terça-feira, janeiro 31, 2006

Indeterminação

Quando escrevemos uma frase esperamos que ela seja a última.
Sabemos por isso, por essa espera, que não será a última.
A frase que esperávamos fosse a última, e ao escrevê-la, naquele preciso instante mágico em que ela surge do nada é mesmo a última, parece não o querer ser.

Digo que esperamos querendo dizer uma espera muito particular, muito individual.
Eu com a minha frase; a minha última frase; a frase definitiva.

Suspeito haver neste processo de escrita da derradeira frase um desvio de intenções.
Anos depois, muitos anos depois, dou-me conta ainda do fracasso de acreditar.
Culpem a memória; culpo a memória; culpo.
Suspeito de suspeitos e culpo uma culpa mas não sei o que os une.

Depois da última frase, da tal, surge, do mesmo nada, outra frase.
Cada frase é, na sua essência exactamente igual à anterior mesmo que teimem em dizer coisas diferentes ou mesmo opostas.

Há um agente infiltrado.
Há alguém, em mim ou noutro lugar qualquer, que não quer que a última frase seja mesmo a última.
Há alguém, aqui ou a distância significativa, que não gosta da ideia de última frase.
Há alguém, agora ou no futuro, que teima em não esquecer.

Faria com prazer o retrato 'robot' desta personagem usurpadora de ilusões.
Mas vou passar sobre esse aspecto prazenteiro e ater-me aos factos.
Porque é que tão dedicadamente procuramos ilusões?
Quando digo nós é uma maneira de falar, porque é de mim que se trata.

Antes o mundo era muito mais claro.
Eu não estava cá para ver, mas assim à distância, no tempo e no espaço, é claro que o mundo era claro.
Sabíamos quem eram os bons e quem eram os maus.
Sabíamos o que era realidade e o que era ficção.
Sabíamos olhar para o lado e ver imediatamente onde estávamos, que nome as coisas tinham, e as vozes, todas as vozes eram audíveis.
Sabíamos então que, mais tarde ou mais cedo, o mundo além de claro haveria de ser compreensível.

Quando escrevo uma frase espero que ela seja a última.
Agora que me falam de infinito e que parece que não sabemos de que falamos se não falarmos de infinito, não consigo ter a certeza de que uma frase será a última.

Há dias, talvez pelo frio exagerado que não me deixava mover as mãos sobre o teclado plástico, nem pegar na esferográfica gelada, tive tempo para pensar e concluir que, como todos os outros, padeço da doença da comparação.

Sísifo

quinta-feira, janeiro 26, 2006

Brainstorm

Hoje tinha uma proposta para brincarmos. Brincávamos como se fôssemos pessoas crescidas. Eu fingia, tu fingias, nós fingíamos... Eu sei que não é a mesma coisa porque quando eu finjo que finjo, é como se já fosse eu outra vez e tu, quando finges, e finges muito bem, ficas outra pessoa que, se finge, ainda fica mais outra pessoa.

O meu fingimento é binário. Oscilo entre dois lugares opostos e discretos. Tu, no teu fingimento, multiplicas a tua multiplicação por estados que parecem não acabar e me deixam perplexo na singularidade dos meus dois lugares comuns.

Mas também podíamos fingir que ainda éramos crianças e fingir então que éramos adultos, e talvez assim a brincadeira já resultasse. Era mais fácil. Não tínhamos que inventar personagens complicadas, porque como crianças não tínhamos que saber exactamente como eram os adultos e, por isso, não tínhamos que complicar.

Agora íamos ser adultos que brincavam a ser crianças para então brincarem de adultos que tinham filhos crianças e as compreendiam por serem como elas, embora não fossem como elas a não ser porque fingiam que eram adultos.

Não. Não digas que é complicado. Tu às vezes finges tão bem que és criança. Outras finges que és adulto, outras que és velho. Sabes fingir todas essas idades e sair a correr delas como se fossem tuas e as não quisesses.

