A Chris continua por cá e parece que se instalou para ficar. A casa estava um caos quando cheguei. Resolveu começar a escrever um guião para um programa de televisão e por isso, diz ela, não tem tido tempo para manter a casa limpa e arrumada. Sonha ser uma mulher famosa e acha que a TV é o veículo apropriado. Eu aceno que sim, que ela faz muito bem em estar entretida, não acreditando que a ideia dela alguma vez seja aprovada. O programa vai chamar-se 'Vomitorium' e é um concurso em que o vencedor é o concorrente que conseguir maior quantidade de vomitado do júri.
Consolam-me as memórias das férias. Passei algum tempo com a Pathricia. Uns dias, poucos. Ela continua a não ser capaz de estar muito tempo no mesmo lugar. E eu a ter cada vez menos vontade de me mover.
Entre qualquer fim e qualquer princípio, entre qualquer prólogo e qualquer epílogo, entre qualquer pensamento e qualquer realização está sempre Pathricia. Conheci-a tarde, demasiado tarde como se costuma dizer. Não por culpa minha ou por culpa dela mas, como se costuma dizer também, por causa das circunstâncias. As circunstâncias. É difícil descrever as circunstâncias em que conheci Pathricia. Por isso o melhor é omiti-las, como ela própria faria por ser mais sensível aos ambientes e à passagem das nuvens do que à aparente fixidez das estrelas.
Se pudesse, assim num pequeno gesto de magia, reeditar as ocasiões em que sem me dar conta disso - sem medir o tempo nem o horário, sem pensar nem quase sentir, sem pesar nem quase respirar - sonhei a perfeição do ser, teria que ser com Pathricia. Foi ela que me revelou o estado inerte de tudo o que não se move; que me levou a perceber o voo como essência do existir e como ocasião da vontade. Com ela tudo está onde já não está; tudo se muda do momento para o momento seguinte, pouco antes de se estar a atingir o lugar do desejo. Em Pathricia todas as fases estão desfasadas, todo o tempo é assíncrono, toda a verdade é opinião, todo o sentido é ilusão.
Um dia, quando por qualquer razão me conseguir libertar destas pequenas, mínimas, miseráveis ligações que agarram os pés à terra que desconhecem; quando vir em cada pequeno pormenor do percurso um gigantesco emissor de júbilo; quando num curto gesto, ao passar a mão em afago sobre a parede fria sentir um tremor especial de milhares de efervescentes motivos de alegria, estarei apto a acompanhar Pathricia em permanência, na sua feliz deambulação eterna à procura de lugar nenhum.
Ivo Cação
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