribuir largamente para o aumento da felicidade de uma significativa fracção da humanidade. São gestos destes que fazem do humanismo ocidental o mais ético e o mais bem sucedido da história: levamos a felicidade aos confins do universo. Reparem bem na potência ética de ser accionista de um poço de petróleo no Dubai. Sem sair da minha segura poltrona aqui na minha casa na zona de paisagem protegida da Serra de Sintra, escorre-me dinheiro para o bolso cada vez que um carregamento de nafta nauseabunda chega a uma fábrica de verdade nos arredores de Xangai, para fazer mover motores que ocupam e alegram centenas de jovens promissores de olhos em bico. Babo-me de vaidade desta imparável globalização que muito orgulhosamente iniciámos há mais de quinhentos anos. Mas isto sou eu a tentar dizer alguma coisa mais profunda que ainda não se revelou. Até deverá haver quem se ria do assunto. É esse um dos grande prazeres da humanidade e do humor, duas entidades criadas por Deus no mesmo dia. Por mim rio de flores. Isso mesmo. Pode ser do pólen. Uma reacção alérgica que me faz rir na presença de flores. Rio de flores, portanto. Embora se trate de uma vitória por falta de comparência, está a agradar-me a exclusividade que estou a ter por aqui. Dá um certo ar de propriedade. Um ar de posse. Uma parte significativa da felicidade passa pela posse. Seja lá do que for. Nem é muito condenável que me satisfaça com a posse de um blógue abandonado. O melhor é mesmo viver o dia que amanhã já a história será diferente.


Torcato Matos

domingo, julho 06, 2008

Pérolas (L)

Uma pérola de moral e bons costumes.

O Fim (parte 3)

É bom que não nos afastemos dos objectivos. Ficaria muito bem acabar isto com uma sessão solene de encerramento. A prática de anos leva-nos a acreditar que nada se acaba realmente sem um boa sessão de encerramento. O próprio nome parece mágico. Uma sessão de encerramento inclui sempre uma ceia, discursos, prendas aos melhores, aplausos para os piores, que também deram o seu melhor, brindes ao futuro e lágrimas. Difícil mesmo é dar por concluída a sessão de encerramento, esse momento mágico em que já não se pode voltar atrás. Tudo porque o tema do fim é inesgotável. Ao que parece a culpa é de Lavoisier, um francês que conseguia fazer ciência com um penteado absolutamente desconfortável. Mas tudo indica que foi o abuso de cabeleiras que o levou a descobrir que afinal nada se perdia e nada se criava. Depois disso o mundo nunca mais foi o mesmo. Também eu nunca mais fui o mesmo depois de ter sabido dessa descoberta do Lavoisier: os princípios de conservação dão cabo de quaisquer veleidades que tenhamos de ser criativos ou iconoclastas. É por isso que a maior parte das pessoas inventivas e/ou destrutivas se recusa terminantemente* a ter princípios. E os princípios não são uma coisa que tenha o menor interesse quando estamos no território simbólico do fim. Um humorista e um académico dizem exactamente o mesmo. A diferença está na pose. O humorista diz as coisas com ar sério para que a plateia se ria; o académico ri-se das próprias palavras para que a plateia se comova. Mergulhamos nos contrastes para dar a impressão que há acontecimentos. Porque a morte, o fim, é esse lugar onde não há acontecimentos, ocorrências que se distingam umas das outras. A maior parte das vezes a morte faz-se por classificação sucessiva. Definem-se cavidades para todos os objectos e a arrumação infinita de todas as coisas proporciona a ordem absoluta, a impossibilidade para a surpresa, logo a morte. Como é um trabalho complicado e demorado, morre-se antes, e a confusão classificativa vai permanecendo como possibilidade de vida eterna. O sol, por exemplo, esgotar-se-á quando se tiver transformado completamente em hélio: não quero estar cá para ver. Tirando isso, estou bem. De um ponto de vista meramente factual - e sabemos como os factos raramente são factos - o fim acontece depois de todos os outros acontecimentos. Parece evidente mas não é, embora este não seja o local para demonstrar porquê. Lembro-me das aulas de matemática em que se referia o professor fulano de tal - não me lembro mesmo, senão diria o nome - como alguém que na sua exposição da matéria nunca deixava um teorema por demonstrar. Não me parece que esse seja o melhor modelo de passar a informação. Presume que o conhecimento é uma forma linear de construção, como quem diz que sobre este conceito que já conheço vou construir outro conceito e assim sucessivamente. Voltamos atrás, ao indemonstrável, e vemos como esta é a estrutura da morte: a hiper-classificação. Por isso me recuso a que todo o futuro se demonstre no passado: há sempre algum passado que se demonstrará no futuro. Temos de ter em conta que o futuro conta tão pouco como o passado para o que conta no presente. Às vezes, para parecer bem, inventam-se teorias que propõem relações de causa-efeito entre o zero e o infinito. Trata-se de puro entretenimento. A maioria das profissões são isso mesmo: entretenimento. O objectivo prioritário de um governo não é, nem pode ser, ter cidadãos felizes mas sim manter os cidadãos ocupados. Nem que seja a procurar ocupação. A contemplação não é bem aceite pelas populações que, em geral, consideram um olhar perdido no vazio a exibição mais acabada da preguiça. O facto é que as pessoas que fazem trabalho realmente necessário são muito poucas. De um ponto de vista objectivo a maioria das profissões são puras ocupações de tempos livres. É que se todos produzíssemos coisas úteis enquanto trabalhamos, em pouco tempo elas se tornariam inúteis pelo excesso. Suponho que esta última frase justifica este texto.