Agora não era suposto que chorasses. Não sei o que finges quando choras. Sabes que esse teu fingimento incomoda. Estás mesmo a sentir? E quem é que está a sentir? És a criança ou já és o adulto que a criança está a fingir que é? Não te percebo.

Queres brincar ou não? Tínhamos combinado - ontem lembras-te? - que hoje brincaríamos. Chegávamos do trabalho e brincaríamos. Mas depois tu telefonaste e disseste que preferias passar o dia a brincar em vez de ir trabalhar. Embora para ti o trabalho seja uma brincadeira. Nem percebo se estavas a fingir quando me telefonaste. Nem sei quem eras quando me telefonaste.

Eu confesso que hoje não me apetecia brincar. Fingi que me apetecia para não te desagradar. Mas agora percebo que a ti também não te apetecia. Também fingiste.

Então afinal estamos aqui os dois a fingir que fingimos que queremos brincar. E eu não sei se o teu choro é fingido ou se finges que não é um choro fingido. Eu finjo, tu finges, nós fingimos...

Não. Agora não sei como voltar a pegar em mim e ser eu. Preciso de algum tempo para pensar em quem não é a personagem. Suponho que há alguém aqui que não é uma personagem. E se houver hei-de descobri-la.

Prólogo

terça-feira, janeiro 24, 2006

Posttrês

Tinha-te dito, sem segundas intenções, que as tuas palavras tinham um certo fogo que as tornava ao mesmo tempo apetecíveis e perigosas. Percebeste, parece-me a mim que percebeste, que eu tinha alguma coisa escondida contra as tuas palavras, mas hesitava em ser claro, hesitava em dizer coisas que te parecia a ti que eu tinha para dizer e que eu não dizia por pensar que com elas te iria magoar.

Digo parece-me, e faço-o por redundância, porque o que digo é o que me parece e outra coisa não seria de esperar.

Pensei que agora poderia dizer exactamente o que te queria dizer quando te disse que as tuas palavras tinham um certo fogo que as tornava ao mesmo tempo apetecíveis e perigosas. Mas fazê-lo, agora, seria reconhecer que quando o disse tinha outra coisa para dizer. E não o tinha. Ou, se quiseres, parece-me que não o tinha.

O que quer que possa dizer agora, sobre o que disse ou sobre outra coisa qualquer, é um remendo sobre um rasgão que não sei de onde veio.

Eu sei que poderia tentar. Poderia tentar dizer a mesma coisa por outras palavras. Como se tivesse que explicar um conceito difícil e para isso usasse de analogias, comparações, metáforas, imitações que ficam no lugar onde estava outra coisa como se fossem ela, não sendo ela e não sendo já senão o esforço de reconstruir ou segurar de pé uma ruína que morreu.

Fico a pensar que já havia alguma coisa antes das minhas palavras. Talvez já houvesse mesmo qualquer coisa antes das tuas palavras.

Um esforço que eu fizesse para traduzir o que te disse, ou o simples dizer que não queria dizer outra coisa senão o que disse, parece levar-te a pensar que, outra vez, por detrás das minhas palavras, ditas sobre as tuas palavras, em consequência de ter sentido, estava uma intenção oculta que nem tu descobres, nem eu, do teu ponto de vista, quero dizer.

Seria melhor se eu tivesse dito que as tuas palavras eram belas. Não é mentira. Mas não percebo porque é que agora digo que 'seria melhor' se disse naquele momento as palavras que eram as palavras daquele momento. E o que quer dizer 'seria melhor'? A que 'melhor' me refiro? Dizer que as tuas palavras eram belas terá menor probabilidade de ter segundas intenções? E porque seria 'melhor' dizer essas palavras menos prováveis?

Não adianta. Nunca saberei conviver com a morte.

