terça-feira, março 28, 2006

Postseis

Poderia ter-te informado mais cedo da minha decisão. Poderia ter-te dito o mesmo dois anos antes. Talvez até três anos antes. Não é fácil determinar a data em que um elo se quebra. Gosto da imagem da grossa corda de sisal a que o tempo vai roendo um fio de cada vez e em que a decisão se espalha pela passagem ansiosa do tempo. Por isso não sei dizer-te quando se quebrou o primeiro dos fios. Nem sei se já se quebrou o último. Talvez haja uma espécie de erosão natural que leva a que em cada dia se quebre um elo.
Sabes como eu procuro obsessivamente o porquê das coisas. Faço-o apesar de saber que é um exercício inútil. Porque também já sei que não adianta saber: de uma ou de outra forma cometemos sempre os mesmos ou outros erros. Não me lembro já que palavras tinhas para esta maneira de ser que de início te soube bem e depois a pouco e a cada vez menos.
Não sei o que se passa com o amor. Uma coisa que parecia antes uma forma de magnetismo natural que atraía os seres, passou agora a ser um exercício esforçado com técnicas laboriosas, mecanismos de precisão e manual de utilização. Aquilo que parecia uma força interior firmemente inexplicável foi agora substituído por uma ginástica cheia de exercícios de manutenção que obrigam o amante a uma dedicação de estudo e prática digno de um 'entertainer' profissional que prende pelo apelo genial de cada gesto e de cada surpresa. Ora, essa atitude do amante substitui a marca pelo seu genérico e fica, por isso, disponível para qualquer bolsa.
Isto não é um queixume. É uma constatação. Eu podia ter-te informado mais cedo sobre a minha decisão se eu soubesse ler melhor os sinais exteriores de tristeza. Porque a imagem da corda é uma boa imagem mas não é mais do que uma imagem. Porque há momentos, de maior ou menor lucidez - não sei - em que, agora, tantos anos depois, me parece que houve um instante que não sei precisar, depois do qual tudo se tornou irreversível e em que os actos, a voz, o respirar, o pó dos livros, o miar do gato e o arrastar dos pés dos vizinhos, colaboraram todos para eliminar a robustez dos fios de sisal.

Aibieme

4 comentários:

Maria Arvore disse...

Há uma conspiração contra o sisal. ;))Transmite-se na humidade que dos dias e entranha-se na carne de tudo o que toca.;))

Já te disse que gosto da forma como escreves?

aibieme disse...

Não. Não tinhas dito. Assim como eu nunca fui lá dizer ao teu lugar do bem que se está por lá. Vou lá de mansinho, deleito-me e saio sem dizer nada. São os segredos que transportamos. Como este contra-comentário que provavelmente nunca lerás… ;)

Mónica disse...

"Aquilo que parecia uma força interior firmemente inexplicável foi agora substituído por uma ginástica cheia de exercícios de manutenção que obrigam o amante a uma dedicação de estudo e prática digno de um 'entertainer' profissional que prende pelo apelo genial de cada gesto e de cada surpresa." onde é que eu já li isto?

Mónica disse...

não gosto da imagem da corda. magoa-me esse roer de fios lentamente, uma tortura, uma vigança fria, conversemos sobre a fragilidade dos fios, reforcemo-los ou não...mas tomemos o destino da corda nas nossas mãos/desejos...quem é esse gajo o tempo? não o quero metido entre nós!
"Ora, essa atitude do amante substitui a marca pelo seu genérico e fica, por isso, disponível para qualquer bolsa" e acho muito bem essa substituição ou achas que a sofisticação do período anterior é caracteristica de um "genérico"? não me parece...a marca promove-se, insinua-se, apresenta-se apelativa (qual é o médico que o nega? hehehe) o genérico é nú, por vezes sem o revestimento saboroso, colorido, pobre e de embalagem apenas informativa...


é pra te contrariar, que isso só de elogios não pode ser! escritor escondido