* A recusa parecia ser uma coisa que tinha a ver com dizer não. E 'não' teria a ver com o contrário de 'sim'. Assim sendo, alguém que recuse é alguém que diz 'não' e que não faz ou não aceita aquilo que lhe é pedido ou lhe é dado. Ora, o uso recorrente da 'recusa terminante' parece mostrar que uma recusa que não seja terminante é uma recusazinha de fraca qualidade e que em pouco tempo se tornará numa aceitação. Como eu não quero que subsistam dúvidas sobre a qualidade desta recusa, acrescento o inevitável terminantemente para que não haja dúvidas.


Torcato Matos

sexta-feira, julho 04, 2008

O Fim (parte 2)

Hoje fui a Lisboa. Uma reunião de trabalho. Andei uns minutos pela cidade morta e tive uma sensação estrangeira. Como se já não fizesse parte desta terra. É curioso como em tão poucos meses houve tantos afectos que morreram. Uma hecatombe. Uma guerra do Iraque. Primeiro os mais fracos, depois os mais fortes (ou o contrário) nada sobrevive. A simplicidade específica da morte. Passo na banca dos jornais e não reconheço aquelas letras gordas, nem percebo as notícias, nem as quantidades desumanas de tralha que os ardinas são obrigados a vender em vez de jornais e revistas. Já me aconteceu estar noutro estrangeiro com menos estranheza. Apetecia-me dizer que Lisboa era agora diferente por se ter tornado igual. Mas o problema sou eu: saí para fora cá dentro e já não consigo voltar. Tem o seu quê de bom: há a hipótese de me surpreender com alguma novidade. A única coisa que interessa, em Lisboa ou em qualquer lado, é o progresso do caos. A desagregação da informação em forma de ilegibilidade de maneira a que ninguém possa referir caminhos que desconhece. Por mim, caio por falta de sentido prático. Não me interessa a ordem a não ser como antecedente do desastre; alinhar antes de destroçar. Como na vida, como nos afectos, como no amor e nos negócios, em que a cada vitória correspondem inúmeras derrotas. E tudo isto para nada que é o que o instante significa no desalinhamento dos desejos. Já não me importa o que possa ser uma dor desconhecida. Todo o homem tem esse mérito inegável de servir avidamente o sofrimento como refeição de luxo. É uma questão prática que se dilui no vazio descritível da indiferença*. De repente, sem que nada o previsse, vejo-me contestatário. Uma luta de classe. Eu contra o mundo inteiro, desligado de todos os agrupamentos de felicidade programada. O indivíduo, sendo indivíduo, aproxima, com o seu gesto desordenado, o universo do caos. Sozinho, o indivíduo - e o indivíduo tem que começar por ser sozinho - é um gerador automático de caos, de desordem, e, paradoxalmente, de complexidade. Parece que se mudaram para Nova York todos os génios do mundo. É de lá que vêm as ideias primas acerca do universo e da moda, dos pesadelos de elite e das ideias que devem ser as ideias de cada tempo. Assusta-me saber que todos os dias são publicadas milhares de novas ideias novas que ficam a lutar umas com as outras, mergulhadas no ruído infernal dos estádios, à espera de atenção, de aplauso e de inveja. O único pecado que me lembro ter alguma vez cometido foi ter lido durante anos a revista do expresso editada pelo VJS. Raramente percebia o que lá vinha escrito - mesmo quando explicavam - mas considerava que aquela penitência, como é próprio das penitências, haveria de dar frutos. Quando morrer hei-de dizer a Deus que se tratava de pura solidariedade auditiva - também eu ouço mal - e talvez ele me poupe a uma pena muito severa. Até porque depois passei a ler o público, que não era bem um jornal diário mas um semanário distribuído em sete fascículos - não havia saco plástico em que aquilo coubesse tudo de uma vez -, reincidindo num pecado grave. Aqui apenas me posso defender com o gosto pelo Calvin e Hobbes. Malditos jornais que nos querem fazer crer que somos elementos pertencentes a uma sociedade activa e preocupada. Preocupada sim, activa não. Uma sociedade activa não consegue ler jornais que falem mais do que umas linhas sobre o último grande assassínio ou sobre a última incompetência do governo. E como se pode ver por este texto, tal como nos jornais, é fácil encher uma série de linhas com tretas. (continua... se calhar...)


* Esta frase dava um óptimo título para um livro do José Gil. Ou de outro qualquer autor de formação francófona. É fantástico como se podem alinhar uma série de palavras sem obter o mínimo de sentido. Chama-se a isto estilo fechado. Se alguém conseguir perceber o que a frase quer dizer ofereço-lhe um livro da Laurinda Alves à escolha desde que seja o Xis. Eu, que escrevi a frase há dois dias, não consigo lá chegar.

