domingo, julho 27, 2008

O Fim (parte 5)

Apesar da sua ambiguidade significante, o fim está sempre a acontecer. Diz-se, depois, como é que foi o fim, e fica na história quando há algo de notável na ocorrência. Confesso que sempre me causou alguma perplexidade o gosto de 'ficar na história'. Essa intenção de conferir à existência uma sobrevivência à morte da memória, não resiste a dez segundos de racionalidade nem a três segundos de emoção genuína. Por isso não consigo ver uma origem para esse desejo a não ser nas formas amorfas da patologia clínica. O que também não é de estranhar num universo humano que cultiva a doença como factor de desenvolvimento económico, de progresso e de selecção dos mais adaptáveis. Mas isto sou eu a desviar-me dos objectivos bem claros a que me propus ao escrever este epitáfio bloguístico. E por 'fim' entendo aqui o momento imediatamente antes de a forma antiga se dissipar. Tem sido difícil no correr destes dias assumir o fim como entidade clara e definitiva. Por que ao mesmo tempo que acaba uma coisa acabam também muitas outras coisas. E ainda que os níveis da ingenuidade sejam múltiplos, cada um que se quebra dá origem a uma angustiante surpresa sobre o mundo em que de facto vivemos. Parece que um fim chama outros, ou que, de repente, a temática do fim se instala e convoca todos os temas e lemas para uma discussão funerária sobre o ser e o ter, sobre a justiça e a indiferença, sobre a legalidade e a corrupção, sobre o medo e a ignorância, sobre a brutalidade e a compaixão. E já agora, sobre o amor e o despeito. O modelo de sucesso para a existência é, nestes nossos dias, a posse. Até aqui, neste exercício de semântica, não escapo de buscar algum entusiasmo na súbita posse de um local abandonado. Mas como todos sabemos, não são os locais abandonados que entusiasmam a posse: o que interessa a quem quer poder são os locais ocupados, levando a posse a ter o lugar e os que o habitam, numa escala hierárquica socialmente reconhecida e integrada. Para a posse ser efectiva e gratificante tem que trazer à mistura o sal humano, o sangue, a carne e o servilismo. De pouco adianta, nesta abordagem da existência, possuir o que não tem valor, e só tem valor o que é objecto de múltiplo desejo, de conflito, de inveja e de classificação. Um dos fins que descobri nos últimos tempos foi perceber que uma visão diferente desta, admitindo que existiu, já se finou. Globalmente a perspectiva da ganância é tão natural como a sua sede. Estranho é não querer. Estranho é não ambicionar saltos maiores e importância superior. É como se o registo genético que se foi acumulando por eliminação dos mais fracos, apurasse a raça inequívoca dos adoradores de ouro. No futuro deverá ser possível diagnosticar na primeira ecografia se o feto é ou não um potencial ambicioso. E, esse sim, será um factor consensual sobre o aborto terapêutico. Salvar o mundo de inadaptados é o grande desígnio dos próximos séculos. Claro que o ambicioso se quer ao mesmo tempo combativo, eficaz, eficiente e integrado. De nada serve um ambicioso que combata alarvemente o sistema, dando a entender que quer, não da forma que todos querem mas de uma forma diferente que ponha de parte a ambição consequente dos demais. Por que é sabido que a maior percentagem dos ambiciosos se terá de contentar com as migalhas dos ambiciosos maiores, ou mais bem sucedidos, ou mais bem colocados na grelha de partida. Há, portanto, ambição que chegue para todos mas não há recursos para tão grande distribuição. A escassez de recursos é, em si, um elemento reprodutor de ansiedade e, por consequência, o primeiro dos factores que isolaram no humano a necessidade de lutar por eles e usar de tácticas e estratégias para acumular para si o que puder tirar aos outros. Civilização seria, então, caminhar no sentido de recusar racionalmente a estratégia do confronto pré-histórico e, na posse do conhecimento, laborar para o equilíbrio da posse. Ah! Ah! Ah! Esta teve piada. Até eu me rio*. (continua... se calhar...)


* Na parte 4 referi que 'rio de flores' e algumas pessoas pensaram que me estava a referir ao novo treinador de um clube da primeira divisão. Acontece que não ligo nada a futebol e nem fazia ideia que havia flores a treinar. É pura e antiga alergia. Alergia pura.


