domingo, janeiro 01, 2006

Postum

Sabes, eu sei que quando tu usas palavras inadequadas isso quer dizer que esgotaste o sentido e queres agora determinar os passos seguintes por palavras que já não são tuas. Mas isso não é muito importante. Porque apesar de perceber a sua falsidade eu bebo as tuas palavras. É tudo uma questão de percepção e não se percebendo o que é que vem a seguir não temos hesitações em acreditar que o actual, estas palavras que são ditas, são as certas, as adequadas para o momento que vem a seguir, tornar as constantes imaginárias que povoam os sentidos, indeterminações.

Não é há muito tempo, infelizmente, que te leio. Poderia ter-te lido desde o início. Poderia ter-te lido mesmo antes de começares a escrever, mesmo antes de começares a saber escrever. Mas aí, devo dizê-lo, já haveria alguma batota, alguma viagem no tempo. E isso, confesso, eu não sei fazer. Sou um tipo prosaico. Não tenho quaisquer espécies de ligações ao transcendente. Ouço as palavras e levo-as para o sentido abstracto que têm sem acrescentar um milímetro que seja à sua natureza.

De facto, eu sei que tu não sabes. Tens uma vaga ideia que te leio e que com essas palavras que leio aproveito para fazer uns movimentos telúricos nas minhas emoções. Nada que transcenda os momentos, óbvios, da verosimilhança.

Por isso, sem razão nenhuma, vou diariamente à procura dos teus textos e quando os encontro meço-os como se fossem novas unidades da diversidade humana e a seguir coloco-os, com alguma ternura, é verdade, no estreito campo das palavras esquecidas.

Percebes então que o que me falha, admitindo sempre que me falha alguma coisa, é a razão. Mas isso não é razão para não perceber que o meu esforço é honesto. O que eu queria, de facto, e vem a talho de foice neste momento em que o ano recomeça, era passar o meu tempo a olhar para um horizonte a que sentisse alguma pertença. Como o cavalo que apesar do sofrimento sente que pertence à terra que ajuda a lavrar- eu sei que é uma comparação forçada mas as comparações são, por definição, forçadas. Porque eu não sinto que pertença ao meu sofrimento e queria, por isso, estar num lugar em que sentisse. Simplesmente isso: que sentisse.

Há nos teus textos, que procuro, uma intenção pouco clara de tornar os sonhos dos outros momentos de fulgurante realidade. Mas isso é irrelevante. O que eu queria era que fosses capaz de escrever, com as tuas ágeis palavras, um destino que me agradasse.

Aibieme

3 comentários:

Mónica disse...

mentiroso zumbido: sem acrescentar um milímetro que seja à sua natureza?
acrescentas "infinitos": pontos de beleza, contos de fascínio, o destino das minhas(outras) palavras!

Mónica disse...

este postum é genial

Elipse disse...

sabes... eu também ando sempre à procura de palavras. Depois coloco-as... em linha.