Torcato Matos

domingo, junho 29, 2008

O Fim (parte 1)

Está aí alguém? Não sei se já repararam mas este blogue acabou. Finou-se. É um bocado pretensioso dizê-lo, mas não mais pretensioso do que escrever num blogue. E é tanto mais pretensioso quando em vez de acabar simplesmente, dizendo adeus ou dizendo nada, se aventura numa prosa de meta-linguagem para demonstrar a ilegibilidade do pretensiosismo. É assim que as coisas acabam. Começam no princípio e acabam no fim. O que se passa no entretanto é pouco relevante. Mesmo para uma ilustre figura há-de dizer-se que viveu entre tantos do tantos de mil novecentos e tal e morreu a tantos do tantos de dois mil e tal. O início e o fim rigorosamente marcados, o nascimento e o ocaso. Do ponto de vista moral é um fracasso: uma vida reduzida a duas datas. E um nome. Jogando na improbabilidade de dois nomes iguais nascerem e morrerem em datas iguais. Porque à hora da morte já pouco interessa o nome do pai e o nome da mãe, factores que potenciam uma identificação mais rigorosa antes de chegar o fim. Suponho que a tudo isto pode dar-se o nome de irrelevância, mas não ponho as mão no fogo pela questão. Embora me doa. Claro que dói a irrelevância. Viver é, em última análise, procurar relevância. Mesmo quando não parece. Mesmo na precaridade de um blogue pretensiosamente despretensioso. E a relevância é dada, como nos artigos científicos, pelo número de citações. Se somos citados existimos, se não, somos pura ilusão. E a ilusão, quando reconhecida, não é relevante. Daí me ter surgido esta ideia de irrelevância solidamente construída. Um jogo de forças entre a popularidade entre pares e a pura inexistência. Eu até podia dizer que este discurso não faz sentido mas temos de tirar partido de por momentos sermos uma espécie de donos de um local abandonado. Deriva continental; discurso sobre a falta de discurso; pregar aos peixes. Temos os nosso modelos, comprados nas lojas de conveniência, para aplicar nas situações que os merecem. E aqui, aproveitando o espaço deixado vago pelos ausentes, hei-de dizer da minha justiça sobre a falta de justiça que a justiça tem. Em tempos admiti que era possível a perfeição. Claro que foram tempos difíceis. É sempre difícil admitir seja o que for quando se tem tudo contra e não se tem ao mesmo tempo a cegueira necessária para não ver as evidências. Só muito mais tarde percebi que a perfeição existe mesmo e me tornei capaz de pôr as mãos no fogo por ela. E nem se pode dizer que tenha sido tarde de mais. Há sempre um bocadinho de tempo a tempo de nos agradar. O principal de uma vida é saber vivê-la em segredo. Quando a vida precisa de ser badalada é já outra coisa, ciosa de outros valores, preocupada com as lantejoulas e os brocados e muito dependente das condições ambientais. Não fora essa tal ocultação do particular, essa potência a contrariar a fúria do geral, e já este nosso pequeno mundo estaria reduzido a cinzas. Sim, sim, muito mais do que está. Pregar no deserto é, afinal, o prazer máximo de um humano. Podemos dizer as maiores barbaridades sem que ninguém se sinta ofendido. Podemos dizer as coisas mais belas sem o perigo de um elogio. Podemos até cantar sem o risco de nos convidarem para um programa de rádio. O deserto é o local certo para viver. Mas isto sou eu a falar, entre a pura decadência mental e o desejo natural de sobreviver à tragédia dos dias. Confesso que gostava de não ser egoísta. Nem que fosse um bocadinho, um pequena ocasião qualquer em que me sentisse bem a dar uma coisa que me fizesse falta. Acredito que um dia acontecerá. Pode acontecer, mais não seja por uma questão de probabilidade. Digamos que estou nessa expectativa feliz. Um dia em que, por momentos, a minha preocupação principal não seja eu. Um dia em que, por momentos, me distinga dos meus queridos semelhantes. É que esta coisa de dar tem as suas subtilezas. Imaginando por momentos que o tal Deus existia mesmo, e andava por aí a medir a generosidade das pessoas, e ainda por cima usava isso como classificador de almas, os resultados iam ser muito piores do que os das provas de matemática. Lembro-me sempre da generosidade dos portugueses a descarregarem o lixo que tinham no sótão para doar aos pobres africanos ou timorenses. Lindo. Uma das coisas mais trágicas da humanidade é haver pessoas tão pouco inteligentes que nem são suficientemente inteligentes para perceberem quão pouco inteligentes são. Outra é as pessoas serem tão pouco generosas que não têm a generosidade suficiente para perceber quão pouco generosas são. É fácil perceber que existe uma ligação mais do que ténue entre inteligência e generosidade. (continua... se calhar...)

Torcato Matos

domingo, junho 22, 2008

Pérolas (IL)

Novos contos politicamente correctos.

terça-feira, junho 17, 2008

Pérolas (XLVIII)

A fragilidade escreve-se assim.

segunda-feira, maio 26, 2008

Semântica

Postar um poste que não seja um queixume que se queixe disto e daquilo e do que não tendo acontecido se perdeu na possibilidade impossível, é postar um poste vestido da cínica tradição de não contar contos que contem.