Aibieme

segunda-feira, janeiro 23, 2006

E733

Manhã de domingo. Sol na rádio para o dia todo. Vejamos. Não. O meteorologista não passou por aqui. A barba hoje descansa para que o domingo o seja mesmo. Quase ao fim da manhã o nevoeiro dissolve-se e o sol leva-me para a rua. Há movimento a mais para um domingo. O meu café está fechado para obras e por isso o jornal fica à espera com as notícias que já não são frescas.
Hoje é perigoso andar na rua. Há carros que não é costume andarem por aí e os condutores não sabem que as ruas que há trinta anos tinham dois sentidos agora têm só um; e outras mudaram de sentido. Ouço som de ambulâncias mas não deve ser por causa disso.
Entro na escola primária é quase meio-dia. À porta cheirava a farturas e uma bombeira adolescente tentou colar-me a uma etiqueta de marca. Recusei enquanto procurava no edital o 'E733'. Penso sempre o meu número como um conservante cancerígeno. Um dia tiram-me da lista. Sala 20. Aqui já não cheira a farturas. Cheira a uma mistura de mofo com naftalina. Há uma bicha para respeitar. Sinto-me intruso numa sala com desenhos espalhados pelas paredes: intimidades de escola. Noutros dias aquela sala tem outros cheiros. Hoje entrou o mofo e a naftalina. Cada pessoa demora muito a pôr a sua cruzinha. No totoloto o quadrado é menor mas é uma prática semanal. Aqui têm medo de se enganar e mesmo depois de dobrado o voto, olham de novo para ver se ainda lá está. A entrega à entediada presidente da mesa parece mesmo o depósito de um ente-querido.
Ponho a cruz no Alegre. Por uma vez. Mais logo os especialistas vão tecer um número interminável de considerações sobre o meu acto de pôr a cruz no Alegre. Embora nem nestas coisas a minha opinião tenha peso, devo dizer que fiz aquilo que se faz quando se tem que escolher uma coisa de entre outras: optei. Escolhi o que dentre aqueles achei melhor ou, o que dá no mesmo, o que achei menos mau. Apenas isso. E a minha intenção era que o Alegre fosse o presidente. Escusam de perder tempo a pensar nas inúmeras outras intenções que eu tinha escondidas na manga.
Desta vez saio e ignoro o cheiro das farturas. Há uns anos arrisquei e fiquei com azia.
Da capela os votantes vêm para a escola e por momentos o cheiro a mofo e naftalina sobrepõe-se às farturas. Hoje saíram à rua rostos lívidos que a revolução assustou. Vêm agora mobilizados por uma oportunidade equívoca de voltar atrás. Procuram uma abstracta linhagem de pureza, clausura, ordem e mistério que encaixou como luva no perfil hirto e dogmático que agora escolhem.
A adolescente dos bombeiros pediu reforços e consegue auto-colar bastante gente. Em Bagdad os votantes reconhecem-se pelos dedos sujos de tinta; aqui pelo autocolante dos bombeiros. Há certamente um grupo de pressão que faz com que os dias de eleições sejam sempre ao domingo. Talvez por isso o voto mantenha este ar sacralizado e me apeteça pensar que podia ser diferente. Quase tudo podia ser diferente desta apologia da tristeza.

Zumbido

sexta-feira, janeiro 20, 2006

Fluidos

Às vezes acontece-me acreditar.
São pequenos instantes, lapsos de tempo em que há um adormecimento qualquer da razão.

Proponho a química como explicação.
Uma intersecção improvável dos fluidos corporais leva a razão a baixar os braços, a desistir de ser.

Mas também pode ser o tempo.
Porque o tempo move-se aos saltos, não é um fluido contínuo.
Na linguagem dos físicos o tempo está quantificado.
Um 'quanta' de tempo, um 'cronão' - porque não? - há-de ser essa entidade minúscula, quantidade granular que vai passando - ela sim - pela ampulheta magnífica do instante.

E os grânulos do tempo não são todos iguais.
Alguns aparecem na engrenagem com dimensão tal que da fluidez fazem turbulência e da fé um estado estacionário.

