segunda-feira, dezembro 26, 2005

Momento

Para um desafio de palavras em linha sobre fotografia de revelações avulsas


Podemos olhar para um rosto e ver nele o tempo. Imaginar que esse tempo foi todo ele como se nos apresenta agora. Pensar que nos interstícios de cada ruga se alojou um desgosto.

Mas também podemos ver no olhar firme o traço intenso da vontade e a fruição íntima de um gesto ou de uma memória. Digo eu. Que gosto de olhares fixos no horizonte, abandonados a uma reflexão que parece concentrar num instante todos os destinos.

O nosso olhar é o momento do nosso olhar.

E no rosto instantâneo, aliviado pela tigela de caldo, paira, naquela impressão primeira que me autorizou um sorriso terno, a posse de um passado cheio de acontecimentos, de acasos, de sortes e de perdas. Isso mesmo. Tal e qual como eu, tal e qual como nós.

Um rosto que sobreviveu ao tempo, e que aparece agora recheado de idade, aconchegado pela roupa quente, alvo e quieto, imune às velocidades de quem ainda espera muito, lembra-me, às vezes, como neste caso, sabedoria.

Parece-me, pelo menos nos dias bons, que não devo lamentar o tempo nem os cabelos brancos.

A 'alma', essa animação que nos identifica e percorre um intervalo de tempo, tomando da terra a matéria emprestada, termina um dia. Mas cada um de nós é, enquanto é, só e apenas essa animação. E isso é extraordinário.

terça-feira, dezembro 20, 2005

Na tal...



terça-feira, dezembro 13, 2005

Referendo ao aborto

Depois da questão socrática sobre a efectiva natureza do tempo, que dividiu a nação entre aqueles que consideram o início do ano no princípio e aqueles que consideram que o início está no fim - repetição assaz semelhante à que há uns anos deu origem a que este século se iniciasse pelo menos duas vezes - viu-se adiado para nova oportunidade o referendo ao aborto. Tudo parecia, portanto, indicar que a opinião dos portugueses sobre o aborto não iria coincidir com a escolha do próximo Presidente da República.
Não começando a actual sessão legislativa antes de acabar a sessão legislativa anterior, nem se sabendo se a sessão legislativa anterior já acabou ou ainda estamos nela, ou melhor, na eventual possibilidade de já estarmos numa nova sessão legislativa que afinal é ainda a anterior, e por ser a anterior não se pode considerar já como sendo a sessão actual, pode considerar-se que houve pelo menos uma sessão legislativa que abortou.
Embora pareça, esta questão não é irrelevante.
De uma maneira que há poucas semanas era difícil de imaginar, a opinião dos portugueses a propósito do aborto parece ter tido uma viragem de 180º (pi radianos no sistema internacional). De um momento para o outro, a maioria dos analistas parece ter-se dado conta da importância do aborto na redução do défice nacional. O aborto é, nos círculos mais bem informados e mais abonados, a solução para todos os problemas dos portugueses. Aquilo que aparecia uma prática infame e indigna ainda não há dez anos, ganhou uma dinâmica salvífica que está a dinamitar - perdão, dinamizar - a nação de norte a sul de Portugal de aquém e de além-mar. Os gigantes, mais ou menos gigantes... pronto, os maiores grupos económicos nacionais, movem-se no sentido de melhorar a imagem nacional do aborto, de maneira a que a população, tradicionalmente católica, consiga engolir esta mudança de paradigma.
Por essa razão, no próximo dia 22 de Janeiro, em que chegou a estar prevista a realização simultânea da eleição do Presidente e do referendo ao aborto e, posteriormente, apenas a eleição do presidente, vai, afinal, fazer-se apenas o referendo ao aborto.
Mas a mudança não se fica por aqui. As forças vivas inverteram-se. Os mais insuspeitos e aguerridos militantes anti-aborto, toda a direita, extrema direita e algum centro que tem medo que lhes queimem os jaguares, tornaram-se de repente os seus maiores apoiantes. A própria Igreja, embora não aplauda directamente, inclui em toda a sua actualmente frenética actividade, elementos que têm vindo a público apoiar claramente o aborto como solução para todos os nossos problemas.
O mais surpreendente de tudo é, no entanto, a atitude da esquerda. Apesar de extremamente dividida está empenhadíssima em que vença o não. Aliás, todo o discurso da esquerda está, como quase sempre, centrado em dizer não, neste caso ao aborto. Ninguém sabe exactamente o que é que quer a esquerda, mas sabe-se que não quer o aborto.
De facto, há dez anos ninguém poderia prever esta reviravolta no eleitorado nacional.

Ivo Cação


terça-feira, novembro 29, 2005

A Chris (II)