Falamos por falar mas antes de falarmos queremos dizer como é que queríamos que as coisas fossem se fossem como nós queríamos.

O círculo é o único lugar habitável. Ir e vir, e voltar ao lugar onde se voltou uma e outra vez e encontrar diferenças diferentes das diferenças que antes havia, e nas semelhanças diagnosticar paragens do tempo ou verdades universais, coisas iguais a tantas outras que já tínhamos visto e revisto vezes sem conta, e voltando ao princípio pensar no círculo como o lugar onde algures se encontra o centro, esse sim, lugar perfeito de voz activa que não se dispersa em contradições nem revoluções nem outras omissões. Ir e voltar e voltar a ir e não ver que o que já se viu é sempre o mesmo mas mesmo assim acreditar que há diferenças entre as coisas e aquelas que são mais iguais que as diferenças que não se encontram. Tudo no centro de um círculo fechado à estranheza de saber disto e daquilo e não dar sentido à seta do tempo nem ao tempo consentido.

O medo, a existir, está na fronteira ou, de melhor forma ainda, é fronteira o lugar onde está o medo. Num círculo o medo chama-se circunferência e está sempre à volta equidistante do centro de gravidade ou da gravidade do centro. E nada mete mais medo do que o medo. E sendo um circunferência um medo específico de um centro que nunca mede as distâncias, é no círculo obrigatoriamente fechado que ressoa todos os dias o eco de gritos que pairam no ar oculto da geometria variável.

Sair de dentro e entrar para fora, rodar sobre um eixo de desvio infinito, voar rente à superfície de um planeta morto de tédio ou de vergonha ou de ambas as coisas sopradas pela deusa da verdade. Voltar e ir, regressar ao passado sem presentes para oferecer à falibilidade dos adivinhos, e os ouvidos sempre atentos às cantigas de amigos que entretanto se ausentaram para parte incerta. Não vale a pena ter pena de não ter pena. Mesmo que se tenha pena de ter pena de coisas que não valem a pena. É tudo um jogo de alfabeto que não sabe cantar nem encantar as estrelas cadentes de dentes afiados por orgulho pátrio. O círculo fecha-se sobre um erro semântico. E o erro está sempre no lado de lá, no desvio consentido pela desatenção de um instante em que o amor-próprio foi mais rápido que a própria sombra do guerreiro.

Associação de ideias, associação de ideais, associação de idiomas, grémio planetário, ONG de génios, ONG de governantes desgovernados. Não adianta queixar-nos dos que podem porque o poder é estar imune aos queixumes. É na margem, na circunferência de medo que acontecem as coisas, os factos irrelevantes que se fazem mundo, outro mundo, outro sabor, outro caso perdido por cem e por mil e uma noites. Em tempos encontrava-se a salvação na literatura, na inércia própria de um livro que parecia dizer a verdade de uma maneira suficientemente baça para parecer um segredo. Coisas que se diziam boca a boca, beijo a beijo, mão a mão, cara a cara. E não foi assim há tanto tempo. Mas de nada valem essas coisas que se esquecem e perdem sentido com o passar dos dias e das noites, da força e do peso, da arma e do sono, da lama e do vento. No fim de cada pensamento está sempre outro inquieto de esperanças, disfarçadas de certezas, ocultas de espanto, moldado no desejo, dorido de espera, barrada pela culpa, formada no berço, embalado pela mão, fechada de força, armada de sonho, pensado na claridade do dia.

quarta-feira, abril 30, 2008

Postvinteeum

Quando nos despedimos pela primeira vez, naquela calma própria que antecede os cataclismos, disse-te, naquele retardamento que me é próprio quando os acontecimentos me transcendem, que sim, que pois claro, que tudo bem. De facto, para que servem os afectos, mesmo aqueles que parecem transcritos de uma certa mitologia, senão para se dissolverem no tempo e sofrerem o remate travesso do esquecimento? Não havia nada a objectar naquele momento relativista em que as razões da liberdade se sobrepunham, de uma maneira clara, a quaisquer veleidades de escrúpulo ou memória. O corpo é mesmo assim: mesmo que nade com esforço nada pode fazer contra a intensidade fundamental da maré. Em todos os aspectos do corpo.


Quando nos despedimos pela primeira vez, num lugar que entretanto esqueci por se sobrepor a outros lugares onde nos voltámos a despedir outras vezes, não fui capaz de perceber, naquele momento relativista, como de um corpo que se havia perdido do meu, o meu corpo não cederia assim tão facilmente, mesmo que naquele instante relativista, a minha inércia própria se tivesse enregelado de impossibilidade. De facto, para que serve um corpo, mesmo um corpo que se perdeu do seu próprio sentido, senão para aquecer um momento e depois se arrefecer para sempre? Nada havia nos sinais mudos do corpo inerte que não desse a entender que sim, que pois claro, que tudo bem.