Há quem garanta, por experiência própria, que as ocasiões de crença, muitas ou poucas, resultam do medo.
Mas são pessoas que resolvem tudo com o medo.
Contabilizam os estados de inquietação com teorias da ameaça e recuam para locais abrigados, para o fundo encoberto das cavernas.

Às vezes acontece-me acreditar.
E confesso que sabe bem.
Do rosto ausenta-se, nesses instantes, a contracção aborrecida da desconfiança.
Os braços levantam-se como se soubessem dançar.
Os pés ficam absurdamente ávidos de longas distâncias e saltos muito vivos.
O coração adormece os seus impulsos assassinos.

Mas não tem lógica nenhuma.
Não, não tem lógica nenhuma.

Sísifo


quinta-feira, janeiro 12, 2006

Postdois

Cada dia antigo ou dos que vêm a seguir a este que agora é, passo sobre os efeitos pouco edificantes de olhar para o lado e me parecer que o horizonte se tornou baço. Dizes, tens dito repetidas vezes, que o passo que se pode dar no instante que se vive é o mais importante; que o olhar para trás é, num sentido lato, uma derrota ou um hiato na marcação do tempo; que antecipar, guardar recursos na despensa dos afectos, é trocar uma loucura por outra.

Não sei ainda que opinião posso dizer de ti. Eu sei que passaram anos, que o tempo deveria ter sido suficiente para eu deixar de te sonhar apenas, e dar-te consistência, corpo, sobriedade. Há em todos os actos uma lógica - gosto de pensar assim - e se não vejo a lógica, se parece faltar sentido, isso é apenas por ainda não ter chegado lá.

Está bem, eu tinha dito há muitos anos, com a certeza que tinha na altura, que tu eras isto e eras aquilo e que isso me bastava. Mas tu, como eu - como essas coisas todas que andam por aí e dizem que são - és um alvo em movimento. Quando já construí a tua nova máscara, sobe de estranhas profundidades um novo traço que desvia o olhar e apaga tudo o resto. E eu?

É possível. É possível que também comigo ocorram os mesmo movimentos telúricos. É possível que em cada manhã o rosto tenha mais um risco e o meu salto mortal tenha uma nova variante. Mas sabes que esses rodopios sou eu. Eu digo sempre antes de saltar: olha este movimento; olha este pormenor.

Concordo, não é só isso. Haverá coisas que tu vês e que eu não vejo. Mas podem ser os teus olhos. Pode ser o não estares na mesma posição de ontem que te leva a ver-me de uma maneira que não é a mesma de ontem. O sistema tem muitas variáveis.

Há muita violência no choque entre dois comboios que caminham a grande velocidade um contra o outro. A física explica isso pela adição das velocidades. Gosto do sinal mais. Gosto da soma e de somar a mais b e ver ambos a diluirem-se num novo e diferente c.

Hoje o meu filho falou-me de ter aprendido que a adição não tem elemento absorvente.

Ainda é muito cedo para ele saber a verdade toda.

Aibieme

terça-feira, janeiro 10, 2006

Miragem



De um desafio de Tozé


Tozé, tenho que reconhecer que esta foto não me diz nada. Um velho e uma criança na areia de uma praia, desenhando ao mesmo tempo um futuro e um passado, ambos errados, ambos querendo acima de tudo brincar. Pois, não me diz nada a fotografia.

Talvez o desenho, sobre a areia, de geografias novas. Talvez uma ocasião exacta em que alguém ainda ensina e alguém ainda aprende. Talvez uma magia que prende o olhar orgânico mas não engana a máquina. Talvez o vazio do ser, subitamente preenchido por um milagre.

Não, não me diz nada.

Porque se quisermos ver a imagem com uma certa frieza, e os tempos são propícios a não nos lembrarmos do calor próprio das coisas, areais imensos, anos acumulados e expectativas é o que mais há por aí. E sabemos como tudo isso é vão, deslavado, irreal.

