quinta-feira, março 09, 2006

Rugosidade

Eu sei que não sei contar histórias. Sei que só falo de acontecimentos em que nada aconteceu. O meu propósito é, quase sempre, que não haja propósito nenhum e espero da maioria das coisas que de facto não existam.
Quando pego num assunto, digamos assim, é sempre na perspectiva que o assunto não tenha tema e não se ligue a nada que possa parecer verdade. É uma perspectiva e é uma expectativa. Apesar de, acima de tudo, eu não esperar nada e não ter, por isso, de sentir que perco o meu tempo com estas coisas.
Pressinto que o meu pensamento é rugoso. Assim como uma papel amassado. Não digo um papel amassado furiosamente, e por isso de maneira superficial, mas um papel amassado com intenção, com método, com vontade. E um pensamento rugoso, de volume variável e superfície baça, não reflecte, não transmite, não passa, nem no tempo nem no espaço, para além dos limites vagamente definidos do presente.
Não se trata de um jogo de palavras. Ou trata-se, na medida em que a tudo se pode dar o título de jogo. Mas só nesse caso, só nessa rugosa acepção. Porque de outra maneira não gosto de jogo. Não por a alguns parecer que durante um jogo acontece alguma coisa. Que não acontece. Nada acontece num jogo.
Um dia, com mais tempo, também farei a minha teoria dos jogos. Por agora direi apenas da perplexidade perante o relato de um jogo. Pela fantasmagórica atitude de ouvir com atenção alguém que descreve - eles dizem narra - um jogo. De que é que falam esses narradores?
Mas falar disso já seria narrar a narrativa de um jogo, ou descrevê-la, dar-lhe um volume, uma cor, uma intensidade, uma emoção. E no jogo que chega a nós por interposta pessoa, isto é, num jogo em que não jogamos, em que não somos intervenientes, em que somos, como se diz, espectadores ou receptores secundários de narrativas, materializam-se emblemáticas formas de ficção que, como sempre, dão a quem especta a imortal sensação de sentir e viver.
E eu não sei contar histórias. Ocasionalmente apercebo-me que acontecem coisas. Mas não as percebo. Não as consigo inscrever numa convergência de rectas e, pelo tempo que as une, parece sempre que há um lugar a mais, uma direcção que falhou, um gesto de indecisão que foi levado a sério.
Um dia, talvez depois de fazer a minha teoria dos jogos, hei-de tentar, para me entreter, perceber porque é que o tempo passa como se fosse uma ave migratória, voando sobre nós como se não fizéssemos parte da história. Sei que não é tema que dê para contar uma história. Mas talvez esteja aí o sublime da situação: uma história que não faz parte da história e que por isso não se conta a não ser que possa ser relatada como um jogo em que ninguém joga e todos são espectadores.

Prólogo

2 comentários:

Maria Carvalhosa disse...

Desta vez comentei no "prólogo". Volto a dizer: "vai lá ver, se os comentários te suscitarem qualquer tipo de interesse"... embora me pareça não ser esse o caso, uma vez que não te dás, sequer, ao trabalho de contra-comentar. Tu lá sabes! Continua a deliciar-me com o que escreves. Isso é que me interessa acima de tudo.
Beijo.

Mónica disse...

assim como quem dá uma no cravo outra na ferradura...
papeis amassados com proposito só se for origami, diz lá que não são bonitos!
como vês caiste na tua pp armadilha, seu origami das palavras!
:-)