Torcato Matos

quinta-feira, julho 10, 2008

O Fim (parte 4)

É meu desejo manter-me dentro da temática que interessa. Meu desejo e meu propósito. Talvez mais propósito que desejo. É que pode dar a impressão que esta dissertação não tem um projecto bem definido. E eu quero tudo menos dar impressões erradas que eventualmente levem a pensar em pensamentos desviantes. O tema, de um ponto de vista de profundidade, é a oportunidade - ou oportunismo - de nos equilibrarmos sobre os ombros de gigantes sem chegarmos a corar. Para todos os efeitos sou a favor. Mal seria se não fosse pois teria que renegar uma parte significativa da minha vida, eventualmente toda a parte significativa da minha vida. Mas não é este o lugar para apreciar esse pensamento e derivar dele as inúmeras consequências éticas e morais. Interessa, sim, não me afastar demasiado do que é importante. Quando nos propomos relatar ao mundo a verdade, só a verdade e nada mais do que a verdade, devemos analisar com muito cuidado toda a informação que passamos. Há quem diga que 'a verdade é só uma' o que faz dela uma espécie de cúmulo da raridade. Por muito que digamos que não há dois objectos iguais ou que dois grãos de areia nunca são iguais ou o que quer que seja do mesmo género, sabemos que para efeitos de classificação apenas olhamos para as características mais relevantes, deixando os pós e as teias de aranha para uma segunda oportunidade de classificação mais fina. É portanto, e aqui está um objectivo mais profundo, uma questão de 'zoom': olhamos de acordo com a lente que usamos. A mim basta-me uma verdade rudimentar, tipo pronto-a-vestir, eventualmente de marca branca sem nada de muito elaborado. Pessoas mais exigentes chegam a querer uma verdade com certificado ISO 9001, ou mesmo uma homologação por instituto credenciado. Não tenhamos ilusões: a maioria das verdades são fabricadas na China por jovens que trabalham 16 horas por dia sem direito a folga e que ficam muito felizes com o nível de vida que assim conseguem. Nenhum consumidor de verdade precisa, portanto, de sentir qualquer espécie de culpa, uma vez que está a contribuir largamente para o aumento da felicidade de uma significativa fracção da humanidade. São gestos destes que fazem do humanismo ocidental o mais ético e o mais bem sucedido da história: levamos a felicidade aos confins do universo. Reparem bem na potência ética de ser accionista de um poço de petróleo no Dubai. Sem sair da minha segura poltrona aqui na minha casa na zona de paisagem protegida da Serra de Sintra, escorre-me dinheiro para o bolso cada vez que um carregamento de nafta nauseabunda chega a uma fábrica de verdade nos arredores de Xangai, para fazer mover motores que ocupam e alegram centenas de jovens promissores de olhos em bico. Babo-me de vaidade desta imparável globalização que muito orgulhosamente iniciámos há mais de quinhentos anos. Mas isto sou eu a tentar dizer alguma coisa mais profunda que ainda não se revelou. Até deverá haver quem se ria do assunto. É esse um dos grande prazeres da humanidade e do humor, duas entidades criadas por Deus no mesmo dia. Por mim rio de flores. Isso mesmo. Pode ser do pólen. Uma reacção alérgica que me faz rir na presença de flores. Rio de flores, portanto. Embora se trate de uma vitória por falta de comparência, está a agradar-me a exclusividade que estou a ter por aqui. Dá um certo ar de propriedade. Um ar de posse. Uma parte significativa da felicidade passa pela posse. Seja lá do que for. Nem é muito condenável que me satisfaça com a posse de um blógue abandonado. O melhor é mesmo viver o dia que amanhã já a história será diferente.


Torcato Matos

domingo, julho 06, 2008

Pérolas (L)

Uma pérola de moral e bons costumes.

