domingo, outubro 14, 2007

Pérolas (XXXIX)


Publicar o que se escreve, mesmo desta forma universal e directa, é propor ao estranho o embarque nas peculiaridades do nosso mundo. O sucesso, chamemos-lhe assim, é conseguido quando, independentemente das razões, o nosso mundo tem eco no mundo de um leitor. Esse eco, essa receptividade, é um acaso que comove pela sua improbabilidade. Um dia talvez me detenha a enunciar a multidão de factores que contribuem para que mundos de alguma semelhança se não encontrem. Mas não é esse o meu propósito, agora.

Interessa-me antes pensar como essa improbabilidade ao mesmo tempo que fascina, perverte. A enunciação que hoje se promove procura filtrar-se das consequências angustiantes do acaso. Instala-se, por isso, no lugar das multidões, na esperança de uma visibilidade reforçada e de que o olhar particular pouse, por definitivos momentos, sobre o texto sofrido. Mas a multidão é cada vez mais um ruído uniforme que marcha em uníssono e, refém da sua própria visibilidade, fixa a limitada atenção no dedo que lhe aponta o caminho. Perante a voz monocórdica da realidade restam ao humano os caminhos da integração ou da margem:

integrado passa a dispor o seu mundo como o dos outros e, alinhado, terá a alegria de um sistema de códigos evidentes e reconhecíveis, e a facilidade dormente do pensamento pré-fabricado, imune à estranheza;

na margem, na dispersão infinita das possibilidades, apenas terá garantidos a consciência e o olhar.


O puro acaso levou-me, há uns tempos, a uma página que se propunha numa limpidez inocente. Cativo das palavras, liguei-me a elas e fui seguindo a sua efervescência. Depois houve o "Registo de Nascimento" que trouxe da Livro do Dia e agora o "E como ficou chato ser moderno" recolhido em Lisboa, para evitar o mau ambiente que o fim-de-semana levou a Torres Vedras.

Agrada-me que a convivência com o acaso tenha estas surpresas vitais: caminhos que são alternativas à estrada principal, congestionada pelos modelos fortes da produção. Em vez do drama oco da política, em vez da comédia fácil da economia, em vez do ensaio obeso das religiões, em vez do obsceno romance financeiro, a poesia singular de quem vive.

1 comentário:

Mónica disse...

continua lá a primeira parte, um gajo com boina não é bonito