Quando nos despedimos pela primeira vez, numa data que ficou submersa de outras recordações mais fortes, pensei, naquela maneira obscura que tenho, de acreditar que tudo pode ser pensado e divinamente submetido à razão, que o que tinha de acontecer tinha acontecido, não como estava escrito nos livros ou no destino, mas como estava descrito na desordem natural das coisas. De facto, que podemos nós hoje querer mais do que uns minutos de harmonia antes de algum fogo de artifício que faça morrer o tédio? O que procuramos no outro é consolo e vibração, intensidade e devaneio, confronto, movimento e tempo. E cada passo que se dá tem que ter essa formalidade fractal, essa redundância de uma surpresa que surpreende por ser a surpresa de que se está à espera.


A sorte é que nunca se sabe tudo. Cada dia vai acrescentado novos dados e esquecendo outros. Ambos igualmente certos e verdadeiros. Uma cadeia de certezas que se vai ligando ao desconforto de outras. Cada dia vai mostrando como ontem estávamos errados e hoje não. Uma roda que corre substituindo umas verdades por outras, uns sorrisos por outros, uns abraços por outros, uns medos por outros. Tudo muito vagamente no estreito intervalo entre a verdade e a ficção. Tudo muito ligado a este estranho mundo que estando obcecado com o medo de nada ser permanente, acaba por divinizar a mudança, como os antigos que ofereciam às divindades tirânicas o que de melhor tinham, por terem medo de as ignorar.


Aibieme

quinta-feira, abril 24, 2008

Rumores (1)

Ele lançou a bomba!

sábado, abril 19, 2008

O meu pé de laranja lima

Mesmo que não mate, a doença vem de repente e apossa-se da nossa vontade. Eu tinha dito que não voltava a cair. Eu tinha repetido para mim próprio que não queria voltar a ficar assim dependente de drogas duras, de venenos poderosos, que não sabemos se nos curam ou nos destroem. Tinha sido uma decisão pensada em dor, depois de ter caído uma segunda vez nessa mesma impossibilidade. O que eu escrevi, em páginas e em tempo, a justificar elevadamente essa decisão que, num certo sentido, equivalia a uma morte antecipada! Quanta frase solta, desligada de sentimento, deixei cair no saco roto das boas razões! Razões pensadas dessa maneira pragmática que diz ser melhor morrer do que sofrer.

Mas tem que se lhe tirar o chapéu. É mestre em estratégia. Vem de lugares inesperados. Inesperados em todos os aspectos. Nem nos meus mais arbitrários pensamentos me teria lembrado de defender aquilo que, a ter um equivalente, seria o buraco de minhoca que liga e aproxima lugares do universo a inconcebíveis distâncias canónicas. Não, nunca me teria defendido de coisas que nem acredito. Meras teorias, pura matemática. Tirava-lhe o chapéu, se o usasse. E vergo-me à ironia. Eu, encostado à teoria da relatividade, sondando nas insónias os paradoxos da mecânica quântica, jogando aos dados com o prazer da bondade do caos, fui apanhado na dobra da esquina de uma humanidade sem uma pinga de sofisticação cínica.

É brutal imaginar que depois de Hugo, Proust, Joyce e Mann ou de Beckett, Bellow, Bernhard e Borges ou mesmo de Musil, Vila-Matas, Walser e Yourcenar, pudéssemos, ainda humanos, estar sujeitos à casual diletância dos humores. Tínhamos tudo para ser hoje marinheiros seguros mesmo no mais encrespado dos mares. Atrás de nós foi assegurada em celebrada glória, a transição digna de assustados e miseráveis a orgulhosos e prudentes. Estamos, talvez desde Newton, sobre os ombros de gigantes. Como é então possível que olhos que viam deixem de ver?

Se eu fosse capaz de perder este orgulho mínimo garantido, talvez aceitasse que afinal ainda há coisas capazes de surpreender. Talvez fosse capaz de reconhecer que pelos caminhos mais exóticos podem chegar ilusões de calibre exagerado. Talvez até chegasse a acreditar que os afectos são mais do que moléculas em súbita e implausível concentração. Mas o tempo fez de mim este pedaço de cérebro entranhado de maneirismos, sempre atento às bolorentas relações de causa-efeito, e insatisfeito apenas quando a função matemática não se ajusta claramente ao objecto animado.

Não me bastava já a prosaica relação de amor-ódio com o acaso, sempre disposto a ironizar sobre o meu destino, fazendo-me ter do jogo o suave uso regular, para, nas derrotas sucessivas, acumular um crédito capaz de um dia me fazer proverbial justiça. Porque é verdade que não são notas que eu quero, e a música tem sido o meu salário de fome. O que esperava era um prémio de paciência, de consolação ou, eventualmente, de mérito estatístico.

E quando dou por mim, vejo nas mãos vazias um tremor repetido. Voltou como o ladrão ao local do crime onde alegremente se serviu. Desta vez encontrou-me com defesas que eu julgava intransponíveis. E derrubou em três tempos a minha perspicácia. Liquidou a minha intransigência e fez de mim um amável espantalho, disposto a vender a alma por um fio de luz.