Confesso ter acreditado que a Chris se iria embora assim que chegassem os dias frios. A minha casa, um terceiro andar em Mem Martins, tem as mesmas condições da maioria dos apartamentos do país, isto é, nenhumas, para resistir a baixas ou a altas temperaturas exteriores e fica-se na dúvida se nesses dias não se estará melhor na rua. Claro que não é um problema apenas das habitações. Basta pensar na premiada Gare do Oriente onde, de certeza, ninguém pensou uma vez que fosse que se destinava a pessoas.
Apesar do protocolo de Quioto a Chris está-se nas tintas para as emissões de CO2 e mantém os aquecedores ligados vinte e quatro horas por dia atirando, com a maior das calmas, o meu dinheiro para a rua através da paredes mal isoladas.
Não há dúvida que a Chris veio para ficar. E começo a sentir a pressão de me parecer que estou a mais na minha própria casa. Vou para a varanda, a única do prédio que ainda não tem marquise (o que faz com que os vizinhos já me olhem de lado), fumar o que penso sempre ser o último cigarro e olho, com alguma inveja, para as varandas dos outros prédios fechadas pelo alumínio, da felicidade e harmonia que imagino inundar aquelas casas apenas por não terem que compartilhar o espaço com uma Chris.
O Hilário, que nas raras vezes em que não tem que fazer toma umas cervejas comigo na padaria da D. Albertina, depois do trabalho (do meu trabalho porque ele está no desemprego e passa o tempo todo a fazer uns servicinhos para os três ex-sogros), pergunta-me com o seu ar trocista, quando me queixo, porque é que não ponho a Chris a andar. E eu venho para casa a pensar nisso. Para ele a coisa é muito fácil de resolver. Arranja sempre uns esquemas e não se detém a pensar nas consequências disso para o resto da humanidade.
Não há dúvida que sou um coração mole. Vejo como ela está a condicionar a minha vida e não sou capaz de tomar uma atitude. Ponho-me com pensamentos lamechas: coitada da Chris, que seria dela, sem amigos nem amigas, com aquele feitio difícil, ninguém a quer aturar, nem os pais nem os filhos que negam sempre ter alguma coisa a ver com ela. Não sou capaz de a pôr a andar.
Tirando o consumo de electricidade, os canais do cabo e a alimentação excessiva, a Chris até nem tem feito muita despesa. Para ajudar até já só toma dois banhos por dia. Cheguei a sentir que talvez ela até estivesse a querer colaborar. Acreditei.
Mas agora anda outra vez com os olhos a brilhar. Projectos, diz ela, um bocado megalómanos. Coisas em grande para se manter ocupada e ir disfarçando a insipidez da vida afectiva. Quer mudar todo o chão da casa porque daqui a dez anos já não estará em condições, mudar as cortinas para materiais mais modernos e vistosos, e pôr um computador em cada compartimento para ficar uma casa tecnologicamente avançada e preparada para o futuro. Fiquei chocado. Já a vi várias vezes com aqueles olhos e brilhar de ideias maravilhosas e da merda que deram.
Além disso a Chris sente-se muito bem. Sente que tem o futuro garantido. Os potenciais presidentes, os potenciais governos e o estado de espírito dos concidadãos são uma garantia.


Ivo Cação
©
Dias que voam

sexta-feira, novembro 11, 2005

Literatura Láite: uma lista por desordem cronológica

(proposta restante no dias que voam)

Podia começar pelO Náufrago (TB) e ficar por aí mesmo. Era suficiente para levar para uma ilha deserta e lá ficar até ao fim. E tem música incluída. Mas como não vou para nenhuma ilha deserta, nem vou para lado nenhum, passo a outros (TBs) como O Sobrinho De Wittgenstein, o Betão ou a Perturbação. O autor de E Não Disse Nem Mais Uma Palavra ou Retrato De Grupo Com Senhora (HB) que já não se encontram em lado nenhum - o que não me incomoda porque sou muito egoísta - foi até hoje o único autor cuja morte chorei. Também teria chorado o autor dO Livro De Areia e das Ficções (JLB) se ele não me tivesse preparado com as suas fabulosas entrevistas. Na Corda Bamba (SB) fiquei para sempre com As Palavras (JPS) e O Castelo (FK) e ao Reviver O Passado Em Brideshead (EW). Tenho o Complexo De Portnoy (PR) - salvo seja - e O Meu Michael (AO) vai crescendo enquanto A Sibila (ABL) anda sobre O Fio Da Navalha(SM). Pedro Páramo (JR) tem Cem Anos de Solidão (GGM) para fazer A Obra Ao Negro (MY) nOs Cus de Judas (ALA). Bartleby (HM) é O Estrangeiro (AC) que nO Ano Da Morte De Ricardo Reis (JS) instala O Mal De Montano (EVM) no Império Do Amor (LCG). Era Bom Que Trocássemos Umas Ideias Sobre O Assunto (MC) mas a Aparição (VF) dO Delfim (JCP) e mais Três Homens Num Bote (JKJ) nO Vale Da Paixão (LJ) com O Contrabaixo (PS) resultaria nA Morte De David Debrizzi (PM) em casa dOs Maias (EQ) Se Numa Noite De Inverno Um Viajante (IC), O Vendedor de Passados (JEA), não trouxesse Mexilhão Para A Ceia (BV). Esta Noite Sonhei Com Brueghel (FB), O Jogador (FD) das Crónicas Americanas (SS)...

ABL - Agustina Bessa-Luís; AC - Albert Camus; ALA - António Lobo Antunes; AO - Amos Oz; BV - Birgit Vanderbeke; EVM - Enrique Vila-Matas; EQ - Eça de Queiroz; EW - Evelyn Waugh; FB - Fernanda Botelho; FD - Fiodor Dostoiévsky; FK - Franz Kafka; GGM - Gabriel Garcia Marquez; HB - Heinrich Böll; HM - Herman Melville; IC - Italo Calvino; JCP - José Cardoso Pires; JEA - José Eduardo Agualusa; JKJ - Jerome K. Jerome; JLB - Jorge Luis Borges; JPS - Jean-Paul Sartre; JS - José Saramago; JR - Juan Rulfo; LJ - Lídia Jorge; LCG - Luísa Costa Gomes; MC - Mário de Carvalho; MY - Marguerite Yourcenar; PM - Paul Micou; PR - Philip Roth; PS - Patrick Süskind; SB - Saul Bellow; SM - Somerset Maugham; SS - Sam Shepard; TB - Thomas Bernhard; VF - Vergílio Ferreira.

Zumbido


terça-feira, novembro 08, 2005

A Luciah

Sokolsky (spead)


Há um estranho pacto entre as bruxas e as coincidências.
Vêm ambas de um lado de lá do sonho.
E ambas existem mesmo sem acreditar.

Paris é uma festa.
Paris já está a arder.
Paris nunca se acaba.

Luciah encontrou-me cedo na infância, e olhei para ela como se fosse verdadeira.
Ela tinha todas as formas e mais as formas de mulher.
Parecia sempre ser uma coisa e era outra.
E mesmo essa coisa que ela era, não era ela mas outra coisa.

