segunda-feira, março 03, 2008

Rasto

Cada vez mais as palavras se escrevem de silêncio.
A história não deixa de ser a minha história e é contada com tempo como se ainda houvesse tempo.
Pouco importa o pouco que sabemos sobre o que é o saber.
Apenas contam os passos que se contam enquanto se dobram as esquinas que escondem os lados adjacentes.
Passos que dou à procura da palavra que ainda falta para preencher o enigma.
Jogo que se faz ao entardecer com os restos mortais de um dia mais.


Cada vez mais as palavras se dizem por gestos.
Foge de nós o momento que estávamos à espera.
Foge de mim o lume que antes tinha iluminado os dedos pálidos.
Mas não são bem fugas.
São aproximações a outros lados que já têm consigo a sombra e a matéria condensada.
Supõe-se, segundo os antigos, haver um lugar onde as vozes aproximam o belo.
E, a ser verdade, vale a pena o voo sobre lugares de tais promessas.


Cada vez mais as palavras se escondem.
Os lugares chamam-se agora por números inteiros.
Calculam-se com luzes nervosas a cintilar de precisão.
Cada momento é um excesso insuportável à espera do seguinte.
Não sou capaz de descer essa rua inclinada.
A palidez do projecto dá-me náuseas, e não encontro no caminho a alternativa à distância.
Pergunto às sombras que tempo falta para o próximo comboio.
O tal que nos vai levar para o lugar anunciado.
Dizem-me silêncio.


Cada vez mais as palavras morrem.
A figura ausente acende em brasa o último cigarro.
Uma palavra pode ser bela mesmo que não seja o que diz.
A ausência tem peso e simetria, baila à beira do abismo com vontade de partir.
Não é com gestos bruscos que empurro o tempo.
Cada segundo no seu lugar.
Pela última vez. Irrepetível.
Para onde vai o tempo que por aqui passa?
Que pressa o leva daqui tão rudemente?
Que sábio encanto o move com tanta decisão?


Cada vez mais as palavras se esgotam de tédio.
Descuidou-se a certeza de conhecer o futuro.
Pairou sobre o medo a astúcia banal da alegria.
Caiu a águia no chão da rua iluminada.
Às vezes basta uma letra para que tudo seja diferente.
Ou a pontuação que não pontua.
Um simples som digitado com lenta ternura e o tempo cala-se de espanto.
Vago bater de asas de um viajante eterno que passa pela arquitectura da matéria sem deixar rasto.
Menos a memória que fica pousada no ramo alto de um sobreiro.


(corrente)

Sísifo


2 comentários:

addiragram disse...

A eterna busca do ajuste perfeito deixará lugar para o encanto com o ajuste possível? Mas..."a memória que fica pousada no ramo alto de um sobreiro"é o rasto de uma procura que não cessa.

Mónica disse...

isto é muito bom
(gostei da relevância do código postal, números inteiros, digo eu: separados por um hifen não vá perderes-te :DDDDDD)

e a fotografia também é

és um assombro, apre!!!!!!!!!!!!