domingo, julho 06, 2008

O Fim (parte 3)

É bom que não nos afastemos dos objectivos. Ficaria muito bem acabar isto com uma sessão solene de encerramento. A prática de anos leva-nos a acreditar que nada se acaba realmente sem um boa sessão de encerramento. O próprio nome parece mágico. Uma sessão de encerramento inclui sempre uma ceia, discursos, prendas aos melhores, aplausos para os piores, que também deram o seu melhor, brindes ao futuro e lágrimas. Difícil mesmo é dar por concluída a sessão de encerramento, esse momento mágico em que já não se pode voltar atrás. Tudo porque o tema do fim é inesgotável. Ao que parece a culpa é de Lavoisier, um francês que conseguia fazer ciência com um penteado absolutamente desconfortável. Mas tudo indica que foi o abuso de cabeleiras que o levou a descobrir que afinal nada se perdia e nada se criava. Depois disso o mundo nunca mais foi o mesmo. Também eu nunca mais fui o mesmo depois de ter sabido dessa descoberta do Lavoisier: os princípios de conservação dão cabo de quaisquer veleidades que tenhamos de ser criativos ou iconoclastas. É por isso que a maior parte das pessoas inventivas e/ou destrutivas se recusa terminantemente* a ter princípios. E os princípios não são uma coisa que tenha o menor interesse quando estamos no território simbólico do fim. Um humorista e um académico dizem exactamente o mesmo. A diferença está na pose. O humorista diz as coisas com ar sério para que a plateia se ria; o académico ri-se das próprias palavras para que a plateia se comova. Mergulhamos nos contrastes para dar a impressão que há acontecimentos. Porque a morte, o fim, é esse lugar onde não há acontecimentos, ocorrências que se distingam umas das outras. A maior parte das vezes a morte faz-se por classificação sucessiva. Definem-se cavidades para todos os objectos e a arrumação infinita de todas as coisas proporciona a ordem absoluta, a impossibilidade para a surpresa, logo a morte. Como é um trabalho complicado e demorado, morre-se antes, e a confusão classificativa vai permanecendo como possibilidade de vida eterna. O sol, por exemplo, esgotar-se-á quando se tiver transformado completamente em hélio: não quero estar cá para ver. Tirando isso, estou bem. De um ponto de vista meramente factual - e sabemos como os factos raramente são factos - o fim acontece depois de todos os outros acontecimentos. Parece evidente mas não é, embora este não seja o local para demonstrar porquê. Lembro-me das aulas de matemática em que se referia o professor fulano de tal - não me lembro mesmo, senão diria o nome - como alguém que na sua exposição da matéria nunca deixava um teorema por demonstrar. Não me parece que esse seja o melhor modelo de passar a informação. Presume que o conhecimento é uma forma linear de construção, como quem diz que sobre este conceito que já conheço vou construir outro conceito e assim sucessivamente. Voltamos atrás, ao indemonstrável, e vemos como esta é a estrutura da morte: a hiper-classificação. Por isso me recuso a que todo o futuro se demonstre no passado: há sempre algum passado que se demonstrará no futuro. Temos de ter em conta que o futuro conta tão pouco como o passado para o que conta no presente. Às vezes, para parecer bem, inventam-se teorias que propõem relações de causa-efeito entre o zero e o infinito. Trata-se de puro entretenimento. A maioria das profissões são isso mesmo: entretenimento. O objectivo prioritário de um governo não é, nem pode ser, ter cidadãos felizes mas sim manter os cidadãos ocupados. Nem que seja a procurar ocupação. A contemplação não é bem aceite pelas populações que, em geral, consideram um olhar perdido no vazio a exibição mais acabada da preguiça. O facto é que as pessoas que fazem trabalho realmente necessário são muito poucas. De um ponto de vista objectivo a maioria das profissões são puras ocupações de tempos livres. É que se todos produzíssemos coisas úteis enquanto trabalhamos, em pouco tempo elas se tornariam inúteis pelo excesso. Suponho que esta última frase justifica este texto.


* A recusa parecia ser uma coisa que tinha a ver com dizer não. E 'não' teria a ver com o contrário de 'sim'. Assim sendo, alguém que recuse é alguém que diz 'não' e que não faz ou não aceita aquilo que lhe é pedido ou lhe é dado. Ora, o uso recorrente da 'recusa terminante' parece mostrar que uma recusa que não seja terminante é uma recusazinha de fraca qualidade e que em pouco tempo se tornará numa aceitação. Como eu não quero que subsistam dúvidas sobre a qualidade desta recusa, acrescento o inevitável terminantemente para que não haja dúvidas.


Torcato Matos

1 comentário:

Mónica disse...

"Também eu nunca mais fui o mesmo depois de ter sabido dessa descoberta do Lavoisier: os princípios de conservação dão cabo de quaisquer veleidades que tenhamos de ser criativos ou iconoclastas" APRE!!!!!!!!!!!!!