Luciah construía mundos e com isso construiu os meus mundos.
Dizia que Kafka era igual a Kapa, mesmo que fossem diferentes.
Que Cervantes era igual a Quixote e Sancho ao mesmo tempo.
Falava de deuses e humanos em pé de igualdade e criava falsos deuses assim como falsos humanos que eram igualmente verdadeiros.

Luciah traz-me todos os dias notícias frescas num prato aquecido com o fogo do inferno.
Traz-me anjos, santos e bem-aventurados aventureiros.
Exemplos do que se pode ser e do que se não é.
Sonhos que enchem o mundo como o ar que se respira.

Porque gosto então de Luciah se sei que é mentirosa?
Porque não passo eu sem as suas nocturnas fábulas rotineiras?
Pior que isso: porque vou, como um dependente, à procura das falsidades de Luciah?
Talvez por ser ela que faz de mim humano.

É Luciah que me traz à cabeceira a ligeira hipótese de considerar o viver como coisa aceitável.
É ela que flutua sobre a estrutural fantasia dos textos.
É Luciah o lado de cá de eu não me sentir um mero DNA reprodutível.

Cada vez que encontro Luciah, e em que ela a seu bel-prazer me faz, com as suas artes, oscilar violentamente entre o amor e o ódio, entre a paixão e a viagem, entre o medo e a sofreguidão, entre o poder e o vácuo, entre a música e o ardor do mérito, percebo que Deus, na sua superior sabedoria, criou Luciah para dar sentido a uma obra eternamente adiada.

Luciah, campeã da ironia, há-de morrer sem revelar os seus segredos!


Ivo Cação


sexta-feira, novembro 04, 2005

A Pathricia

Só este ano percebi porque é que odeio as férias. Muito simples: porque há o regresso. Noutras férias nem tenho saído de casa mas este ano aproveitei para me livrar da Chris durante umas semanas. Foi bom de mais não fora este retorno doloroso. No ano de Einstein, é nestas pequenas coisas que se descobre a relatividade. Se eu não gozar férias não tenho a sensação trágica do regresso à realidade.

A Chris continua por cá e parece que se instalou para ficar. A casa estava um caos quando cheguei. Resolveu começar a escrever um guião para um programa de televisão e por isso, diz ela, não tem tido tempo para manter a casa limpa e arrumada. Sonha ser uma mulher famosa e acha que a TV é o veículo apropriado. Eu aceno que sim, que ela faz muito bem em estar entretida, não acreditando que a ideia dela alguma vez seja aprovada. O programa vai chamar-se 'Vomitorium' e é um concurso em que o vencedor é o concorrente que conseguir maior quantidade de vomitado do júri.

Consolam-me as memórias das férias. Passei algum tempo com a Pathricia. Uns dias, poucos. Ela continua a não ser capaz de estar muito tempo no mesmo lugar. E eu a ter cada vez menos vontade de me mover.

Entre qualquer fim e qualquer princípio, entre qualquer prólogo e qualquer epílogo, entre qualquer pensamento e qualquer realização está sempre Pathricia. Conheci-a tarde, demasiado tarde como se costuma dizer. Não por culpa minha ou por culpa dela mas, como se costuma dizer também, por causa das circunstâncias. As circunstâncias. É difícil descrever as circunstâncias em que conheci Pathricia. Por isso o melhor é omiti-las, como ela própria faria por ser mais sensível aos ambientes e à passagem das nuvens do que à aparente fixidez das estrelas.

Se pudesse, assim num pequeno gesto de magia, reeditar as ocasiões em que sem me dar conta disso - sem medir o tempo nem o horário, sem pensar nem quase sentir, sem pesar nem quase respirar - sonhei a perfeição do ser, teria que ser com Pathricia. Foi ela que me revelou o estado inerte de tudo o que não se move; que me levou a perceber o voo como essência do existir e como ocasião da vontade. Com ela tudo está onde já não está; tudo se muda do momento para o momento seguinte, pouco antes de se estar a atingir o lugar do desejo. Em Pathricia todas as fases estão desfasadas, todo o tempo é assíncrono, toda a verdade é opinião, todo o sentido é ilusão.

Um dia, quando por qualquer razão me conseguir libertar destas pequenas, mínimas, miseráveis ligações que agarram os pés à terra que desconhecem; quando vir em cada pequeno pormenor do percurso um gigantesco emissor de júbilo; quando num curto gesto, ao passar a mão em afago sobre a parede fria sentir um tremor especial de milhares de efervescentes motivos de alegria, estarei apto a acompanhar Pathricia em permanência, na sua feliz deambulação eterna à procura de lugar nenhum.


Ivo Cação

© diasquevoam.blogspot.com

domingo, outubro 09, 2005

A Saphira

Et in Arcadia ego. Não, não sei latim. Ficou-me esta frase de há muitos anos quando revivia o passado em Brideshead. Sem propriedade, diga-se. Aconteceu apenas porque me lembrei de Saphira. E a memória é sempre uma feiticeira boa que vem em auxílio de quem já não sabe sair do estreito caminho da evidência.

Saphira esteve comigo no lugar que primeiro defini como meu. Filho único, avesso ao encontro fortuito com a realidade rude e agreste, encontrei em Saphira a companheira, que não sendo capaz de distinguir entre a aventura e a conveniência, me levava para os espaços ocultos onde eram possíveis os devaneios.

À distância, fica a dúvida se a felicidade da memória não é um duro texto de reclusão ornamentado por Saphira na sua proverbial bonomia e poderosa coragem. Lembro-me das palavras de Sartre e já não sei se são dele ou minhas, se Saphira as trouxe a mim e me repuxou o olhar estrábico para parecer um neto de doutor que passou a infância a ler.

