sábado, junho 11, 2005

A Hélia

Há muitos anos, ainda longe da moda, já a Hélia andava com o umbigo à mostra. Mostrava assim que era humana e não um andróide qualquer. Eu, que nunca gostei de andróides, tinha a esperança que um dia pudéssemos ter acesso directo a esse bilhete de identidade natural do humano. Talvez fosse bom que também os homens andassem com o umbigo à vista: poderíamos confirmar melhor a natureza inumana de algumas bestas.

Mas a Hélia tinha a vantagem de ter um umbigo que dava gosto ver.

Conheci-a numa praia africana, quando andava à procura de estrelas do mar. Eu e ela. Uma coincidência. Coincidência também de nem eu nem ela termos encontrado uma estrela do mar que fosse. Bom... eu encontrei-a a ela: uma estrela quente, brilhante, luminosa e sensual. A arte de envolver, em pessoa. Foi em África. Só podia ser em África encontrar tão grande e bela luminosidade. Foi um fogo que ardia em chama viva, derretia as entranhas e fazia desejar os infernos. Corríamos como doidos pelas areias escaldantes, fugindo cada pé do fogo de quartzo, desejando voar até à próxima sombra para não sofrer os horrores dos pés queimados e prometendo não mais andar descalços por ali.

Mas Hélia era um apelo à nudez. Nudez total. Nem sapatos, nem chapéus, nem lenços, nem tatuagens, nem alianças...

Vivemos demasiado perto do frio. Estamos a apenas trezentos graus do zero absoluto que é a morte. Do lado do calor temos milhões de graus de possibilidades. É no calor que se preparam os novos mundos e os novos universos. É o calor que tudo recicla até à exaustão da absoluta novidade. Hélia foi e será, para mim, essa total liberdade da vida e da emoção, esse potencial de renovação e de sobrevivência, em suma a marca absoluta do amor.

Depois, separadamente, regressámos. Aqui ela é menos Hélia do que era. E eu também me tornei menos sensível aos seu encantos. O tempo passa à mesma velocidade para toda a gente, mesmo quando não parece, e os destinos vão-se construindo com afastamentos e aproximações mais ou menos aleatórias.

Um dia destes telefono-lhe para saber das suas aventuras. Saber como se tem dado com os novos tempos, com as novas políticas, com o novo mundo.

Mas não há-de ser agora. Não quero que saiba que estou com a Chris. Ela não compreenderia. É difícil imaginar personalidades mais antagónicas.

Lembrei-me de Hélia, ontem à tarde, quando estava com a Chris na praia de Carcavelos. O excesso de luminosidade impedia-me de me concentrar na leitura e o calor na cabeça levou-me para as memórias de Hélia. A Chris enchia todo o espaço debaixo do chapéu de sol e ia-se arrefecendo com cornetos e aquecendo com bolas de berlim e línguas de sogra caseiras. O ambiente estava ainda mais barulhento do que é costume. Até passaram por cima de mim a correr, para além de levar boladas e com chapéus de sol voadores. Só à noite é que vi no telejornal que tinha havido um tsunami humano na praia de Carcavelos. Não dei por nada. Tenho que reconhecer que a proximidade da Chris me protege.

Ivo Cação

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