domingo, outubro 09, 2005

A Saphira

Et in Arcadia ego. Não, não sei latim. Ficou-me esta frase de há muitos anos quando revivia o passado em Brideshead. Sem propriedade, diga-se. Aconteceu apenas porque me lembrei de Saphira. E a memória é sempre uma feiticeira boa que vem em auxílio de quem já não sabe sair do estreito caminho da evidência.

Saphira esteve comigo no lugar que primeiro defini como meu. Filho único, avesso ao encontro fortuito com a realidade rude e agreste, encontrei em Saphira a companheira, que não sendo capaz de distinguir entre a aventura e a conveniência, me levava para os espaços ocultos onde eram possíveis os devaneios.

À distância, fica a dúvida se a felicidade da memória não é um duro texto de reclusão ornamentado por Saphira na sua proverbial bonomia e poderosa coragem. Lembro-me das palavras de Sartre e já não sei se são dele ou minhas, se Saphira as trouxe a mim e me repuxou o olhar estrábico para parecer um neto de doutor que passou a infância a ler.

É mentira. Na infância eu plantei uma nespereira. Enterrei o cinto do meu pai no quintal e enchi o pátio de guerras horríveis em que ganhavam sempre os bons. Saphira ao meu lado, olhos brilhantes, tentadores, sorriso eterno, incentivador, murmúrios nos lábios como o tal anjo-da-guarda que nunca cheguei a ver.

Agora já cá não estão na casa os coelhos e as galinhas que cantavam os ovos novos. A distância do quintal também já não é imensa e a pasta da escola, quando ainda era desejada, já não tem aquele cheiro a novo que parecia definir o outono.

Há as marcas do corpo. Na dobra da perna a cicatriz de um dardo metálico do portão que servia de baloiço; ao pé do joelho o furo de um pauzinho chinês que, afiado, serviu de punhal para desbravar a floresta das traseiras; e as falhas de cabelo, dos galos, quando a cabeça absorvia os choques.

E há as outras marcas. Marcas desviadas de qualquer propósito que não o de reservar para cada momento um encontro completo com Saphira. Não havia fadas, não havia gnomos, mas havia já heróis da televisão. Dois revólveres, um chapéu negro, um lenço da mãe ao pescoço e muitos fora-de-lei para matar e prender. Ainda não sabia mas era um Cartwright de pleno direito. Transportava-me a cavalo, alinhando o passo pelas marcas negras do chão, dançando com a elegância que via nas cerimónias iniciais das touradas.

Li, em tempos, ao lado de Saphira, que os lugares e as coisas guardam, nos interstícios aparentemente vazios dos átomos, todos os acontecimentos em que intervieram e que, se prestarmos a devida atenção, eles nos devolvem essas imagens acrescidas da ternura própria de quem é eterno. Não sei se é assim porque o tempo me tornou surdo às coisas demasiado pequenas e a visão passou a deliciar-se apenas com o que reconhece.

Mas não mudou tudo: Saphira ainda anda por aí.



Ivo Cação

1 comentário:

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

Muito obrigada por este texto!:))

deixo-te um beijo grande