É mentira. Na infância eu plantei uma nespereira. Enterrei o cinto do meu pai no quintal e enchi o pátio de guerras horríveis em que ganhavam sempre os bons. Saphira ao meu lado, olhos brilhantes, tentadores, sorriso eterno, incentivador, murmúrios nos lábios como o tal anjo-da-guarda que nunca cheguei a ver.

Agora já cá não estão na casa os coelhos e as galinhas que cantavam os ovos novos. A distância do quintal também já não é imensa e a pasta da escola, quando ainda era desejada, já não tem aquele cheiro a novo que parecia definir o outono.

Há as marcas do corpo. Na dobra da perna a cicatriz de um dardo metálico do portão que servia de baloiço; ao pé do joelho o furo de um pauzinho chinês que, afiado, serviu de punhal para desbravar a floresta das traseiras; e as falhas de cabelo, dos galos, quando a cabeça absorvia os choques.

E há as outras marcas. Marcas desviadas de qualquer propósito que não o de reservar para cada momento um encontro completo com Saphira. Não havia fadas, não havia gnomos, mas havia já heróis da televisão. Dois revólveres, um chapéu negro, um lenço da mãe ao pescoço e muitos fora-de-lei para matar e prender. Ainda não sabia mas era um Cartwright de pleno direito. Transportava-me a cavalo, alinhando o passo pelas marcas negras do chão, dançando com a elegância que via nas cerimónias iniciais das touradas.

Li, em tempos, ao lado de Saphira, que os lugares e as coisas guardam, nos interstícios aparentemente vazios dos átomos, todos os acontecimentos em que intervieram e que, se prestarmos a devida atenção, eles nos devolvem essas imagens acrescidas da ternura própria de quem é eterno. Não sei se é assim porque o tempo me tornou surdo às coisas demasiado pequenas e a visão passou a deliciar-se apenas com o que reconhece.

Mas não mudou tudo: Saphira ainda anda por aí.



Ivo Cação

quarta-feira, agosto 17, 2005

A Helena

Por causa de Helena fez-se uma guerra. Foi há muito tempo e sabemos como o tempo transforma em caldo uniforme as mais díspares impressões de viagem. Ao tempo brincávamos com baloiços, automóveis de corda, cavalinhos. Coisas que roubávamos aqui e ali sempre com as angústias recolhidas no quarto mais escuro da casa e deixando que apenas o vento fizesse rodopiar o cabelo sobre os ombros e sobre a realidade.

Nada mais queríamos que construir uma civilização, embora não fosse bem assim, porque ninguém se levanta manhã cedo com a intenção decidida: hoje vou construir uma civilização. Não que seja ridículo. É tão ridículo como acordar de manhã e pensar: hoje vou descobrir porque amo assim Helena.

Nem de propósito, hoje, enquanto fazia a barba, e reparem como as palavras são estranhas porque o que eu estou a dizer é que rapava a barba com uma lâmina - quase o contrário de fazê-la, pensei que era um dia bom para esclarecer de vez porque me apaixonei, e temos que o dizer, eternamente, por Helena. Porque não há pais, nem mães, nem professores, nem destino, nem deuses que nos impeçam de amar aquilo que um mecanismo interior qualquer decide que havemos de amar. Dizer que era no intervalo das aulas que eu amava Helena, enquanto brincávamos e ela na sua cautelosa essência de vencedora definitiva me levava, pela mão, pode dizer-se, para os lugares ocultos onde qualquer ingenuidade ou sapiência se afunda em perplexidade e surpresa.

Volto a Helena sempre que posso. Pego nos restos e nos rastos e reconstruo os momentos que puderam ser infinitos e que ficaram enquanto eu for.

E porquê? Porque eu sou, afinal de contas, o encobrimento directo dessa incerteza, por ter Helena e olhá-la da maneira única que eu próprio fui. E acabamos por amar os sinais que se inscrevem na nossa pele porque são eles que nos fazem discerníveis de tudo o mais. E há os momentos que ficaram sobrepostos à exemplar certeza da descoberta, aquele momento em que deixamos de ser o mesmo que éramos e julgávamos eterno.

Helena estava lá, baloiçando no momento certo. Ou eu e os meus sonhos. E quase tudo o que veio depois.


Ivo Cação

© diasquevoam.blogspot.com

segunda-feira, julho 04, 2005

A Bhianca

O desagradável cheiro a alcatrão que paira sobre a vila, deixa a Chris agoniada. Se fecho as janelas, o calor opressivo impede até os pensamentos; mas as janelas abertas enfermam o ar de um escuro perfume betuminoso que entra nos pulmões e aí fica a desencadear o gás venenoso das palavras. Ainda faltam alguns meses para que cesse este entusiástico negrume autárquico. Entretanto Chris padece com o calor e com os aromas, resmungando ódios e avolumando ainda mais as suas alvas, estáticas e contundentes formas.

É quase um paradoxo que esta renovada escuridão do asfalto me lembre Bhianca. Lembra-me Bhianca e lembra-me o ainda mais contrastante formato do arco-íris que a acompanhava na sua deslumbrada e livre confrontação com as variedades cromáticas da luz.

Conheci Bhianca no lugar que não era o seu. Na luz de Lisboa ela tinha no rosto o contraste total da cor do seu nome, que não nos olhos, e no brilho polido da pele reflectia-se a multiplicidade deslumbrante dos tons impossíveis. Nascera com a cor natural do lado de lá dos trópicos e viera adolescente na inesperada intenção de colorir o cinzento triste do nosso fado. Vaga intenção, digo eu que amei Bhianca na distância obtusa que a idade impõe. E no entanto...

Conheci Bhianca pelo rasto de cor e vento que deixava na vertigem do movimento provocado pela música: mola automática que saltava dos ritmos que lhe fizeram o corpo, na ancestralidade do seu continente. E mais não vi eu senão a cor que era feita de todas as cores que escassamente cobriam o negro fulgurante que no dizer dos físicos atrai e absorve toda a luz.

