Depois da questão socrática sobre a efectiva natureza do tempo, que dividiu a nação entre aqueles que consideram o início do ano no princípio e aqueles que consideram que o início está no fim - repetição assaz semelhante à que há uns anos deu origem a que este século se iniciasse pelo menos duas vezes - viu-se adiado para nova oportunidade o referendo ao aborto. Tudo parecia, portanto, indicar que a opinião dos portugueses sobre o aborto não iria coincidir com a escolha do próximo Presidente da República.
Não começando a actual sessão legislativa antes de acabar a sessão legislativa anterior, nem se sabendo se a sessão legislativa anterior já acabou ou ainda estamos nela, ou melhor, na eventual possibilidade de já estarmos numa nova sessão legislativa que afinal é ainda a anterior, e por ser a anterior não se pode considerar já como sendo a sessão actual, pode considerar-se que houve pelo menos uma sessão legislativa que abortou.
Embora pareça, esta questão não é irrelevante.
De uma maneira que há poucas semanas era difícil de imaginar, a opinião dos portugueses a propósito do aborto parece ter tido uma viragem de 180º (pi radianos no sistema internacional). De um momento para o outro, a maioria dos analistas parece ter-se dado conta da importância do aborto na redução do défice nacional. O aborto é, nos círculos mais bem informados e mais abonados, a solução para todos os problemas dos portugueses. Aquilo que aparecia uma prática infame e indigna ainda não há dez anos, ganhou uma dinâmica salvífica que está a dinamitar - perdão, dinamizar - a nação de norte a sul de Portugal de aquém e de além-mar. Os gigantes, mais ou menos gigantes... pronto, os maiores grupos económicos nacionais, movem-se no sentido de melhorar a imagem nacional do aborto, de maneira a que a população, tradicionalmente católica, consiga engolir esta mudança de paradigma.
Por essa razão, no próximo dia 22 de Janeiro, em que chegou a estar prevista a realização simultânea da eleição do Presidente e do referendo ao aborto e, posteriormente, apenas a eleição do presidente, vai, afinal, fazer-se apenas o referendo ao aborto.
Mas a mudança não se fica por aqui. As forças vivas inverteram-se. Os mais insuspeitos e aguerridos militantes anti-aborto, toda a direita, extrema direita e algum centro que tem medo que lhes queimem os jaguares, tornaram-se de repente os seus maiores apoiantes. A própria Igreja, embora não aplauda directamente, inclui em toda a sua actualmente frenética actividade, elementos que têm vindo a público apoiar claramente o aborto como solução para todos os nossos problemas.
O mais surpreendente de tudo é, no entanto, a atitude da esquerda. Apesar de extremamente dividida está empenhadíssima em que vença o não. Aliás, todo o discurso da esquerda está, como quase sempre, centrado em dizer não, neste caso ao aborto. Ninguém sabe exactamente o que é que quer a esquerda, mas sabe-se que não quer o aborto.
De facto, há dez anos ninguém poderia prever esta reviravolta no eleitorado nacional.
Ivo Cação
5 comentários:
Uma delícia de um texto.
Espero que ainda vença o não ao "aborto"... faço figas!
Depois de re-ler muito bem percebi o que falha a quem lê depressa. É que o Ivo leva tudo muito a sério e o pessoal lê na diagonal. Mal sabem eles (lá no outro sítio) que tu és especialista nas subtilezas, como se comprova pelo teor deste escrito fantástico.
ai, ai... entre abortos não se escolhe, digo eu...
ai pi radianos é que interessa! mas sim a postura é sempre a de ser do contra, não importa de quê!
Obrigada Ivo pela visão bonita que me deixaste. Gostei muito da tua interpretação.
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