domingo, outubro 28, 2007

Compleccidade

Esta noite uma fúria de cavalos mongóis atravessou a largueza quase infinita da estepe e durante horas permaneceu no ar uma nuvem de poeira que demorou a prática do amanhecer. A quilómetros de distância sentiu-se como um sismo nos aparelhos mais sensíveis. Numa palestra, um cientista aprumado, referiu o facto indirectamente e por antecipação, designando a vida como o sistema mais complexo de todos, apesar de abundante no meio dos gritos. Também houve quem dissesse que era mentira. Ou que a mentira era mais abundante no meio da complexidade, por ser um resultado inesperado de se saber. Também a complexidade poderá ser falsa se isso for necessário para provocar um sismo mais efectivo e capaz de trazer o medo para ordem do dia.


Esta noite uma fúria de cavalos mongóis feriu temporariamente o silêncio quase infinito da estepe e perturbou a harmonia oriental do tempo. As informações recolhidas no terreno são contraditórias. O próprio terreno é contraditório. Algumas horas depois do possível acontecimento já o planeta se revolve incomodado no seu assento confortável. As notícias bifurcam-se e milhares de opiniões ponderadas até ao limite, amplificam as cavalgadas das estepes para as suas consequências globais, para o equilíbrio geopolítico e para a gestão equilibrada dos recursos e da fé. Nenhum passo é deixado ao acaso ficando pouco espaço livre para a natureza nos surpreender de novo. Um alto funcionário do ministério da fraternidade universal garante que todas as medidas estão a ser tomadas para que os prejuízos no bem estar das populações sejam mínimos.


Esta noite uma fúria de cavalos mongóis, entregues sem freio à sua liberdade, perturbou a delicada impaciência do sono dos justos. Fonte autorizada afirmava pela manhã que é completamente estúpido que um corpo queira outro corpo abraçado ao seu, e esse outro corpo não possa ser outro corpo qualquer mas um corpo de que sabe o nome e alguns pormenores da razão e que tenha de ser aquele e só aquele. Haveria de ser feita legislação a legitimar em referendo sobre estas reprimíveis peculiaridades da complexidade das células. Na internet corre uma petição a favor da estepe.


Esta noite uma fúria de cavalos mongóis consumiu a sua energia vital em inúteis acções de prazer. As nações unidas irão deliberar sobre a tomada de notas de todos os contribuintes para que colaborem no esforço global de produtividade. O consumo de futilidade cresce e não há mãos a medir. No Brasil, como cá, chamam otários aos que cultivem, ou tentem cultivar, os valores clássicos que contrariam a lei da selva. Foi decretado, pela ordem natural das coisas, que os modelos de sucesso são os que se medem pelo poder e pela sua decidida estruturação.


Esta noite uma fúria de cavalos mongóis, contente com a sua natureza prática e instintiva, trepidou a lâmina delgada onde se abriga uma multidão de afectos desencontrados. Correu pelos ares a poeira longínqua a assentar sobre a lágrima titubeante dos rostos desconhecidos, já incapazes de se aperceber do trote magoado que passa silencioso à sua porta. Detectives particulares apontam o dedo à complexidade excessiva. Consideram necessário um recuo. Foi-se longe de mais. Que se tomem medidas para que não haja tanta divergência nos caminhos das estepes. Urbanizem-se as consciências. Desenhem-se com clareza os caminhos e os sentidos. Calem-se os trotes desafinados e as disfunções operativas. Respeite-se o estabelecido e as suas definições.


Esta noite uma fúria de cavalos mongóis estilhaçou mais um pote certezas.


Beatriz Teresa

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