Conheci Bhianca como quem conhece a selva luxuriante, onde não é possível a um delicado corpo leitoso sobreviver. Destemida, na força de um corpo dotado - esse sim sobredotado - para projectar a evolução através de seres que valha a pena existirem, Bhianca ousava levar o movimento e a cor para os olhos dos incautos e taciturnos mirones que, como eu, procuravam ainda alguma alma no meio das derrotadas cinzas.

Conheci Bhianca, digamos assim, por uma espécie de exclusão de partes, como se na difracção da luz no prisma, numa escada de cores, eu tivesse, por acaso, aberto tanto os olhos que entre a ultra-violenta cor do medo e a infra-verdadeira cor da honra houvesse lugar para as mágicas cores que uma mulher carbono puro e cristalino pode emitir na dureza máxima do corte da ilusão.

Conheci e amei Bhianca, como a conheço e amo hoje, na arte suprema do que vejo e na combinatória infinita das nuances que desafiam a imaginação e a memória. Falo de Bhianca apenas do que vi e das emoções reflexas que brotaram perante a face de alegria feroz que se arrastava como a fúria de quem quer da vida mais do que promessas não cumpridas.

Ivo Cação
© diasquevoam.blogspot.com


quarta-feira, junho 22, 2005

A Mathilde

O melhor lugar em casa para ter uma televisão é a despensa. Mas infelizmente, aí e na casa de banho são os únicos lugares em que a maior parte das casas não têm os famosos incineradores cerebrais. Noventa por cento dos desentendimentos com a Chris começam por causa da caixinha. Os outros dez por cento é por ela não conseguir perceber como é que eu sou capaz de viver sem cabo.

Até a Chris chegar eu conseguia viver sem cabo. Estando em minha casa eu acho que tenho o direito de ter o que eu quiser e é isso que tenho feito. Mas a Chris põe tudo em causa. Transforma as mais pequenas coisas num inferno. Leva tudo à letra, é insensível ao sarcasmo e imune à ironia. Para ela não há meios termos: tudo ou é preto ou é branco e não há nuances possíveis entre um e outro; ou é ou não é; nada de ses ou talvez; cinco é cinco; sessenta e nove é sessenta e nove.

Conheci há muitos anos uma personalidade assim objectiva. Mathilde tinha um corpo que podia ser definido com uma equação trigonométrica do segundo grau. Eram necessários senos e cosenos para definir as partes mais arredondadas mas podíamos desprezar sem remorsos as soluções complexas. As tangentes e as cotangentes tendiam, com a Mathilde, para infinito. Se quisermos vê-la de uma perspectiva arquitectónica poderemos dizer que tudo nela obedece à divina proporção: tudo nela se multiplicava ou dividia por um vírgula sessenta e oito. Para mim, que na altura em que a conheci procurava ainda discernir entre a necessidade de um mundo estético ou de um mundo ético, Mathilde parecia a síntese encarnada. Claro que me apaixonei. Cegamente como é próprio das paixões. Durante alguns anos foi Mathilde o motor da minha alma. Sei, por experiência, que uma paixão tem tendência a arrefecer e esse poderia ser o processo natural para me afastar de Mathilde. Mas não foi. Foi outra paixão que se foi insinuando e me fez perceber que a objectividade de Mathilde, apesar de intimamente coerente, bela, inocente, sistemática, racional, lógica e fecunda, tinha uma infinita falta de humor. Para Mathilde tudo era denotativo, os símbolos eram apenas processos de representação, as metáforas eram incompreensíveis e o estilo não tinha figuras.

Sei que ninguém pode ser tudo e ter tudo. Mas a descoberta de que Mathilde vivia num mundo fechado e que não se abria ao entendimento da complexidade do real; o sentir que Mathilde se contentava com a dimensão infinitamente manipulável das coisas e não entendia as variáveis subjectivas do entendimento nem a obscuridade das emoções, fez-me recuar de uma paixão que se tinha tornado evidente ela não ser capaz de partilhar.

Como com quase todas as minhas paixões, não foi uma separação violenta nem definitiva. Volto a ela sempre que o meu espírito deriva para indefinições e me sinto desintegrado nas minhas funções de homem sem raízes.

Suponho que foi por causa da televisão. A programação estava uma miséria e a Chris começou a embirrar. Depois de refilar por causa do cabo pegou no seis vírgula oitenta e três. Porquê seis vírgula oitenta e três? Ela achava pouco. E depois achava muito porque não sentia que fosse tanto. Perguntava: "como é que mediste isso"? Estava desconfiada por causa do três. Ainda se fosse seis vírgula oitenta, vá lá. Agora aquele três parecia-lhe uma precisão excessiva. Segundo ela, ninguém mede essas coisas com duas casas decimais. Parecia mesmo que eu tinha a intenção de a impressionar. Embora para ela um três naquele lugar nem aquecesse nem arrefecesse. Para a impressionar mesmo era preciso muito mais do que seis vírgula oitenta e três.

Ivo Cação
© diasquevoam.blogspot.com

sábado, junho 18, 2005

A Dinah

Morram poetas ou políticos, pintores ou músicos, médicos ou milionários, a Chris não se abala. Delicia-se a ver o ar compungido de quem aparece a tecer os maiores elogios a quem morre. E deixa cair uma piedosa lágrima. Um dia falarei das lágrimas de Chris.

Eu hesito em dar a minha opinião. Digo-lhe que não percebo como é que um país em que toda a gente que morre é tão brilhante pode ser tão rasca. Como é possível elogiar tanto os que morrem e o país ser tão inferior à soma das suas geniais partes. Será que os verdadeiros culpados são seres eternos que andam por aí a boicotar os excelentes desempenhos dos que são mortais?

A Chris diz que sou um desmancha prazeres e manda-me calar para dar atenção às palavras de mais um candidato a defunto brilhante sobre um brilhante defunto. Eu não me calo e ela diz-me ferozmente que eu não respeito os mortos. Insisto que neste país as únicas coisas que se respeitam são os mortos. E por pouco tempo. Pelos vivos não há respeito nenhum. Ela ameaça gritar e vou para a varanda dar o meu contributo para a redução do défice.

