quarta-feira, dezembro 06, 2006

Repetição


O meu prazer é a rotina.
Em cada dia é completamente claro o meu percurso.
Todos os dias, todos os meses, todas as estações, todos os anos.
Pego na minha carga e subo a montanha.
Faço o meu esforço diário quase com prazer.
E é um prazer chegar lá cima e aliviar o corpo.
Delicia-me então o efeito majestoso da pedra a rolar violenta pela encosta reduzindo de novo a zero o meu trabalho.
Nunca me desilude este meu caminho.

Falam-me do aborrecimento, da monotonia de fazer sempre o mesmo gesto.
Dizem que o meu viver é absurdo.
Condenam na origem a minha aceitação do castigo.
Negam a humanidade do meu processo.

E eu não sei que palavras usar para me defender, sem ferir a felicidade imensa que vejo brilhar nos olhos dos outros que, ao contrário de mim, não se enredam na simplicidade da rotina nem na vastidão do absurdo.

Fico a olhar cheio de esperança, convencido que estou da inutilidade do meu método, para a bonomia ardente das vidas envoltas na atraente pirotecnia da diversidade industrial.

Agrada-me vê-los.
Perceber as estratégias que usam para ludibriar o destino.
Encontrar aqueles movimentos bruscos que dão sentido às suas vidas irredutíveis.
Aperceber-me dos jogos com que se confrontam para estarem confortáveis.
Ver de longe as piruetas que fazem para se sentirem vivos e actuantes.

Talvez sejam excessos da minha rotina, estes movimentos de voyeur sobre os meus vizinhos felizes.

Não me lembro quando deixei de procurar contentamento.
Antes ou depois de condenado, não sei.
Escondeu-se da memória como os outros propósitos de ser.
Ilustrar cada dia como exemplo passou a ser o único horizonte.
Uma derrota conseguida com investimentos brutais.

Não sei como dizê-lo.
Não sei como afrontar o meu sentimento imediato.
Não me ocorrem as palavras ao mesmo tempo necessárias e suficientes.
Quem estaria na disposição de concentrar a atenção num disco riscado de evidência?
Quem acolheria uma frase que não picasse, de alguma forma, as entranhas?
Quem daria atenção a um gesto que não ostentasse potência?
Quem olharia duas vezes para um rosto sem marcas de escândalo?
Quantos contariam os batimentos suaves dos que não contam?

Nesta montanha há muitos caminhos e todos se chamam difíceis.
Uns sobem, outros descem e outros destroem.
Os antigos diziam não haver nenhum caminho fora desta montanha.
Eu não sei.
Não tenho nenhuma fé.


Sísifo

8 comentários:

Anónimo disse...

Caro Sísifo,

A ausência de fé conduz ao conformismo? E a fé, não pode também fazê-lo?

Um abraço.

Maria

mfc disse...

Também estou descrente e só a rotina me diz o que me espera amanhã.
Nesse aspecto também lhe agradeço.

Pedro Caria. disse...

Abdicar da fé é possuir a certeza em nossas proprias mãos.Mas querer ser conformista a ponto de não querer ou de de nao suportar a mudança de nossa rotina é algo fraco que nos despedaça a cada fraçao de segundo...

Emfim...

sisifo disse...

Maria
É interessante ler o que lêem os que lêem a maneira como me leio. Há palavras à deriva e quando são ditas têm a intenção clara do momento. Depois de lidas ficam outras como se houvessem mensagens gravadas nas entrelinhas. Provavelmente o conformismo é uma das formas da fé. Provavelmente não é possível não ter fé nenhuma. A rotina de que falo é a da necessidade de para escrever ter pelo menos uma página em branco.

Outro abraço.

sisifo disse...

mfc

Há muitos anos, quando me apercebi da relatividade das coisas e das velocidades, passei a aceitar que para tudo é necessário um referencial. Não há aventura sem tédio nem caos sem ordem. E tudo o que é excepção só o é porque de uma maneira ou de outra ainda não se tornou rotina. A sorte é que as gerações se sucedem senão já todos teríamos morrido... de tédio.

sisifo disse...

pedro

o forte e o fraco são noções que trocam facilmente de lugar. o desespero não vem de fora, cria-se no interior da consciência. e a certeza não é oposto da fé mas antes a sua única aliada: aquele que tem certeza de alguma coisa tem essa fé...

Bastet disse...

Repito-me. Este é o registo de que mais gosto. Também tu te deixas aprisionar pela poesia.

sisifo disse...

Estou preso por muitas coisas, Bastet, muitas coisas...