Ivo Cação

sexta-feira, abril 18, 2008

Pérolas (XLVII)

Cá por casa estávamos preocupados com a redução de magia no mundo. Mas entretanto surgiu o Pirum e uma nova fonte de pérolas.

sexta-feira, março 28, 2008

Postvinte

Como vês não acontecem muitas coisas na nossa ausência. Os estados de ser ou de não-ser anulam-se, e tudo é varrido no mesmo efeito de memória apagada. O facto é que, depois de termos estado num lugar, já não somos os mesmos. Mesmo que, pelo artificio raivoso do esquecimento, não saibamos porquê. Só confrontados com a crença e com insólitos testemunhos podemos ousar discutir o efeito pragmático do tempo.


Se eu acreditasse em qualquer coisa, mesmo que fosse em paradoxos, poderia distrair-me a encontrar correlações difusas entre causas e efeitos, ou entre razões e emoções, ou mesmo entre factos e desejos. Mas sei - fiquei entretanto a saber - que o que quer que procuremos só terá valor se o não encontrarmos.


Acordar todos os dias com o vazio a enrolar as mãos, acaba por tornar muito importantes pequenos sinais que se insinuam no tremelicar das pálpebras.


Há navios que se movem no propósito de chegar a lugares comuns. Há outros que percebem no caminho os bons ventos e avistam na distância o sucesso da empresa. Mas também há os que andam à deriva, sabendo ou não de existirem portos seguros, sempre ignorantes do vigoroso manejo do leme.


No essencial há um momento em que se percebe que a justiça é uma construção. Frágil e retorcido programa de actividades, muito palavroso, muito livresco, muito retórico. No essencial há um momento em que se percebe que a justiça é uma coisa que nunca é como deveria ser: é uma ideia muito cerimoniosa e volúvel. Ainda assim melhor que nenhuma. Uma deriva entre continentes que não se querem perder.


É sempre esse o problema: perder. Nenhum gesto é feito sem que se contabilizem as perdas e ganhos. Mais que tudo as perdas. E quando assim não é criam-se lugares fechados para os esconder. É por isso que a justiça e a verdade - e outras que tais - são ainda e sempre vestígios dourados de uma fundamental lei da selva.


Não acontece mesmo nada na nossa ausência. Passam as mesmas pessoas pelos mesmos caminhos com as mesmas expressões de amarelada contingência, vogando nos cérebros intenções vorazes. O alimento é dos que não perdem. Dos que contam os grãos que se podem arrecadar até à morte e, se possível, derivar pela corrente sanguínea das gerações.


Nem tudo será assim hermético. Nesta quase-escolha que se faz de como ir, aparecem por vezes ilusões a perturbar-nos a probabilidade. Suponho que, como o pássaro que bica nervoso a inesperada semente, a única saída é entrar no jogo e, se for caso disso, morrer nele, asfixiado em drama. Uma roleta russa que tem como única moral o acaso. Justa, portanto.


Aibieme

segunda-feira, março 24, 2008

Forma


"Eu tinha uma fazenda em África...". É esta a primeira frase de uma narrativa que este filme (África Minha) conta com a inteligência de saber mostrar que a primeira frase de uma história é sempre e irrecuperavelmente última de outra coisa.

(Eduardo Prado Coelho)


As coisas acabam sempre antes de nos apercebermos.
Na continuidade dos gestos não damos conta da discreta evaporação dos objectos.
O risco sistemático da inércia prolonga os movimentos que já se esgotaram na fronteira.
E, à frente de um rosto imóvel, as imagens perdem o sentido e a direcção.


O nadador dá as últimas braçadas já sobre a margem segura.
Agora imóvel, o cavalo ainda rasga o espaço em potência.
À janela, o passageiro vê na paisagem baça um esforço de persuasão.
No quadro, pintado a cores nuas, é descrito um futuro.
E, no chão do pátio, ainda goteja a tempestade de ontem.


Todo o movimento me recomenda um destino.
E dele chovem palavras de incitamento à desordem.
A quadrícula encarcera o desenho alinhado de certezas.
Parecem elas querer dizer outra coisa que já não sabem por esquecimento.


Não há meio termo.
Mesmo que seja lá que se passe todo o tempo.
Entre o regular bater de um coração e a fria redundância da neve.
Espaço vazio, mesmo de faltas e de lacunas.


Passa-se o tempo na ausência.
A corroer esperanças, pedaços de lenha e lágrimas.
Peças soltas de uma cabeça quebrada por ambições inverosímeis
Em dois curtos passos o salto: do universal à singularidade.


Em todos os lugares são deixados vestígios de sangue.
Marcas que se organizam para deslocar a razão.
Entre a desistência e a revolta.
Elas próprias ávidas de vestígios de sangue.
Tal como antes, matar para não morrer.


As coisas começam sempre antes de nos apercebermos.
Seja por acaso ou por destino, o resultado é o mesmo.


Sísifo

segunda-feira, março 03, 2008

Rasto

Cada vez mais as palavras se escrevem de silêncio.
A história não deixa de ser a minha história e é contada com tempo como se ainda houvesse tempo.
Pouco importa o pouco que sabemos sobre o que é o saber.
Apenas contam os passos que se contam enquanto se dobram as esquinas que escondem os lados adjacentes.
Passos que dou à procura da palavra que ainda falta para preencher o enigma.
Jogo que se faz ao entardecer com os restos mortais de um dia mais.