Começo a estar um bocado farto da Chris. Não é possível argumentar com ela. A verdade suprema vem na Caras e na Gente e as minhas opiniões são as de um marginal. Mas o facto é que ela se me impõe. Num certo sentido faz-me lembrar a Dinah.

Também com a Dinah me reduzi a uma certa insignificância. Não era esta insignificância derrotada mas uma insignificância militante. Com a Dinah havia compensações.

Horas e horas de ginásio não chegavam para eliminar a efervescência daquele corpo. Hoje não aceitaria aquela reduzida feminilidade mas na altura, a forma destemida com que contrariava a gravidade subjugava-me, e a falta de assunto, a falta de temas de conversa, não se sentia porque o tempo era quase todo preenchido com acção. A agilidade, a elegância militar do gesto, a força física e mental tornavam-na um animal violento em cuja jaula não se consegue permanecer vivo muito tempo.

Um dia fugi, assustado. O crescendo de perversidade estava a tornar-se insustentável. Receei pela minha estabilidade mental quando a minha saúde física já estava sobejamente deteriorada. Apesar de tudo foram bons tempos. Dediquei-me a Dinah com uma reverência que hoje não sei se era apaixonada, masoquista ou aterrada. Atrás da potência vem sempre a crueldade e não conheci depois ninguém que, como Dinah, aliasse à determinação cega da mente um corpo igualmente vocacionado para lutar pelo seu lugar. Força da natureza, impulso da matéria, emoção corporizada, vida sem redomas... Dinah. Não me fez feliz. Não sou capaz de ser feliz com o corpo dolorido.

O sentido em que me faz lembrar a Chris é muito pequeno. Dinah dominou-me no meu tempo de homem forte. A Chris domina-me como homem decadente, derrotado... temporariamente derrotado, espero eu.

Ivo Cação
© diasquevoam.blogspot.com

sábado, junho 11, 2005

A Hélia

Há muitos anos, ainda longe da moda, já a Hélia andava com o umbigo à mostra. Mostrava assim que era humana e não um andróide qualquer. Eu, que nunca gostei de andróides, tinha a esperança que um dia pudéssemos ter acesso directo a esse bilhete de identidade natural do humano. Talvez fosse bom que também os homens andassem com o umbigo à vista: poderíamos confirmar melhor a natureza inumana de algumas bestas.

Mas a Hélia tinha a vantagem de ter um umbigo que dava gosto ver.

Conheci-a numa praia africana, quando andava à procura de estrelas do mar. Eu e ela. Uma coincidência. Coincidência também de nem eu nem ela termos encontrado uma estrela do mar que fosse. Bom... eu encontrei-a a ela: uma estrela quente, brilhante, luminosa e sensual. A arte de envolver, em pessoa. Foi em África. Só podia ser em África encontrar tão grande e bela luminosidade. Foi um fogo que ardia em chama viva, derretia as entranhas e fazia desejar os infernos. Corríamos como doidos pelas areias escaldantes, fugindo cada pé do fogo de quartzo, desejando voar até à próxima sombra para não sofrer os horrores dos pés queimados e prometendo não mais andar descalços por ali.

Mas Hélia era um apelo à nudez. Nudez total. Nem sapatos, nem chapéus, nem lenços, nem tatuagens, nem alianças...

Vivemos demasiado perto do frio. Estamos a apenas trezentos graus do zero absoluto que é a morte. Do lado do calor temos milhões de graus de possibilidades. É no calor que se preparam os novos mundos e os novos universos. É o calor que tudo recicla até à exaustão da absoluta novidade. Hélia foi e será, para mim, essa total liberdade da vida e da emoção, esse potencial de renovação e de sobrevivência, em suma a marca absoluta do amor.

Depois, separadamente, regressámos. Aqui ela é menos Hélia do que era. E eu também me tornei menos sensível aos seu encantos. O tempo passa à mesma velocidade para toda a gente, mesmo quando não parece, e os destinos vão-se construindo com afastamentos e aproximações mais ou menos aleatórias.

Um dia destes telefono-lhe para saber das suas aventuras. Saber como se tem dado com os novos tempos, com as novas políticas, com o novo mundo.

Mas não há-de ser agora. Não quero que saiba que estou com a Chris. Ela não compreenderia. É difícil imaginar personalidades mais antagónicas.

Lembrei-me de Hélia, ontem à tarde, quando estava com a Chris na praia de Carcavelos. O excesso de luminosidade impedia-me de me concentrar na leitura e o calor na cabeça levou-me para as memórias de Hélia. A Chris enchia todo o espaço debaixo do chapéu de sol e ia-se arrefecendo com cornetos e aquecendo com bolas de berlim e línguas de sogra caseiras. O ambiente estava ainda mais barulhento do que é costume. Até passaram por cima de mim a correr, para além de levar boladas e com chapéus de sol voadores. Só à noite é que vi no telejornal que tinha havido um tsunami humano na praia de Carcavelos. Não dei por nada. Tenho que reconhecer que a proximidade da Chris me protege.

Ivo Cação

© diasquevoam.blogspot.com

quarta-feira, junho 08, 2005

A Léah

Fui à feira do livro com a Chris. Não é uma experiência agradável ir à feira do livro com a Chris. Aliás, não é uma experiência agradável ir onde quer que seja com a Chris.

Ela adorou. Não há meio termo para a Chris: ou adora ou odeia. Neste caso adorou. Há anos que não ia à feira e achou que as coisas tinham melhorado muito. Segundo ela, antes era necessário procurar com cuidado as editoras que tinham livros bons. Hoje já todas têm. Em todas as editoras se podem encontrar os livros que ela gosta. Livros modernaços, farturas e autógrafos fazem as delícias da Chris.

