sexta-feira, junho 22, 2007

Postdezasseis

No lugar onde moro há fantasmas. Passam de um lado para o outro a zunir, com um propósito que me ultrapassa. Suponho que os trouxe de outros lados, mergulhados no meio dos livros, agarrados ao pó dos objectos ou simplesmente embrulhados numa colecção de memórias mais ou menos oblíquas. Mesmo ouvindo mal, ouço-os à noite a roer o tempo, desprevenidos do súbito silêncio de uma casa oca de sentidos.
Como noutras ocasiões em que me adaptei ao ruído sombrio que vem do prólogo do universo, também se tornaram familiares as deambulações equívocas dos espectros. Há em todas as perturbações um carácter efémero que logo a seguir pode provocar a nostalgia da ausência. Deve ter sido isso que não percebeste.
Tinha-te dito, com alguma ênfase, que não há à minha volta lugares abandonados. Depois de algum tempo de espera o meu lastro cresceu e cada passo que dou é outra vez o primeiro dos últimos.
O que te assustou foram os fantasmas. Poderia dizer-te, como se soubesse, para te aquietar, que são seres inofensivos. Poderia ter falado deles com carinho e mostrar que estão aqui como outras coisas em que ninguém repara. Que sobrevoam as cabeças como se se divertissem e dão gargalhadas alarves que podem perturbar os incautos, mas não vão além da sua centelha de virtualidade. Poderia e deveria tê-los defendido para te defender a ti deles.
Mas eu não sei. Estabeleceu-se, temos de reconhecer, entre mim e o resto-do-mundo, para simplificar, um desentendimento que oscila vigorosamente entre o formal e o estrutural: não sabemos, nem eu nem o resto-do-mundo, se há alguma razão para nos salvarmos. Por isso, e por outras razões certamente, não sou capaz de dizer coisas positivas sobre os fantasmas que moram cá em casa, ainda que com o mero propósito de te fazer sentir mais confiante nas sombras que rasam em velocidades vertiginosas as cabeças que tentam aqui em casa descansar o tempo.
Terão sido eles a fazer-te ir embora abruptamente. Desentendidos das ciências dramáticas não souberam respeitar um rosto que já conheciam bem. E depois, há no gesto brusco de fugir uma mímica própria da libertação que os fantasmas não entendem, livres que são de saber sonhar.
Por outro lado, comigo não acontece nada de especial por sair de casa. Alguns fantasmas, quais anjos-da-guarda, seguem-me pelos caminhos, mesmo que não sejam os meus caminhos, e por isso acostumei-me a tê-los sempre presentes, o que espero, num futuro próximo, tenha o dom de em qualquer lugar, seja onde for, esteja onde estiver, me sinta sempre como se estivesse em casa.

Aibieme

1 comentário:

addiragram disse...

"Eles" habitam-nos mas devemos saber conservá-los num espaço só nosso...São sempre "terceiros" e, "invisíveis" têm muito mais força...
Por vezes, seria importante conseguir
desabitar o lugar para poder ser de novo povoado...e então, a luz poder
sorrir.
Obrigada também por este belo escrito.