sábado, abril 19, 2008

O meu pé de laranja lima

Mesmo que não mate, a doença vem de repente e apossa-se da nossa vontade. Eu tinha dito que não voltava a cair. Eu tinha repetido para mim próprio que não queria voltar a ficar assim dependente de drogas duras, de venenos poderosos, que não sabemos se nos curam ou nos destroem. Tinha sido uma decisão pensada em dor, depois de ter caído uma segunda vez nessa mesma impossibilidade. O que eu escrevi, em páginas e em tempo, a justificar elevadamente essa decisão que, num certo sentido, equivalia a uma morte antecipada! Quanta frase solta, desligada de sentimento, deixei cair no saco roto das boas razões! Razões pensadas dessa maneira pragmática que diz ser melhor morrer do que sofrer.

Mas tem que se lhe tirar o chapéu. É mestre em estratégia. Vem de lugares inesperados. Inesperados em todos os aspectos. Nem nos meus mais arbitrários pensamentos me teria lembrado de defender aquilo que, a ter um equivalente, seria o buraco de minhoca que liga e aproxima lugares do universo a inconcebíveis distâncias canónicas. Não, nunca me teria defendido de coisas que nem acredito. Meras teorias, pura matemática. Tirava-lhe o chapéu, se o usasse. E vergo-me à ironia. Eu, encostado à teoria da relatividade, sondando nas insónias os paradoxos da mecânica quântica, jogando aos dados com o prazer da bondade do caos, fui apanhado na dobra da esquina de uma humanidade sem uma pinga de sofisticação cínica.

É brutal imaginar que depois de Hugo, Proust, Joyce e Mann ou de Beckett, Bellow, Bernhard e Borges ou mesmo de Musil, Vila-Matas, Walser e Yourcenar, pudéssemos, ainda humanos, estar sujeitos à casual diletância dos humores. Tínhamos tudo para ser hoje marinheiros seguros mesmo no mais encrespado dos mares. Atrás de nós foi assegurada em celebrada glória, a transição digna de assustados e miseráveis a orgulhosos e prudentes. Estamos, talvez desde Newton, sobre os ombros de gigantes. Como é então possível que olhos que viam deixem de ver?

Se eu fosse capaz de perder este orgulho mínimo garantido, talvez aceitasse que afinal ainda há coisas capazes de surpreender. Talvez fosse capaz de reconhecer que pelos caminhos mais exóticos podem chegar ilusões de calibre exagerado. Talvez até chegasse a acreditar que os afectos são mais do que moléculas em súbita e implausível concentração. Mas o tempo fez de mim este pedaço de cérebro entranhado de maneirismos, sempre atento às bolorentas relações de causa-efeito, e insatisfeito apenas quando a função matemática não se ajusta claramente ao objecto animado.

Não me bastava já a prosaica relação de amor-ódio com o acaso, sempre disposto a ironizar sobre o meu destino, fazendo-me ter do jogo o suave uso regular, para, nas derrotas sucessivas, acumular um crédito capaz de um dia me fazer proverbial justiça. Porque é verdade que não são notas que eu quero, e a música tem sido o meu salário de fome. O que esperava era um prémio de paciência, de consolação ou, eventualmente, de mérito estatístico.

E quando dou por mim, vejo nas mãos vazias um tremor repetido. Voltou como o ladrão ao local do crime onde alegremente se serviu. Desta vez encontrou-me com defesas que eu julgava intransponíveis. E derrubou em três tempos a minha perspicácia. Liquidou a minha intransigência e fez de mim um amável espantalho, disposto a vender a alma por um fio de luz.


Ivo Cação

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