domingo, junho 24, 2007

Surpresas

Neva no topo da montanha.
O frio e a sua mancha branca regressaram.
Os ciclos, desanimados com a rotina, preparam surpresas e tempestades.
Os caminhos tornam-se indiscerníveis e os passos marcam-se pesados.

Transporto um mundo às costas e com ele a minha vida.
Não é muito nem pouco, apenas o essencial.
Restos de coisas que foram restos de outras coisas.
Como o nosso corpo é o resto dos outros corpos que o fizeram.

Mesmo que eu não saiba ou não queira saber, houve alguém antes de mim e haverá alguém depois.
Os passos que ficam na neve serão tão efémeros como o meu medo.

Lá no topo, as horas são mais longas e o frio mais frio.
Agora que a temperatura é baixa ninguém lá vai, e a solidão é sólida.
Em nenhum caminho me cruzo com outra palavra.
Apenas o meu monólogo de louco que não quer ser.

Quando se fala é contra o silêncio.
É o único que perece perante a voz.
E o que digo, e digo porque penso, é mais do que penso e digo.

Há também a voz do vento.
Voz que diz o que sabe, como se soubesse.
E é o vento a coisa mais humana que encontro nos lugares altos onde me empurro.

Para todas as coisas é necessário estar preparado.
Mas há tanta variedade de coisas, que acontece sempre uma surpresa.
E depois, na surpresa que nos surpreende, não há nada de novo...

Esse não é o meu caminho.
Não estou à espera de surpresas.
Estou como se estivesse preparado para todas as surpresas.
Jogo com elas e esqueço todas as suspeitas.
O que vier a seguir é ainda uma daquelas coisas que podem ser.

E o que pode ser, o que está dentro do horizonte das possibilidades, faz parte do saco grande de surpresas que na infância soubemos estar à nossa espera.

Não sou eu que espero as surpresas no topo da montanha.
São elas que estão pacientemente à minha espera.

Sísifo

sábado, junho 23, 2007

sexta-feira, junho 22, 2007

Postdezasseis

No lugar onde moro há fantasmas. Passam de um lado para o outro a zunir, com um propósito que me ultrapassa. Suponho que os trouxe de outros lados, mergulhados no meio dos livros, agarrados ao pó dos objectos ou simplesmente embrulhados numa colecção de memórias mais ou menos oblíquas. Mesmo ouvindo mal, ouço-os à noite a roer o tempo, desprevenidos do súbito silêncio de uma casa oca de sentidos.
Como noutras ocasiões em que me adaptei ao ruído sombrio que vem do prólogo do universo, também se tornaram familiares as deambulações equívocas dos espectros. Há em todas as perturbações um carácter efémero que logo a seguir pode provocar a nostalgia da ausência. Deve ter sido isso que não percebeste.
Tinha-te dito, com alguma ênfase, que não há à minha volta lugares abandonados. Depois de algum tempo de espera o meu lastro cresceu e cada passo que dou é outra vez o primeiro dos últimos.
O que te assustou foram os fantasmas. Poderia dizer-te, como se soubesse, para te aquietar, que são seres inofensivos. Poderia ter falado deles com carinho e mostrar que estão aqui como outras coisas em que ninguém repara. Que sobrevoam as cabeças como se se divertissem e dão gargalhadas alarves que podem perturbar os incautos, mas não vão além da sua centelha de virtualidade. Poderia e deveria tê-los defendido para te defender a ti deles.
Mas eu não sei. Estabeleceu-se, temos de reconhecer, entre mim e o resto-do-mundo, para simplificar, um desentendimento que oscila vigorosamente entre o formal e o estrutural: não sabemos, nem eu nem o resto-do-mundo, se há alguma razão para nos salvarmos. Por isso, e por outras razões certamente, não sou capaz de dizer coisas positivas sobre os fantasmas que moram cá em casa, ainda que com o mero propósito de te fazer sentir mais confiante nas sombras que rasam em velocidades vertiginosas as cabeças que tentam aqui em casa descansar o tempo.
Terão sido eles a fazer-te ir embora abruptamente. Desentendidos das ciências dramáticas não souberam respeitar um rosto que já conheciam bem. E depois, há no gesto brusco de fugir uma mímica própria da libertação que os fantasmas não entendem, livres que são de saber sonhar.
Por outro lado, comigo não acontece nada de especial por sair de casa. Alguns fantasmas, quais anjos-da-guarda, seguem-me pelos caminhos, mesmo que não sejam os meus caminhos, e por isso acostumei-me a tê-los sempre presentes, o que espero, num futuro próximo, tenha o dom de em qualquer lugar, seja onde for, esteja onde estiver, me sinta sempre como se estivesse em casa.

Aibieme

terça-feira, junho 19, 2007

sexta-feira, junho 01, 2007

"Palavras soltas"

"... escrever é um exercício de investigação e de lógica; um exercício que obriga a definir, ordenar e desenvolver o que se pensa."

Vasco Pulido Valente, no Público de hoje

Ácido

Nada tem que ser como eu tinha pensado.
Os frutos caem da árvore sem chegarem a perguntar porquê.
Circulam os afectos da mesma forma que a água pelos canais.
E nas sombras mais obscuras não se escondem monstros nem gemidos.

Aquilo que conta quando se fazem as contas sem fazer de conta, é o que se sente quando se sente.

Sobre o abismo que se avista do topo da montanha paira sempre a tonalidade húmida de um certo infinito.
O relativo abandono gera no coração uma vaga sensação de perda.
Como se nos confins onde custa a chegar fosse necessário um ar rarefeito.

Cada momento de azul que amanhece sobre o horizonte é uma dose suplementar de incerteza.
Vê-se, ao mesmo tempo que se ouve a monotonia dos passos a trilhar a areia, o rasto sistemático da repetição e a atracção sublime do espaço.
Não saber acaba por ser o destino mais natural.
Oculta sobre a névoa está a ambição e a prática corrente de comparar os sonhos.
Todos concorrem para afastar o pensamento do seu caminho.

Nem sempre chego ao topo com a mesma ansiedade.
Dias há que parecem claros e luminosos.
Aí, os sons são mais soltos e as verdades menos necessárias.
Cumprem-se os rituais e retoma-se o canto na dobra mais simples do mapa.

Um dia, quando, por acaso, se reunirem as condições especiais, vou pensar em todas as consequências de subir e descer esta montanha, sem que nada de sagrado me obrigue, a não ser esta genética que ocasionalmente conformou as moléculas emprestadas ao meu corpo.

Sísifo