Cada vez mais as palavras se dizem por gestos.
Foge de nós o momento que estávamos à espera.
Foge de mim o lume que antes tinha iluminado os dedos pálidos.
Mas não são bem fugas.
São aproximações a outros lados que já têm consigo a sombra e a matéria condensada.
Supõe-se, segundo os antigos, haver um lugar onde as vozes aproximam o belo.
E, a ser verdade, vale a pena o voo sobre lugares de tais promessas.


Cada vez mais as palavras se escondem.
Os lugares chamam-se agora por números inteiros.
Calculam-se com luzes nervosas a cintilar de precisão.
Cada momento é um excesso insuportável à espera do seguinte.
Não sou capaz de descer essa rua inclinada.
A palidez do projecto dá-me náuseas, e não encontro no caminho a alternativa à distância.
Pergunto às sombras que tempo falta para o próximo comboio.
O tal que nos vai levar para o lugar anunciado.
Dizem-me silêncio.


Cada vez mais as palavras morrem.
A figura ausente acende em brasa o último cigarro.
Uma palavra pode ser bela mesmo que não seja o que diz.
A ausência tem peso e simetria, baila à beira do abismo com vontade de partir.
Não é com gestos bruscos que empurro o tempo.
Cada segundo no seu lugar.
Pela última vez. Irrepetível.
Para onde vai o tempo que por aqui passa?
Que pressa o leva daqui tão rudemente?
Que sábio encanto o move com tanta decisão?


Cada vez mais as palavras se esgotam de tédio.
Descuidou-se a certeza de conhecer o futuro.
Pairou sobre o medo a astúcia banal da alegria.
Caiu a águia no chão da rua iluminada.
Às vezes basta uma letra para que tudo seja diferente.
Ou a pontuação que não pontua.
Um simples som digitado com lenta ternura e o tempo cala-se de espanto.
Vago bater de asas de um viajante eterno que passa pela arquitectura da matéria sem deixar rasto.
Menos a memória que fica pousada no ramo alto de um sobreiro.


(corrente)

Sísifo


quinta-feira, fevereiro 14, 2008

Spam

Na falta de assunto fala-se do tempo.

Na falta de tempo fala-se de pressa.

Na falta de pressa fala-se de vagar.

Na falta de vagar fala-se de ocupação.

Na falta de ocupação fala-se de emprego.

Na falta de emprego fala-se de trabalho.

Na falta de trabalho fala-se de fome.

Na falta de fome fala-se de apetite.

Na falta de apetite fala-se de comida.

Na falta de comida fala-se de governo.

Na falta de governo fala-se de selva.

Na falta de selva fala-se de jardim.

Na falta de jardim fala-se de betão.

Na falta de betão fala-se de economia.

Na falta de economia fala-se de desperdício.

Na falta de desperdício fala-se de poupança.

Na falta de poupança fala-se de empréstimos.

Na falta de empréstimos fala-se de bancos.

Na falta de bancos fala-se de cansaço.

Na falta de cansaço fala-se de energia.

Na falta de energia fala-se de petróleo.

Na falta de petróleo fala-se do álcool.

Na falta de álcool fala-se de sobriedade.

Na falta de sobriedade fala-se de política.

Na falta de política fala-se de religião.

Na falta de religião fala-se de futebol.

Na falta de futebol fala-se de fado.

Na falta de fado fala-se de sexo.

Na falta de sexo fala-se de vinho.

Na falta de vinho fala-se de sangue.

Na falta de sangue fala-se de saúde.

Na falta de saúde fala-se de Deus.

Na falta de Deus fala-se de razão.

Na falta de razão fala-se de emoção.

Na falta de emoção fala-se de gelo.

Na falta de gelo fala-se de calor.

Na falta de calor fala-se de afecto.

Na falta de afecto fala-se de amigos.

Na falta de amigos fala-se de influências.

Na falta de influências fala-se de democracia.

Na falta de democracia fala-se de igualdade.

Na falta de igualdade fala-se de dinheiro.

Na falta de dinheiro fala-se de lucros.

Na falta de lucros fala-se de guerra.

Na falta de guerra fala-se de paz.

Na falta de paz fala-se de pressão.

Na falta de pressão fala-se de leveza.

Na falta de leveza fala-se de peso.

Na falta de peso fala-se de gravidade.

Na falta de gravidade fala-se de simplicidade.

Na falta de simplicidade fala-se de grandeza.

Na falta de grandeza fala-se de rastos.

Na falta de rastos fala-se da suspeita.

Na falta de suspeita fala-se de hipóteses.

Na falta de hipóteses fala-se de certeza.

Na falta de certeza fala-se de dúvida.

Na falta de dúvida fala-se de crença.

Na falta de crença fala-se de acaso.

Na falta de acaso fala-se de determinismo.

Na falta de determinismo fala-se de probabilidade.

Na falta de probabilidade fala-se de possibilidade.

Na falta de possibilidade fala-se de sonhos.

Na falta de sonhos fala-se de sono.

Na falta de sono fala-se de amor.

Na falta de amor fala-se de solidão.

Na falta de solidão fala-se de confusão.

Na falta de confusão fala-se de ordem.

Na falta de ordem fala-se de decisão.