O Fim (parte 3)

É bom que não nos afastemos dos objectivos. Ficaria muito bem acabar isto com uma sessão solene de encerramento. A prática de anos leva-nos a acreditar que nada se acaba realmente sem um boa sessão de encerramento. O próprio nome parece mágico. Uma sessão de encerramento inclui sempre uma ceia, discursos, prendas aos melhores, aplausos para os piores, que também deram o seu melhor, brindes ao futuro e lágrimas. Difícil mesmo é dar por concluída a sessão de encerramento, esse momento mágico em que já não se pode voltar atrás. Tudo porque o tema do fim é inesgotável. Ao que parece a culpa é de Lavoisier, um francês que conseguia fazer ciência com um penteado absolutamente desconfortável. Mas tudo indica que foi o abuso de cabeleiras que o levou a descobrir que afinal nada se perdia e nada se criava. Depois disso o mundo nunca mais foi o mesmo. Também eu nunca mais fui o mesmo depois de ter sabido dessa descoberta do Lavoisier: os princípios de conservação dão cabo de quaisquer veleidades que tenhamos de ser criativos ou iconoclastas. É por isso que a maior parte das pessoas inventivas e/ou destrutivas se recusa terminantemente* a ter princípios. E os princípios não são uma coisa que tenha o menor interesse quando estamos no território simbólico do fim. Um humorista e um académico dizem exactamente o mesmo. A diferença está na pose. O humorista diz as coisas com ar sério para que a plateia se ria; o académico ri-se das próprias palavras para que a plateia se comova. Mergulhamos nos contrastes para dar a impressão que há acontecimentos. Porque a morte, o fim, é esse lugar onde não há acontecimentos, ocorrências que se distingam umas das outras. A maior parte das vezes a morte faz-se por classificação sucessiva. Definem-se cavidades para todos os objectos e a arrumação infinita de todas as coisas proporciona a ordem absoluta, a impossibilidade para a surpresa, logo a morte. Como é um trabalho complicado e demorado, morre-se antes, e a confusão classificativa vai permanecendo como possibilidade de vida eterna. O sol, por exemplo, esgotar-se-á quando se tiver transformado completamente em hélio: não quero estar cá para ver. Tirando isso, estou bem. De um ponto de vista meramente factual - e sabemos como os factos raramente são factos - o fim acontece depois de todos os outros acontecimentos. Parece evidente mas não é, embora este não seja o local para demonstrar porquê. Lembro-me das aulas de matemática em que se referia o professor fulano de tal - não me lembro mesmo, senão diria o nome - como alguém que na sua exposição da matéria nunca deixava um teorema por demonstrar. Não me parece que esse seja o melhor modelo de passar a informação. Presume que o conhecimento é uma forma linear de construção, como quem diz que sobre este conceito que já conheço vou construir outro conceito e assim sucessivamente. Voltamos atrás, ao indemonstrável, e vemos como esta é a estrutura da morte: a hiper-classificação. Por isso me recuso a que todo o futuro se demonstre no passado: há sempre algum passado que se demonstrará no futuro. Temos de ter em conta que o futuro conta tão pouco como o passado para o que conta no presente. Às vezes, para parecer bem, inventam-se teorias que propõem relações de causa-efeito entre o zero e o infinito. Trata-se de puro entretenimento. A maioria das profissões são isso mesmo: entretenimento. O objectivo prioritário de um governo não é, nem pode ser, ter cidadãos felizes mas sim manter os cidadãos ocupados. Nem que seja a procurar ocupação. A contemplação não é bem aceite pelas populações que, em geral, consideram um olhar perdido no vazio a exibição mais acabada da preguiça. O facto é que as pessoas que fazem trabalho realmente necessário são muito poucas. De um ponto de vista objectivo a maioria das profissões são puras ocupações de tempos livres. É que se todos produzíssemos coisas úteis enquanto trabalhamos, em pouco tempo elas se tornariam inúteis pelo excesso. Suponho que esta última frase justifica este texto.


* A recusa parecia ser uma coisa que tinha a ver com dizer não. E 'não' teria a ver com o contrário de 'sim'. Assim sendo, alguém que recuse é alguém que diz 'não' e que não faz ou não aceita aquilo que lhe é pedido ou lhe é dado. Ora, o uso recorrente da 'recusa terminante' parece mostrar que uma recusa que não seja terminante é uma recusazinha de fraca qualidade e que em pouco tempo se tornará numa aceitação. Como eu não quero que subsistam dúvidas sobre a qualidade desta recusa, acrescento o inevitável terminantemente para que não haja dúvidas.


