sábado, junho 04, 2005

A Rachel

Esta sucessão de pés trouxe-me à memória os mais belos que já conheci. E, embora isso seja uma das habituais injustiças do mundo, os pés mais belos completavam o mais belo dos corpos. Rachel era o nome desse corpo. Conhecemo-nos muito próximo do céu. Uma coincidência, como tudo o que é importante na vida.

A arte de viver, de que eu não sou um especialista, passa por prestar atenção às coincidências, saber reconhece-las e, acima de tudo saber desfrutá-las. Na época em que o acaso me trouxe Rachel, eu era ainda mais ignorante que hoje.

(Só me apetece escrever quando estou com a Chris. Ela hoje está de trombas. Esta história das reformas dos ministros que estão no activo parece que lhe faz aumentar o peso. Isso não a perturba. O conceito dela é o de a gordura ser formosura. As trombas vêm mais do facto de precisar delas para se poder impor. E eu que procuro sobreviver a este período um pouco estranho da minha vida, tenho mantido o sorriso aberto. Um sorriso comercial. Pensar na Sophia fez-me bem).

A Rachel é um caso à parte. Não me apaixonei. Há ocasiões em que temos uma excessiva consciência do futuro. Os dias que passei com a Rachel e que poderiam ter mudado a minha vida, foram suficientes para perceber, ainda que a nível do subconsciente, que me estava a meter num empreendimento que ultrapassava a minha dimensão. Ela tinha sonhos. Bom... Suponho que um corpo daqueles tem direito a ter todos os sonhos do mundo. E ela tinha todos os sonhos do mundo. Não que ela me tivesse contado os seus sonhos. Não houve grande oportunidade para isso. Eu não percebia o hebraico, ela não percebia o português e o meu inglês na altura era lamentável. Trocámos o que foi possível por gestos e por desenhos. E mesmo assim houve gestos que só aprendi com ela e nunca mais pude reproduzir.

Foi uma coincidência aérea. Eu ia para a minha guerra nos Açores, e ela ia por ali, num elaborado percurso para conquistar a América. Se eu bem percebi ela não queria que o corpo ficasse recluso de um só olhar. Procurava na América uma glória global. O corpo global que se impõe naturalmente aos olhares e seduz todas as libidos. Por instantes, nos circuitos ilhéus, acreditei que valeria a pena aprender hebraico e senti que também ela queria aprender português. Mas ao vê-la nua nas águas frias do Porto Formoso, pareceu-me que isso seria como guardar a Torre Eiffel dentro de minha casa, só para mim. E, decerto, depois de começarmos a falar aquele paraíso iria desfazer-se. Os corpos entendem-se melhor pelos gestos, têm para a língua funções que transcendem o léxico e a gramática e do som procuram acima de tudo os tons, o ritmo e a melodia. Despedimo-nos com lágrimas e sem promessas... Como prometer com gestos?

Durante anos evitei folhear as revistas que vinham da América cheias de corpos. Tinha medo de a encontrar. Preferi procurar noutras as aproximações, os pequenos troços que quase prometiam o todo. Rachel terá conquistado o mundo a que tinha direito.

Não foi uma derrota minha. Apenas uma coincidência que não estava inscrita no destino. Seja como for ficou-me este legado da memória que faz com que Raquel, ao contrário da realidade histórica, seja com o tempo uma mulher cada vez mais linda. E não posso dizer que me tenha dado com os pés...

Ivo Cação
© diasquevoam.blogspot.com

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