Inevitavelmente procurei-a. É uma questão de identidade. O amor nasceu ali. Uma tarde de sol, vontade de voar, sonhos a condizer e um certo sabor a adolescência. A Léah haveria de estar no meio daquela multidão. Ou talvez já não. Talvez já tivesse, como eu, perdido a esperança de encontrar a salvação no meio dos livros. Divaguei então, enquanto olhava os rostos desconhecidos e a Chris se encostava aos tabuleiros e pedia catálogos.

Se eu pudesse estabelecer um gráfico do deleite talvez colocasse Léah no topo. Não necessariamente pela intensidade mas pela frequência. Foi com ela que fiz as viagens mais extraordinárias, foi com ela que fui mais longe. Foi com ela que experimentei mais e diferentes sensações e me fiquei a conhecer. Foi Léah quem mais espevitou a minha sensibilidade e quem me fez ter um contacto mais envolvente com o sonho. Foi ainda ela que me foi mostrando ao longo do tempo as potencialidades do envolvimento emocional e físico. Num certo sentido não há nada em mim que não tenha começado com ela ou passado por ela.

Foi e é paixão. Para sempre. Léah, onde estás?

Como veria eu o mundo se a não tivesse conhecido? Não o veria, certamente. Seria ainda mais parecido com um carneiro. Iria atrás da primeira cenoura, sem crítica nem sentimento.

Se me desse para incensar uma Deusa, seria ela.

Ah, Léah, Léah, os bons tempos que passei contigo...

A Chris comprou 7 livros que explicam o Código DaVinci, 9 livros que explicam os livros que explicam o Código DaVinci e mais 13 livros que explicam outros pormenores que o Código DaVinci não tocou: "O priorado de Sião e as reformas aos 49 anos"; "A última ceia e os decretos dos sobreiros"; "A mona lisa e a carteira dos portugueses"; "Maria Madalena e as casas de Bragança"; "O cálice sagrado e o vinho do Porto"; "Estará o Graal sob o estádio da Luz?"; "Santana e Alberto João descendentes directos de Maria Madalena"; "Sampaio reflecte que não tem nada a ver com o défice"; "O Sudário encontrado por acaso pela Caras"; "Como falar com Jesus dentro de um elevador rápido"; "Leonardo e os submarinos para Portugal"; "Os templários no governo fazem um ar sério"; "O priorado e as festas da casa pia". Tive que ir várias vezes pôr livros ao carro. Há tardes assim. Trocava tudo pela Léah...

Ivo Cação
© diasquevoam.blogspot.com

sábado, junho 04, 2005

A Rachel

Esta sucessão de pés trouxe-me à memória os mais belos que já conheci. E, embora isso seja uma das habituais injustiças do mundo, os pés mais belos completavam o mais belo dos corpos. Rachel era o nome desse corpo. Conhecemo-nos muito próximo do céu. Uma coincidência, como tudo o que é importante na vida.

A arte de viver, de que eu não sou um especialista, passa por prestar atenção às coincidências, saber reconhece-las e, acima de tudo saber desfrutá-las. Na época em que o acaso me trouxe Rachel, eu era ainda mais ignorante que hoje.

(Só me apetece escrever quando estou com a Chris. Ela hoje está de trombas. Esta história das reformas dos ministros que estão no activo parece que lhe faz aumentar o peso. Isso não a perturba. O conceito dela é o de a gordura ser formosura. As trombas vêm mais do facto de precisar delas para se poder impor. E eu que procuro sobreviver a este período um pouco estranho da minha vida, tenho mantido o sorriso aberto. Um sorriso comercial. Pensar na Sophia fez-me bem).

A Rachel é um caso à parte. Não me apaixonei. Há ocasiões em que temos uma excessiva consciência do futuro. Os dias que passei com a Rachel e que poderiam ter mudado a minha vida, foram suficientes para perceber, ainda que a nível do subconsciente, que me estava a meter num empreendimento que ultrapassava a minha dimensão. Ela tinha sonhos. Bom... Suponho que um corpo daqueles tem direito a ter todos os sonhos do mundo. E ela tinha todos os sonhos do mundo. Não que ela me tivesse contado os seus sonhos. Não houve grande oportunidade para isso. Eu não percebia o hebraico, ela não percebia o português e o meu inglês na altura era lamentável. Trocámos o que foi possível por gestos e por desenhos. E mesmo assim houve gestos que só aprendi com ela e nunca mais pude reproduzir.

Foi uma coincidência aérea. Eu ia para a minha guerra nos Açores, e ela ia por ali, num elaborado percurso para conquistar a América. Se eu bem percebi ela não queria que o corpo ficasse recluso de um só olhar. Procurava na América uma glória global. O corpo global que se impõe naturalmente aos olhares e seduz todas as libidos. Por instantes, nos circuitos ilhéus, acreditei que valeria a pena aprender hebraico e senti que também ela queria aprender português. Mas ao vê-la nua nas águas frias do Porto Formoso, pareceu-me que isso seria como guardar a Torre Eiffel dentro de minha casa, só para mim. E, decerto, depois de começarmos a falar aquele paraíso iria desfazer-se. Os corpos entendem-se melhor pelos gestos, têm para a língua funções que transcendem o léxico e a gramática e do som procuram acima de tudo os tons, o ritmo e a melodia. Despedimo-nos com lágrimas e sem promessas... Como prometer com gestos?

Durante anos evitei folhear as revistas que vinham da América cheias de corpos. Tinha medo de a encontrar. Preferi procurar noutras as aproximações, os pequenos troços que quase prometiam o todo. Rachel terá conquistado o mundo a que tinha direito.

Não foi uma derrota minha. Apenas uma coincidência que não estava inscrita no destino. Seja como for ficou-me este legado da memória que faz com que Raquel, ao contrário da realidade histórica, seja com o tempo uma mulher cada vez mais linda. E não posso dizer que me tenha dado com os pés...