Torcato Matos

sexta-feira, julho 04, 2008

O Fim (parte 2)

Hoje fui a Lisboa. Uma reunião de trabalho. Andei uns minutos pela cidade morta e tive uma sensação estrangeira. Como se já não fizesse parte desta terra. É curioso como em tão poucos meses houve tantos afectos que morreram. Uma hecatombe. Uma guerra do Iraque. Primeiro os mais fracos, depois os mais fortes (ou o contrário) nada sobrevive. A simplicidade específica da morte. Passo na banca dos jornais e não reconheço aquelas letras gordas, nem percebo as notícias, nem as quantidades desumanas de tralha que os ardinas são obrigados a vender em vez de jornais e revistas. Já me aconteceu estar noutro estrangeiro com menos estranheza. Apetecia-me dizer que Lisboa era agora diferente por se ter tornado igual. Mas o problema sou eu: saí para fora cá dentro e já não consigo voltar. Tem o seu quê de bom: há a hipótese de me surpreender com alguma novidade. A única coisa que interessa, em Lisboa ou em qualquer lado, é o progresso do caos. A desagregação da informação em forma de ilegibilidade de maneira a que ninguém possa referir caminhos que desconhece. Por mim, caio por falta de sentido prático. Não me interessa a ordem a não ser como antecedente do desastre; alinhar antes de destroçar. Como na vida, como nos afectos, como no amor e nos negócios, em que a cada vitória correspondem inúmeras derrotas. E tudo isto para nada que é o que o instante significa no desalinhamento dos desejos. Já não me importa o que possa ser uma dor desconhecida. Todo o homem tem esse mérito inegável de servir avidamente o sofrimento como refeição de luxo. É uma questão prática que se dilui no vazio descritível da indiferença*. De repente, sem que nada o previsse, vejo-me contestatário. Uma luta de classe. Eu contra o mundo inteiro, desligado de todos os agrupamentos de felicidade programada. O indivíduo, sendo indivíduo, aproxima, com o seu gesto desordenado, o universo do caos. Sozinho, o indivíduo - e o indivíduo tem que começar por ser sozinho - é um gerador automático de caos, de desordem, e, paradoxalmente, de complexidade. Parece que se mudaram para Nova York todos os génios do mundo. É de lá que vêm as ideias primas acerca do universo e da moda, dos pesadelos de elite e das ideias que devem ser as ideias de cada tempo. Assusta-me saber que todos os dias são publicadas milhares de novas ideias novas que ficam a lutar umas com as outras, mergulhadas no ruído infernal dos estádios, à espera de atenção, de aplauso e de inveja. O único pecado que me lembro ter alguma vez cometido foi ter lido durante anos a revista do expresso editada pelo VJS. Raramente percebia o que lá vinha escrito - mesmo quando explicavam - mas considerava que aquela penitência, como é próprio das penitências, haveria de dar frutos. Quando morrer hei-de dizer a Deus que se tratava de pura solidariedade auditiva - também eu ouço mal - e talvez ele me poupe a uma pena muito severa. Até porque depois passei a ler o público, que não era bem um jornal diário mas um semanário distribuído em sete fascículos - não havia saco plástico em que aquilo coubesse tudo de uma vez -, reincidindo num pecado grave. Aqui apenas me posso defender com o gosto pelo Calvin e Hobbes. Malditos jornais que nos querem fazer crer que somos elementos pertencentes a uma sociedade activa e preocupada. Preocupada sim, activa não. Uma sociedade activa não consegue ler jornais que falem mais do que umas linhas sobre o último grande assassínio ou sobre a última incompetência do governo. E como se pode ver por este texto, tal como nos jornais, é fácil encher uma série de linhas com tretas. (continua... se calhar...)


* Esta frase dava um óptimo título para um livro do José Gil. Ou de outro qualquer autor de formação francófona. É fantástico como se podem alinhar uma série de palavras sem obter o mínimo de sentido. Chama-se a isto estilo fechado. Se alguém conseguir perceber o que a frase quer dizer ofereço-lhe um livro da Laurinda Alves à escolha desde que seja o Xis. Eu, que escrevi a frase há dois dias, não consigo lá chegar.

Torcato Matos