O que eu vejo nesta fotografia, embora possa estar completamente enganado, é um olhar que parece querer trespassar o mundo com uma atenção que me comove. Porque há esta questão que, talvez erradamente, me parece esquecida: atrás da zona luminosa que atrevidamente é captada, roubada portanto da realidade instantânea que o tempo permite, está um olhar.

E hoje, ao olhar para esta foto que no sentido directo não me diz nada, não pude deixar de me colocar no lá atrás onde, no difícil papel de ausente que se perde sempre e se esquece e se reduz, pode ser referido um acaso, uma oportunidade, um rasgo, enfim alguém que no momento exacto que a memória reteve soube carregar no botão do sentido.

E por isso é estranho que uma imagem limpa e límpida a que recusei audácia, traga afinal uma carga de beleza e reflexo que põe na objectiva um pensamento e no obturador o sentir.

Talvez eu esteja enganado. Talvez não passe de uma miragem.


segunda-feira, janeiro 09, 2006

Indicador

Tenho sempre que voltar atrás.
O objectivo é encontrar a causa de todas as coisas ou pelo menos de algumas delas.
Quando parece que o modelo se completa ocorre uma brecha e a consistência, a divina coerência, perde-se, dilui-se, cai.

Recorre-se então aos exemplos impossíveis e justifica-se o injustificável com evidências e aforismos.

Prefiro voltar atrás.
Recomeço, reinicio, reinvento, resumo.

Não é bom o sentimento de piedade. É apenas piedoso.
A piedade é a fraqueza na sua máxima força.
A lágrima pende fácil e contorna o olho procurando um lugar onde se aconchegar numa pena que não doa mais do que um ligeiro olhar para o passado.
A lágrima manda, ordena o mundo e espera sempre que outra lágrima a siga.
A lágrima tem a sua própria genealogia e engendra sempre uma prole numerosa e entusiástica.

Hoje, agora, nestes dias que passam sonâmbulos e formidáveis a piedade escreve-se em dígitos grandes e pode ser comprada e comparada em formas digitais.
Pegando num cérebro humano, desses muitos que há por aí dispersos, usando as mãos de maneira hábil, comprimindo aqui, soltando ali, umas pancadinhas, um ligeiro aliviar da pressão, um polegar raspando levemente a pálpebra e um indicador que suavemente massaja o lóbulo da orelha, consegue-se com relativa facilidade que ele verta uma vasta torrente de lágrimas.
De idêntica forma se faz rir.
E não são muito diferentes as maneiras de fazer sonhar, vomitar, lutar, gritar, parecer…

Diferente é fazer ser e pensar.

Pode então chorar-se com o mesmo desvelo o herói, o mártir, o pai, o irmão, o assassino, o deus, o mendigo, o tirano, o déspota, o santo, o ladrão, o louco, o sábio, o devasso e o honesto.
Pode gemer-se com a mesma intensidade um membro quebrado, o estômago vazio, o campo queimado, o corpo leproso, a falta de rede, o café pouco quente, o sapato novo apertado e a queda na bolsa.

A piedade não é um bom indicador económico.

Du Sísifo

segunda-feira, janeiro 02, 2006

Um poste como deve ser


Du Nitrato

domingo, janeiro 01, 2006

Morra o d'antes, morra! Pim!

Agora que chegou ao fim o fim do fim do ano e que o fim do fim do princípio do ano também se aproxima, é a altura certa para tomar a decisão de adiar a tomada de decisões importantes.

Por princípio nunca começo as coisas pelo princípio e nesta altura em que, digamos assim, o campeonato já vai a meio, é um risco arriscar começar o que quer que seja.

Partamos, portanto, da elementar verdade de que aquilo que não for começado não corre o risco de não ser terminado e sobre isso construamos uma nova ordem mundial.

Cada decisão que tomamos é errada. Garantidamente errada. Mais tarde ou mais cedo.

