terça-feira, março 20, 2007

Mundança

No silêncio da noite há um insulto que se propaga ligeiro.
Sabem os que ouvem que não está próximo o fim.
Mesmo assim é aos ouvidos sensíveis que chegam os estrondos mais fortes.
Relativo é o senhor, doutor.

Não disse nada ao pai nem à mãe.
A casa já está vazia desde a outra infância, quando ainda não era possível.
Vogavam à volta da luz insectos de fraco carácter.
Eu não os via porque os olhos se tinham fechado de cansaço.

É provável, disse o angustiado, que não seja este o fim que todos esperávamos.
Ninguém lhe respondeu, imersos que estavam os rostos na sua desencantada morte.
O vento.
Sim havia o vento a divertir as árvores.

Por acaso, ainda que perverso, o silvo da fábrica acordou mais cedo.
As mãos estavam ávidas de saber coisas.
Nenhum preço tinha sido dado para o abandono e nem era preciso.
Paz à sua alma.

Cada vez que as nuvens voltam do mar trazem novidades.
Dizem que são coisas que já se sabiam mas tinham sido entretanto esquecidas.
As frases mais desastradas riem-se de si próprias, com propriedade.
Mas o que eu queria era o horizonte.

Durante quanto tempo vão ainda persistir os hábitos?
Dizem que será a vegetação a vencer.
Mas não esta que desta vez ainda nos vai comer.
Hão-de vir outras mais hábeis a saber viver em lugares nefastos.

Apesar de tudo não lamento.
Foi uma boa tentativa.
A matéria a pensar-se a si própria... que estupidez.
Não acaba nem bem nem mal.

Ainda queria tirar uma moral da história.
São os velhos hábitos: querer que as coisas tenham sentido.
Que coisa estranha este silêncio.
Que coisa estranha não se ler o significado das coisas.

Torcato Matos

quarta-feira, março 14, 2007

Corte

Quando se corta o corpo, o corte que fica no corpo é um corte que fica para sempre como memória do corte que cortou o corpo.
Cortado, o corpo reage ao corte, como se o corte que o cortou fosse um corte sentido.
Cada corpo reage ao seu corte, cortando as ligações do corte ao resto do corpo; cortando de si o corpo cortado e salvando o corpo de um corte que o poderia cortar.
Existe entre o corte e o corpo cortado uma relação de semelhança.
Espera-se entre o corpo e o corte uma relação de pertença.

Quando um corte corta um corpo, encontra na reacção do corpo ao corte uma razão para ser corte.
Antes de cortar um corpo, um corte ainda não é um verdadeiro corte.
Depois de cortar um corpo, um corte já não é um verdadeiro corte.
Antes do corte o corpo é um corpo sem corte e sem memória de ter tido um corte.
Depois do corte, o corpo que foi cortado, é um corpo que tem um corte porque se recorda de um corte que teve.

Fotógrafos de todo o mundo procuram o retrato do corte no momento em que é corte.
Acreditam, aqueles que acreditam, que há um instante, disponível para um instantâneo, em que o corte é.
Perseguem então, os fotógrafos de todo o mundo, os que acreditam e os que não acreditam, o instante dinâmico em que sobre o corpo se manifesta o corte no seu esplendor insubstituível.
Esperam, os fotógrafos, que o corte se confunda com a imagem do corte.
Desejam, os fotógrafos, que o corpo ilumine a imagem do corpo.

Não é seguro que nenhum fotógrafo tenha alguma vez guardado o corte sobre o corpo no momento em que o corte se faz sobre a pureza elementar do corpo.
Divergem as opiniões e as certezas acerca da autenticidade dos cortes que dizem ter sido já impressos preto no branco.
Divergem também as certezas e as opiniões, sobre os corpos que foram cortados e que mostram a memória dos cortes que tiveram.
Nenhum corpo sabe, perante a evidência de um corte, onde ocorreu o corte que o separou de si próprio e cortou, para sempre o corpo dividido.
E se o corte que o corpo insiste é um corte que apenas cortou a superfície aveludada dos sentidos, pode acontecer que seja apenas um corte rudimentar, magra marca de um tempo que adiante se verá não ter acontecido.