Ivo Cação
© diasquevoam.blogspot.com

quarta-feira, junho 01, 2005

A Sophia

Ando deprimido. A presença da Chris cá em casa estraga-me as rotinas. Mexe em tudo e deixa as coisas fora do lugar. Diz que veio para ficar. Eu sei que aos poucos me vou habituando mas entretanto a paciência vai sendo pouca. Que é que eu posso fazer? Ela sabe que me tem na mão. Ela tem o excesso de intenções que me falta.

Esta noite sonhei com a Sophia. Já há muito que não pensava nela. Enquanto a Chris ressonava ao meu lado acordei a pensar nela. Depois fiquei numa longa vigília a recordar os bons tempos que passei com ela. É daqueles amores que ficam para sempre. Um bocado ambíguos, é certo. Nunca percebi se ela gostava de mim ou não. Mas isso tem a ver com as minhas inseguranças. Eu gostei, e gosto, muito dela. É uma pessoa que exige tempo, que quer a nossa atenção, que precisa de esforço, mas que tem um retorno de satisfação e prazer muito significativo. O que se chama um bom investimento.

A Chris é o contrário. Parece que só me move a ideia de que um dia, quando ela estiver satisfeita, se vai embora.

Conheci a Sophia em Évora. Perdemo-nos nas ruas sinuosas à procura de fantasmas. Onde estariam os nomes daqueles crânios, daquelas ossadas? Comovo-me quando me lembro como poderíamos ter sido felizes se eu tivesse mais golpe de asa. Mas nada é como queremos. Não adianta nada quando o corpo não tem estrutura para acompanhar o sonho. Aliás, devia ser proibido nascer quando se notassem incompatibilidades internas entre o desejo e a desenvoltura.

Nunca tivemos, propriamente, vida em comum. A Sophia é uma mulher independente. Gosta de estar no seu lugar e criá-lo à sua maneira. Não aceita sugestões. Nem aqui, nem lá! Sempre em terra de ninguém. Também, à sua maneira, é dominadora como a Chris. Tem as ideias bem definidas e prefere os percursos próprios à aleatoriedade e à opinião dos leigos. Arrasta-nos para caminhos imprevisíveis. E sempre extremamente povoados.

Muitas vezes me perguntei o que despoletava a paixão por uma mulher assim. Continuo sem saber. Pode ser a curiosidade, o mistério, o infinito, a razão. Sei lá.

Esta noite sonhei com ela. Foi um sonho platónico. Mas pensar nela já não foi tão inocente. Não percebo esta atitude da mente: ter um corpo ao lado e ficar a pensar noutro como se o desejo se deslocalizasse e ficasse para sempre separado do seu contexto.

Apesar de não ter dormido levantei-me sem sono. A Chris nem se quis levantar. Levei-lhe o almoço à cama.

O Hilário telefonou-me hoje de manhã e durante a conversa perguntou-me com quem estava agora. Disse-lhe que estava com a Chris. Ele riu-se e disse: tás fodido! Mas ele diz isso de todas.

Ivo Cação
© diasquevoam.blogspot.com

domingo, maio 29, 2005

A Chris

Eu já estava à espera da Chris. Sabia que ela viria. Tinha-me telefonado. Quis saber com quem eu estava. Disse-lhe que neste momento não estava com ninguém, nem estava com nada. Disse-me: desta vez vou viver contigo para sempre. Disse-lhe que viesse, pois então. Ficaria à espera.

Conheço-a há muitos anos. É o tipo de pessoa que parece sempre nos ter sido familiar, que nasceu connosco e nos acompanhou desde a infância: sempre por perto nos bons e nos maus momentos. Se fosse capaz de ser justo diria que mais nos maus do que nos bons momentos. Se fosse capaz de ser lúcido até diria que os maus momentos vêm com ela. Mas não sou. Nem posso dizer que ela me tenha seduzido. Entrou na minha vida e ficou. Impôs-se. Quando sai daqui não sei para onde vai. Mas não lhe devem faltar lugares onde ficar.

A minha primeira psicanalista, outra das mulheres da minha vida, disse-me que o saber viver com a Chris tinha a ver com um certo temperamento masoquista da minha parte. Mas depois a Chris foi embora e eu não cheguei a tirar conclusões definitivas. Aliás não tirei conclusões nenhumas.

Já a minha primeira mulher achava que já era mau demais viver comigo quanto mais ainda te de aturar a Chris. Não foi a única causa mas contribuiu para o divórcio. A Locas, a minha segunda mulher, conheceu-me quando eu estava com a Chris e fez o que pôde para me afastar dela. Ainda conseguiu durante algum tempo. Era uma mulher de força, resistente e que gostava de arriscar. Mas três anos depois ela percebeu que eu voltara à Chris e foi-se embora.

Tem havido épocas em que a Chris desaparece sem deixar rasto por períodos longos e outras em que vai e vem a curtos intervalos. Habituei-me a isto. O homem é um animal de hábitos. Ou bastaria dizer que é um animal.

Porque a verdade é que houve ocasiões em que quis livrar-me dela. Sinto isso quase como um pecado. Porque isto é uma relação de amor-ódio: nem com ela, nem sem ela. Quando está, faz-me mal, faz-me sofrer, perco o meu bem estar, perturba-me as rotinas, entro em stress, fico deprimido. E mais tempo de Chris mais deprimido fico.

Felizmente há um dia em que ela se vai. E embora eu nessas alturas normalize a minha vida, fico tão contente que entro num ritmo descontrolado e em pouco tempo lá volto a encontrá-la... como se o meu subconsciente a procurasse.

Agora ela está por cá. Diz que veio para ficar. Até que eu tenha capacidade para a por a andar. Digo eu.

Ivo Cação
©
diasquevoam.blogspot.com

sábado, maio 21, 2005

Início

No início era para haver uma forma clara de dizer as coisas.