quinta-feira, novembro 01, 2007

Subterrâneo

Há uns dias, neste 'post', a Addiragram desafiou-nos a desfiar considerações sobre o que é andar por aqui a 'postar'. Ela própria teceu a sua teia de razões que merecem ser comentadas. Entretanto coloco aqui o texto que lhe mandei, e ela já me deu a honra de publicar no seu rigoroso Aguarelas de Turner.


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É muito provável que a informação que se consegue nos jornais - e cada vez mais nos livros e nas revistas - tenha pouca relevância ou seja já do conhecimento de qualquer pessoa informada. Tirando aspectos específicos de áreas muito localizadas, ou os acontecimentos do dia que as agências noticiosas vão recolhendo do imprevisível, os jornais enchem-se de informação reciclada que não cativa um leitor mais exigente que chega a aborrecer-se com a sensação de tempo (e dinheiro) perdido. Esta noção poderia conduzir a uma efectiva redução da leitura dos jornais, e é provavelmente isso que está a acontecer.

Os meios audiovisuais como a televisão ou a rádio têm uma capacidade de actualização de notícias que faz os jornais parecerem, na leitura da manhã, objectos históricos. A única vantagem que os jornais têm é uma espécie de acesso directo àquilo que interessa, que pressupõe da parte do leitor uma maior liberdade do que no caso do acesso sequencial da rádio e da televisão. A televisão ganha ao informar o espectador que não tem ideia da informação que quer, que está disponível para a arbitrariedade do emissor, e é, portanto, um leitor que à partida não faz questão de seguir um caminho seu e filtrar aquilo que vê. A multiplicação dos canais televisivos, que poderia configurar uma liberdade de escolha, mais não é que um multiplicador de imposições. Num sistema com cinquenta canais facilmente se 'desperdiça' a meia hora de atenção disponível para "ver" num 'zapping' desenfreado e inútil à procura da 'melhor' coisa que está a 'dar'. Cria-se a impressão de liberdade numa jaula de opções que se limitam reciprocamente.

A surpresa da 'internet' é dada pela sensação de autonomia de quem a utiliza. O acesso é directo. Entre os acontecimentos e a sua 'publicação' o tempo é mínimo, podendo em alguns casos o acontecimento ser seguido em tempo real. O acontecimento não tem a obrigatoriedade de ser universalmente relevante para ser mostrado - basta que seja relevante para quem o publica - podendo ir ao encontro do gosto peculiar de um único leitor, dando por isso peso idêntico ao popular e ao marginal. A informação permanece disponível sem degradação nem tempo de exposição determinado pelos interesses de um emissor particular: a 'internet' é um livro na estante à espera da nossa disponibilidade, não nos pressionando nem ameaçando a nossa independência. E, talvez mais importante ainda, a 'internet' coloca-nos a possibilidade de ser tão emissores como receptores, a anos luz da limitada participação das cartas ao director. A 'internet' é um EDITAL em que todos podemos inserir o nosso prospecto sabendo que tem o potencial de ser visto no mundo inteiro.

Estes potenciais que vemos hoje como difíceis de perder ou de serem ultrapassados, não são mais do que a generalização - na proposta aldeia global - do processo comunicativo entre as pessoas. E, visto nesta perspectiva benigna, assemelha-se ao melhor dos mundos. Mas é sabido que mesmo os melhores dos mundos que se vêm revezando ao longo da história tiveram sempre os seus poderosos lados negativos. Nem sei se é justo falar em lados negativos quando fazem parte das características que enformam toda e qualquer actividade humana, que tem o destino de ocorrer sempre no estreito intervalo entre o brilho e o nada*.

Aquilo que é o maior bem da 'internet' é também o seu maior 'mal': a dimensão. A informação é tanta que se torna impossível saber o que é relevante. E nem vale a pena pensar em saber qual da informação é verdadeira, porque aí, como nas outras formas de transmissão da informação, a probabilidade de estar perante uma fraude é muito elevada.

O 'blog' não é mais do que um 'site' em que foi reduzida ao mínimo a dificuldade de edição. O preço a pagar por essa simplicidade é o estabelecimento de uma interface relativamente rudimentar quando comparada com os potenciais que hoje estão disponíveis para um 'site' clássico. Mas a simplicidade compensa porque permite o acesso à publicação na internet a pessoas que não têm vocação nem interesse em mergulhar nas crípticas linguagens dos computadores. Foi essa simplicidade, consequência da generalização da internet universitária à 'world wide web' aberta ao mundo 'civil', que permitiu a explosão de emissores que a actualidade está a conhecer.

Uma matriz que parece manter-se nas sucessivas gerações de utilizadores e modelos da rede é a formação de comunidades. De uma maneira ou de outra a necessidade de aproximação ao 'outro' é o motor de todas as formas de comunicação e a porta que a internet abriu tem uma dimensão que ultrapassa todas as previsões. A democratização da bidireccionalidade coloca-nos a todos no caos ensurdecedor de um gigantesco café em que todos falam ao mesmo tempo que tentam escutar alguma coisa. Ao contrário dos outros meios em que a hierarquia comunicacional está bem definida, na internet ela é apenas rudimentar e dá ao leitor a hipótese de se submeter ou não conforme o seu gosto ou disposição. É esse estreito caminho de liberdade - apesar dos enormes esforços que estão a ser feitos para a domesticar - que pode conceder à internet o estatuto de refúgio último para aqueles que já perderam a esperança de uma sociedade de valores elevados e se vêem cada vez mais empurrados para a margem das decisões políticas e sociais. Agrada-me imaginar a internet como um subterrâneo onde se vão conservar pelo tempo que for necessário, as ideias clássicas que a barbárie quer abolir nesta escura idade média que atravessamos.


*Gosto de pensar a existência de vida na terra como uma metáfora do percurso humano. Apesar de existir um Universo com tendência para infinito, o intervalo em que a vida é possível é tão estreito que numa escala cósmica é indetectável. Para mim esta solidão cósmica é a maravilha maior, por se ter formado a complexidade num estreito nicho de possibilidade.


zumbido

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