Prólogo

terça-feira, março 13, 2007

Fronteira

Não tenho contacto com o infinito: imagino-o.
Naquilo que posso, tolero-o.
Mas o que eu vejo e sinto,
o que preenche os interstícios urgentes do vazio,
o que marca todos os passos que dou e submete a minha identidade,
são os limites.

A partir de um ponto, o abismo.
A partir de um momento, a indiferença.
A partir de um fogacho, a luz.
A partir de um sonho, a verdade.

Localizo-me, por isso, na fronteira.
É aí que mudo as minhas vestes
e me enredo nos dilemas de ser.
De um lado está, pouco nítida, a serenidade,
do outro, atormentada, a beleza.
Apenas um efémero fio
entre o apelo da trágica alegria
e o macilento olhar do náufrago.

A lebre e a tartaruga perseguem os meus paradoxos.
Há quem saiba que não sabe
e há quem não saiba que sabe.
Cada passo pode aproximar ou afastar e nunca saberemos.
Há um lado de dentro e um lado de fora que se conhecem
e uma luta permanente por não haver luta permanente.

Não sei nada do infinito.
Os meus encontros diários são com o limite das coisas.
E falam-me de potência e de futuro,
de dignidade e de subtileza.
Engrossam em cada instante novas redomas
onde guardam os testemunhos do esquecimento.

Vivo e convivo com os limites que não entendo.
E percebo tão bem esse infinito que me escapa...

Ikivuku

quarta-feira, março 07, 2007

segunda-feira, março 05, 2007

Importância

Há, nos gestos do dia a dia, um apelo muito forte ao esquecimento.
Enquanto se sobe a intransigente montanha, os pensamentos revesam-se até já não terem sentido.
O esforço de levar outra vez o pé para a frente do outro, esgota a sensibilidade e o entendimento.
É difícil que no topo ainda haja energia para fruir a paisagem.
Nada é comum quando os músculos se retesam para um último balanço.

Se eu tivesse um deus a que não chamasse acaso, di-lo-ia uma combinatória.
O meu olimpo tem uma fauna própria que não me aquieta.
Diverte-se a mitificar o número e a diversificar os caminhos.
Mesmo assim, o tédio é o patrono mais poderoso.
Acima do correr das nuvens já não mora a ameaça ou a salvação mas o vazio.

Nenhum acto é tão autêntico como o trabalho.
Quando queremos ser sérios e profundos dizemos que trabalhamos.
E é nesse gesto mágico e económico que se suportam os nossos sonhos.
A labuta como método de render homenagem à existência.
Culto do que não é oculto nem ficcional.

Nenhum passo é tão autêntico como o que não se deu ainda.
A energia potencial cresce enquanto as expectativas sobem aos lugares mais altos.
Há muito de irremediável na convivência com a solidão.
Diz-se a palavra e ela não chega a lugar audível.
Nem regressa.
Os sons atravessam o tempo como neutrinos.

Cada pensamento que se forma na escalada perde-se a seguir agarrado à gota de suor.
As melhores das intenções formam-se em nuvens de chuva ácida.
Neste olimpo não há nenhum deus a quem pedir clemência.
Não há também vontade de pedir, porque os que podem dar é porque roubaram.
O desequilíbrio equilibra os sentimentos.

Não fora a certeza de o poder poder não ser outra coisa que o acaso, e o ódio seria o atalho certo para a existência.
Não é aqui nesta montanha, mas é noutras em que se faz da vontade escravatura.
Lá em cima a vista é bonita.
Há muita beleza para escutar e sentir.
Mas antes disso há sempre um medo de perder qualquer coisa importante que não se sabe o que é...

Sísifo