Claro que me assusta o excesso. Dizes isso como se fosse natural que eu atirasse a minha vida pela janela só porque um impulso, um mero impulso, me deitou, por instantes - sabes o que são instantes - as mãos ao pescoço e me quis, não sei se o deva dizer assim, subitamente perdido, subitamente ausente, destino para outro lado, para outra questão, para outra finalidade. Claro que me assusta não saber que passo é o próximo. Não estou a falar em aventuras no espaço virtual, no espaço protegido do não me toques, do agora mato-te eu e depois matas-me tu a mim. Falo da realidade, do pouco de realidade que ainda existe, pelo menos para nós que nos habituámos a ter tudo, mesmo tudo, mesmo que estejamos sempre a gemer por nos faltar alguma coisa. Ignorância, ignorância consentida, ignorância querida. Claro que me assusta exagerar os meus gestos e perder depois disso a respeitabilidade. Que é isso de respeitabilidade? Também não sei. Sei que hoje é uma coisa feia, fora de moda, mas é também isso que me impede de embarcar totalmente em gestos irreversíveis. Está bem, a palavra certa pode ser esta: irreversibilidade. Sei de coisas irreversíveis, sei de ir e não voltar, sei de sonhar e depois cair em buracos que não têm fim e ficar, por isso, aterrado, enterrado no lodo de uma falsa sensação. Há lugares na terra, muitos lugares, talvez a maior parte dos lugares, em que todos os dias as pessoas que lá estão desafiam a irreversibilidade dos momentos e esperam, apenas esperam, que haja um momento de sorte e isso basta-lhes, parece-me a mim que isso lhes basta. Aliás, não têm oportunidade de saber sequer que existem outros mundos em que o desafio do instante é inventar desafios para o instante seguinte; em que está tudo previsto do nascimento até à morte e cada instante vale apenas o tédio de um capricho mal sucedido ou o difuso prazer de acrescentar mais um objecto à lista da fortuna. Ainda assim, ocasiões supremas de sofrimento, as falhas do elevador e do aquecimento central. Não, não sou capaz de arriscar fora dos parâmetros porque o meu risco é sempre um risco mascarado, uma imitação para consumo confortável na comodidade dos aposentos reais. Sei que te ofendo porque sentes que não estou a falar de mim mas de ti. O problema de conversarmos é sempre esse: cada palavra é uma ofensa; cada frase é um insulto; cada gesto é uma imprecação. Sei das tuas aventuras, sei que corres o risco todos os dias de te matares, pelos venenos que ingeres, pela maneira como vais pelas estradas, pelos lugares selvagens que visitas suspenso do confortável cartão de crédito. Sei das maravilhas da natureza que visitas nos lugares onde às vezes se contam sangrentas batalhas, aventuras uma imprevidência convencido da tua impunidade. Mas a mim o excesso assusta-me. É o meu sangue que teima em sentir que é igual ao daqueles que se debatem no lamaçal, no pântano - lembras-te? - que sustenta esta nossa animada fartura. Sabes bem a que me refiro. E eu sei que não adianta. Argumentas que tens apenas uma vida e esperas dela tirar tudo o que puderes, e depressa. E nada serei capaz de dizer que tenha qualquer sentido contra isso. Porque para me defender teria que ir buscar razões completamente fora de moda; razões que já demonstraram estar erradas como errado está tudo o que não se pode medir pela acumulação de mais e mais valor e poder. Como vês não gosto de excessos e por isso sou incapaz de dizer tudo o que pode ser dito, todo o excesso das palavras que possa falar abertamente do excesso que há neste excesso de ter.
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