Morram poetas ou políticos, pintores ou músicos, médicos ou milionários, a Chris não se abala. Delicia-se a ver o ar compungido de quem aparece a tecer os maiores elogios a quem morre. E deixa cair uma piedosa lágrima. Um dia falarei das lágrimas de Chris.
Eu hesito em dar a minha opinião. Digo-lhe que não percebo como é que um país em que toda a gente que morre é tão brilhante pode ser tão rasca. Como é possível elogiar tanto os que morrem e o país ser tão inferior à soma das suas geniais partes. Será que os verdadeiros culpados são seres eternos que andam por aí a boicotar os excelentes desempenhos dos que são mortais?
A Chris diz que sou um desmancha prazeres e manda-me calar para dar atenção às palavras de mais um candidato a defunto brilhante sobre um brilhante defunto. Eu não me calo e ela diz-me ferozmente que eu não respeito os mortos. Insisto que neste país as únicas coisas que se respeitam são os mortos. E por pouco tempo. Pelos vivos não há respeito nenhum. Ela ameaça gritar e vou para a varanda dar o meu contributo para a redução do défice.
Começo a estar um bocado farto da Chris. Não é possível argumentar com ela. A verdade suprema vem na Caras e na Gente e as minhas opiniões são as de um marginal. Mas o facto é que ela se me impõe. Num certo sentido faz-me lembrar a Dinah.
Também com a Dinah me reduzi a uma certa insignificância. Não era esta insignificância derrotada mas uma insignificância militante. Com a Dinah havia compensações.
Horas e horas de ginásio não chegavam para eliminar a efervescência daquele corpo. Hoje não aceitaria aquela reduzida feminilidade mas na altura, a forma destemida com que contrariava a gravidade subjugava-me, e a falta de assunto, a falta de temas de conversa, não se sentia porque o tempo era quase todo preenchido com acção. A agilidade, a elegância militar do gesto, a força física e mental tornavam-na um animal violento em cuja jaula não se consegue permanecer vivo muito tempo.
Um dia fugi, assustado. O crescendo de perversidade estava a tornar-se insustentável. Receei pela minha estabilidade mental quando a minha saúde física já estava sobejamente deteriorada. Apesar de tudo foram bons tempos. Dediquei-me a Dinah com uma reverência que hoje não sei se era apaixonada, masoquista ou aterrada. Atrás da potência vem sempre a crueldade e não conheci depois ninguém que, como Dinah, aliasse à determinação cega da mente um corpo igualmente vocacionado para lutar pelo seu lugar. Força da natureza, impulso da matéria, emoção corporizada, vida sem redomas... Dinah. Não me fez feliz. Não sou capaz de ser feliz com o corpo dolorido.
O sentido em que me faz lembrar a Chris é muito pequeno. Dinah dominou-me no meu tempo de homem forte. A Chris domina-me como homem decadente, derrotado... temporariamente derrotado, espero eu.
Ivo Cação
© diasquevoam.blogspot.com
Sem comentários:
Enviar um comentário