Mesmo assim, por inerência de uma certa inércia que terá vindo do início dos tempos - uma evidente decisão errada - gerou-se uma necessidade incontrolável de tomar decisões, gerando com elas novas necessidades de tomar decisões e assim sucessivamente.

Há, nitidamente, uma grande dificuldade em a realidade ter verosimilhança. Suponho que é um problema que ocorre a qualquer prosador e ainda mais ao prosador que tenha a veleidade de - por razões certamente inconfessáveis - querer ser lido. Mas para a realidade, que em tempos teve, pelo menos por inerência de cargo, a responsabilidade de ser autêntica, a falta de verosimilhança impede aquilo que se chama a realização de um contrato com o leitor.

Por todas estas razões estou à espera de um dia destes, em que a conjugação dos astros, dos asteróides, das luas, dos cometas e dos outros objectos celestes, seja propícia, tomar a decisão de deixar de ler a realidade, saltar as linhas e as páginas em que for evidente o excesso de imaginação deslocada do contexto, ignorar os textos obtidos por 'copy & paste', ignorar os textos gerados a partir da máquinas electrónicas de repetição ou de geração aleatória que passam por criativos, indignar-me com novidades trazidas directamente do baú do morto.

Ontem ouvi outra vez o Dantas do Almada. Morra o Dantas, morra! Pim! Em miúdo, não sabendo quem era o Júlio Dantas, parecia-me que o Almada dizia: Morra o d'antes, morra! Pim!

Para este ano prevê-se o regresso do Dantas e do d'antes. Pim!


Du Prólogo


Postum

Sabes, eu sei que quando tu usas palavras inadequadas isso quer dizer que esgotaste o sentido e queres agora determinar os passos seguintes por palavras que já não são tuas. Mas isso não é muito importante. Porque apesar de perceber a sua falsidade eu bebo as tuas palavras. É tudo uma questão de percepção e não se percebendo o que é que vem a seguir não temos hesitações em acreditar que o actual, estas palavras que são ditas, são as certas, as adequadas para o momento que vem a seguir, tornar as constantes imaginárias que povoam os sentidos, indeterminações.

Não é há muito tempo, infelizmente, que te leio. Poderia ter-te lido desde o início. Poderia ter-te lido mesmo antes de começares a escrever, mesmo antes de começares a saber escrever. Mas aí, devo dizê-lo, já haveria alguma batota, alguma viagem no tempo. E isso, confesso, eu não sei fazer. Sou um tipo prosaico. Não tenho quaisquer espécies de ligações ao transcendente. Ouço as palavras e levo-as para o sentido abstracto que têm sem acrescentar um milímetro que seja à sua natureza.

De facto, eu sei que tu não sabes. Tens uma vaga ideia que te leio e que com essas palavras que leio aproveito para fazer uns movimentos telúricos nas minhas emoções. Nada que transcenda os momentos, óbvios, da verosimilhança.

Por isso, sem razão nenhuma, vou diariamente à procura dos teus textos e quando os encontro meço-os como se fossem novas unidades da diversidade humana e a seguir coloco-os, com alguma ternura, é verdade, no estreito campo das palavras esquecidas.

Percebes então que o que me falha, admitindo sempre que me falha alguma coisa, é a razão. Mas isso não é razão para não perceber que o meu esforço é honesto. O que eu queria, de facto, e vem a talho de foice neste momento em que o ano recomeça, era passar o meu tempo a olhar para um horizonte a que sentisse alguma pertença. Como o cavalo que apesar do sofrimento sente que pertence à terra que ajuda a lavrar- eu sei que é uma comparação forçada mas as comparações são, por definição, forçadas. Porque eu não sinto que pertença ao meu sofrimento e queria, por isso, estar num lugar em que sentisse. Simplesmente isso: que sentisse.

Há nos teus textos, que procuro, uma intenção pouco clara de tornar os sonhos dos outros momentos de fulgurante realidade. Mas isso é irrelevante. O que eu queria era que fosses capaz de escrever, com as tuas ágeis palavras, um destino que me agradasse.

Aibieme