sexta-feira, novembro 04, 2005

A Pathricia

Só este ano percebi porque é que odeio as férias. Muito simples: porque há o regresso. Noutras férias nem tenho saído de casa mas este ano aproveitei para me livrar da Chris durante umas semanas. Foi bom de mais não fora este retorno doloroso. No ano de Einstein, é nestas pequenas coisas que se descobre a relatividade. Se eu não gozar férias não tenho a sensação trágica do regresso à realidade.

A Chris continua por cá e parece que se instalou para ficar. A casa estava um caos quando cheguei. Resolveu começar a escrever um guião para um programa de televisão e por isso, diz ela, não tem tido tempo para manter a casa limpa e arrumada. Sonha ser uma mulher famosa e acha que a TV é o veículo apropriado. Eu aceno que sim, que ela faz muito bem em estar entretida, não acreditando que a ideia dela alguma vez seja aprovada. O programa vai chamar-se 'Vomitorium' e é um concurso em que o vencedor é o concorrente que conseguir maior quantidade de vomitado do júri.

Consolam-me as memórias das férias. Passei algum tempo com a Pathricia. Uns dias, poucos. Ela continua a não ser capaz de estar muito tempo no mesmo lugar. E eu a ter cada vez menos vontade de me mover.

Entre qualquer fim e qualquer princípio, entre qualquer prólogo e qualquer epílogo, entre qualquer pensamento e qualquer realização está sempre Pathricia. Conheci-a tarde, demasiado tarde como se costuma dizer. Não por culpa minha ou por culpa dela mas, como se costuma dizer também, por causa das circunstâncias. As circunstâncias. É difícil descrever as circunstâncias em que conheci Pathricia. Por isso o melhor é omiti-las, como ela própria faria por ser mais sensível aos ambientes e à passagem das nuvens do que à aparente fixidez das estrelas.

Se pudesse, assim num pequeno gesto de magia, reeditar as ocasiões em que sem me dar conta disso - sem medir o tempo nem o horário, sem pensar nem quase sentir, sem pesar nem quase respirar - sonhei a perfeição do ser, teria que ser com Pathricia. Foi ela que me revelou o estado inerte de tudo o que não se move; que me levou a perceber o voo como essência do existir e como ocasião da vontade. Com ela tudo está onde já não está; tudo se muda do momento para o momento seguinte, pouco antes de se estar a atingir o lugar do desejo. Em Pathricia todas as fases estão desfasadas, todo o tempo é assíncrono, toda a verdade é opinião, todo o sentido é ilusão.

Um dia, quando por qualquer razão me conseguir libertar destas pequenas, mínimas, miseráveis ligações que agarram os pés à terra que desconhecem; quando vir em cada pequeno pormenor do percurso um gigantesco emissor de júbilo; quando num curto gesto, ao passar a mão em afago sobre a parede fria sentir um tremor especial de milhares de efervescentes motivos de alegria, estarei apto a acompanhar Pathricia em permanência, na sua feliz deambulação eterna à procura de lugar nenhum.


Ivo Cação

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