sexta-feira, julho 04, 2008

O Fim (parte 2)

Hoje fui a Lisboa. Uma reunião de trabalho. Andei uns minutos pela cidade morta e tive uma sensação estrangeira. Como se já não fizesse parte desta terra. É curioso como em tão poucos meses houve tantos afectos que morreram. Uma hecatombe. Uma guerra do Iraque. Primeiro os mais fracos, depois os mais fortes (ou o contrário) nada sobrevive. A simplicidade específica da morte. Passo na banca dos jornais e não reconheço aquelas letras gordas, nem percebo as notícias, nem as quantidades desumanas de tralha que os ardinas são obrigados a vender em vez de jornais e revistas. Já me aconteceu estar noutro estrangeiro com menos estranheza. Apetecia-me dizer que Lisboa era agora diferente por se ter tornado igual. Mas o problema sou eu: saí para fora cá dentro e já não consigo voltar. Tem o seu quê de bom: há a hipótese de me surpreender com alguma novidade. A única coisa que interessa, em Lisboa ou em qualquer lado, é o progresso do caos. A desagregação da informação em forma de ilegibilidade de maneira a que ninguém possa referir caminhos que desconhece. Por mim, caio por falta de sentido prático. Não me interessa a ordem a não ser como antecedente do desastre; alinhar antes de destroçar. Como na vida, como nos afectos, como no amor e nos negócios, em que a cada vitória correspondem inúmeras derrotas. E tudo isto para nada que é o que o instante significa no desalinhamento dos desejos. Já não me importa o que possa ser uma dor desconhecida. Todo o homem tem esse mérito inegável de servir avidamente o sofrimento como refeição de luxo. É uma questão prática que se dilui no vazio descritível da indiferença*. De repente, sem que nada o previsse, vejo-me contestatário. Uma luta de classe. Eu contra o mundo inteiro, desligado de todos os agrupamentos de felicidade programada. O indivíduo, sendo indivíduo, aproxima, com o seu gesto desordenado, o universo do caos. Sozinho, o indivíduo - e o indivíduo tem que começar por ser sozinho - é um gerador automático de caos, de desordem, e, paradoxalmente, de complexidade. Parece que se mudaram para Nova York todos os génios do mundo. É de lá que vêm as ideias primas acerca do universo e da moda, dos pesadelos de elite e das ideias que devem ser as ideias de cada tempo. Assusta-me saber que todos os dias são publicadas milhares de novas ideias novas que ficam a lutar umas com as outras, mergulhadas no ruído infernal dos estádios, à espera de atenção, de aplauso e de inveja. O único pecado que me lembro ter alguma vez cometido foi ter lido durante anos a revista do expresso editada pelo VJS. Raramente percebia o que lá vinha escrito - mesmo quando explicavam - mas considerava que aquela penitência, como é próprio das penitências, haveria de dar frutos. Quando morrer hei-de dizer a Deus que se tratava de pura solidariedade auditiva - também eu ouço mal - e talvez ele me poupe a uma pena muito severa. Até porque depois passei a ler o público, que não era bem um jornal diário mas um semanário distribuído em sete fascículos - não havia saco plástico em que aquilo coubesse tudo de uma vez -, reincidindo num pecado grave. Aqui apenas me posso defender com o gosto pelo Calvin e Hobbes. Malditos jornais que nos querem fazer crer que somos elementos pertencentes a uma sociedade activa e preocupada. Preocupada sim, activa não. Uma sociedade activa não consegue ler jornais que falem mais do que umas linhas sobre o último grande assassínio ou sobre a última incompetência do governo. E como se pode ver por este texto, tal como nos jornais, é fácil encher uma série de linhas com tretas. (continua... se calhar...)


* Esta frase dava um óptimo título para um livro do José Gil. Ou de outro qualquer autor de formação francófona. É fantástico como se podem alinhar uma série de palavras sem obter o mínimo de sentido. Chama-se a isto estilo fechado. Se alguém conseguir perceber o que a frase quer dizer ofereço-lhe um livro da Laurinda Alves à escolha desde que seja o Xis. Eu, que escrevi a frase há dois dias, não consigo lá chegar.

Torcato Matos

1 comentário:

Mónica disse...

Andas com a mania dos asteriscos, isso é poção mágica a mais :D