Manhã de domingo. Sol na rádio para o dia todo. Vejamos. Não. O meteorologista não passou por aqui. A barba hoje descansa para que o domingo o seja mesmo. Quase ao fim da manhã o nevoeiro dissolve-se e o sol leva-me para a rua. Há movimento a mais para um domingo. O meu café está fechado para obras e por isso o jornal fica à espera com as notícias que já não são frescas.
Hoje é perigoso andar na rua. Há carros que não é costume andarem por aí e os condutores não sabem que as ruas que há trinta anos tinham dois sentidos agora têm só um; e outras mudaram de sentido. Ouço som de ambulâncias mas não deve ser por causa disso.
Entro na escola primária é quase meio-dia. À porta cheirava a farturas e uma bombeira adolescente tentou colar-me a uma etiqueta de marca. Recusei enquanto procurava no edital o 'E733'. Penso sempre o meu número como um conservante cancerígeno. Um dia tiram-me da lista. Sala 20. Aqui já não cheira a farturas. Cheira a uma mistura de mofo com naftalina. Há uma bicha para respeitar. Sinto-me intruso numa sala com desenhos espalhados pelas paredes: intimidades de escola. Noutros dias aquela sala tem outros cheiros. Hoje entrou o mofo e a naftalina. Cada pessoa demora muito a pôr a sua cruzinha. No totoloto o quadrado é menor mas é uma prática semanal. Aqui têm medo de se enganar e mesmo depois de dobrado o voto, olham de novo para ver se ainda lá está. A entrega à entediada presidente da mesa parece mesmo o depósito de um ente-querido.
Ponho a cruz no Alegre. Por uma vez. Mais logo os especialistas vão tecer um número interminável de considerações sobre o meu acto de pôr a cruz no Alegre. Embora nem nestas coisas a minha opinião tenha peso, devo dizer que fiz aquilo que se faz quando se tem que escolher uma coisa de entre outras: optei. Escolhi o que dentre aqueles achei melhor ou, o que dá no mesmo, o que achei menos mau. Apenas isso. E a minha intenção era que o Alegre fosse o presidente. Escusam de perder tempo a pensar nas inúmeras outras intenções que eu tinha escondidas na manga.
Desta vez saio e ignoro o cheiro das farturas. Há uns anos arrisquei e fiquei com azia.
Da capela os votantes vêm para a escola e por momentos o cheiro a mofo e naftalina sobrepõe-se às farturas. Hoje saíram à rua rostos lívidos que a revolução assustou. Vêm agora mobilizados por uma oportunidade equívoca de voltar atrás. Procuram uma abstracta linhagem de pureza, clausura, ordem e mistério que encaixou como luva no perfil hirto e dogmático que agora escolhem.
A adolescente dos bombeiros pediu reforços e consegue auto-colar bastante gente. Em Bagdad os votantes reconhecem-se pelos dedos sujos de tinta; aqui pelo autocolante dos bombeiros. Há certamente um grupo de pressão que faz com que os dias de eleições sejam sempre ao domingo. Talvez por isso o voto mantenha este ar sacralizado e me apeteça pensar que podia ser diferente. Quase tudo podia ser diferente desta apologia da tristeza.
Zumbido
1 comentário:
Fez-me pensar essa "apologia da tristeza", essa sacralização da coisa que faz de nós apenas crentes e não participantes. Se calhar por isso a maioria esperou o messias... ;)
E olha que gosto do teu número que até parece um aditivo porque sendo eu Z2272 , sinto-me robotizada. ;))
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