Na falta de decisão fala-se de hesitação.

Na falta de hesitação fala-se de intuição.

Na falta de intuição fala-se de sorte.

Na falta de sorte fala-se de jogo.

Na falta de jogo fala-se de penalidade.

Na falta de penalidade fala-se da justiça.

Na falta de justiça fala-se de poder.

Na falta de poder fala-se de segurança.

Na falta de segurança fala-se de medo.

Na falta de medo fala-se de coragem.

Na falta de coragem fala-se de inércia.

Na falta de inércia fala-se de liberdade.

Na falta de liberdade fala-se de censura.

Na falta de censura fala-se de tudo.


Prólogo

quinta-feira, janeiro 24, 2008

Pérolas (XLVI)

Todos os dias é difícil resistir a pôr aqui links para este blog.

sexta-feira, janeiro 11, 2008

Pérolas (XLV)

Há que não perder tempo. A padeira já está a tratar do marketing...

terça-feira, janeiro 08, 2008

Foice

Pode sempre perder-se mais um minuto quando já se perdeu uma vida. Alinhava-se mais um pensamento à margem da verificabilidade. Emoção, portanto.


Para cada passo um registo diferente. Uma ideia de vida interior, como se se pudessem compartimentar as divisórias amovíveis da viva. Talvez apenas me interessem as imagens vagamente invisíveis. Como aos gatos. Movimentos interiores. Os tais de que me fala a nathalie sarrault.


O mundo integra todos os modelos. Digere-os e transforma-os, primeiro em excrementos, depois em flores. Ou o contrário. Para o caso tanto faz. O que interessa, embora não tenha interesse a não ser para o próprio, é o movimento interior. E aí tenho alguns pontos de vantagem. Acumulados num cartão.


O luiz pacheco morreu. Nenhuma alma terá paz no céu. É inegável que ele terá ido para lá desinquietar as almas penadas, finalmente livre de um corpo pesado e exigente, embrulhado numa bandeira vermelha. Mas não se pode curar o mal que está feito, por que ele se reproduz por si próprio. Bactéria que come a bactéria que mata a bactéria que pisa a bactéria que cospe na bactéria que sonha a bactéria que ouve a bactéria que vê a bactéria que, finalmente, escreve sobre a bactéria que lê.


Passamos a vida a inventar pretextos para não inventar pretextos. Uma espécie de lei do maior esforço, disfarçada de boa vontade, de boas intenções, quando tudo não passa de um estômago bem cheio, de um apetite saciado, de um horizonte suficientemente mágico, com conforto que chegue para inventar filosofias.


Há que dar razão à razão mas não a expor demasiado ao sol. Questões de conservação. Não me recordava da palavra: tropismos. Era assim que ela dizia. Claro que se prefere o tropicalismo ao tropismo. Mesmo que seja uma questão adormecida, placada pelo movimento de um corpo cheio de energia conquistadora. Que conquistareis agora que já se sabe que não se poderá saber tudo? Fala-se, portanto, do desespero da esperança. Não é um lugar de partida, é um lugar de chegada. E um lugar de chegada é um lugar de morte.


Hoje é um dia bom para acabar de vez com isso. A morte vem aos poucos. Vão-se acumulando os lugares de chegada. Há um momento na infância em que se nos remove o primeiro afecto. A primeira catástrofe do ultra-violeta. Depois vai acontecendo, como a pele morta que se vai soltando. Não vou perder mais tempo a ler novas ficções literárias. As histórias que já tenho aconchegam-me.

quinta-feira, janeiro 03, 2008

Eco

Muitas vezes é melhor o silêncio.
Uma banal ausência presente.
Ou o contrário.
Jogo de palavras que se não dizem para não acordar dormências ou sonhos.
Passa-se sobre o ranger inquietante do soalho a ouvir fantasmas.
Acontece sempre tudo no silêncio.


Portas que batem, ferrolhos que correm, chuva cansada.
No silêncio ouve-se o impossível.
Há segredos a fugirem no murmúrio do ar.
Um brisa improvável e passos a descer a escada.
Respiração.
Um relógio.


É comum que se use o silêncio para confrontar o tempo.
Na música acorda o sentido da nota seguinte.
Na batalha antecipa a violência da morte.
No amor afina a atenção para o odor dos corpos.
No pensamento abre uma brecha para a divagação.


O silêncio é uma indisciplina.
Carrega o peso ingrato do desafio.
Muito mais do que o grito irado.
Muito mais do que o insulto ou a promessa.
Mais ainda que a ignorância militante.


De vez em quando é necessário um tempo de silêncio.
Uma pausa, um salto, uma falta, um soluço, uma distracção.
Do intervalo regular das rotinas sai um momento de inquietude.
Nas bermas do caminho o reflexo de passos.
No céu os riscos brancos.


No topo da montanha ouve-se, em certos dias, o poder do silêncio.
Rasga-se sobre a mente com uma violência insuportável.
Pesa mais que a tortura de um castigo injusto.
E mesmo assim é necessário um tempo de silêncio.


Como a tortura, como o medo, como a ingratidão.
Só mais tarde saberemos, no ajuste de contas, dos benefícios do silêncio.


Sísifo