quarta-feira, março 29, 2006

Fenomenologia

A morte é fácil mas morre-se a custo. O custo da morte é a soma dos custos fixos com os custos variáveis. Mas morre-se. Masmorra definitiva, a morte, ou liberdade final, não sei. Um dia teremos a morte a custo zero e não custará nada morrer, ainda que não seja uma experiência a repetir, no sentido individualista do termo. Ser social, o homem, como os outros animais e as plantas, morre sozinho.
Morrer a custo zero poderia ser um objectivo político. Tipo utilizador-pagador. A terra a quem a trabalha. A terra a quem a alimenta. Facilmente passamos de uma morte a custo zero para uma morte rentável, desde que encaremos a coisa numa perspectiva neoliberal e deixemos a porta aberta à livre iniciativa. Ninguém tem dúvidas que mesmo nas sociedades mais colectivistas a morte é actividade do sector privado.
Não é justo, no entanto, dizer que ninguém tem dúvidas. Já não estamos nesse tempo em que outros galos cantariam e o sol brilharia para todos nós. O assunto do momento é a morte e, potencialmente, a custo zero.
Estudos recentes concluíram que a vida tem um preço. Não está cotada na bolsa oficial nem no PSI 20 por razões de operacionalidade, mas tornou-se bastante claro que a vida, medida de todas as coisas, tem um preço. Está, por isso, no mercado e disponível para ofertas de aquisição, públicas e privadas. Por estarem no mercado, as vidas, a vida, a tal, tem um preço que é relativamente elevado para quem não tem pais ricos ou não teve sorte no euro-milhões...
O preço da vida humana, tal como os puros-sangues, é feito a partir do preço base com que sai de fábrica mais os custos de 'marketing' e promoção, que podem multiplicar largamente o preço base como acontece com qualquer produto agrícola ou industrial.
Se houver oportunidade para olhar para uma vida mais de perto, pode verificar-se que na formação do preço base as matérias primas não são muito relevantes, pelo menos para a maioria dos casos. Mais importante é o valor acrescentado, que hoje parece resumir-se à incorporação de tecnologia.
Falei de preços mas queria dizer custos, embora custe muito perceber como o preço é tão diferente do custo. É sempre necessário meter o mercado na história. O que é sempre muito mais fácil do que meter a História no mercado. É o mercado que decide o preço. É o mercado que decide tudo. E é tudo uma questão de percepção. O que interessa é o valor percebido pelo mercado. E o verdadeiro trabalho, o tal lugar da inovação e da criatividade, está em fazer perceber ao mercado a melhor relação custo-benefício. É por isso que a morte é cara apesar de o custo tender para zero.

Prólogo

terça-feira, março 28, 2006

Postseis

Poderia ter-te informado mais cedo da minha decisão. Poderia ter-te dito o mesmo dois anos antes. Talvez até três anos antes. Não é fácil determinar a data em que um elo se quebra. Gosto da imagem da grossa corda de sisal a que o tempo vai roendo um fio de cada vez e em que a decisão se espalha pela passagem ansiosa do tempo. Por isso não sei dizer-te quando se quebrou o primeiro dos fios. Nem sei se já se quebrou o último. Talvez haja uma espécie de erosão natural que leva a que em cada dia se quebre um elo.
Sabes como eu procuro obsessivamente o porquê das coisas. Faço-o apesar de saber que é um exercício inútil. Porque também já sei que não adianta saber: de uma ou de outra forma cometemos sempre os mesmos ou outros erros. Não me lembro já que palavras tinhas para esta maneira de ser que de início te soube bem e depois a pouco e a cada vez menos.
Não sei o que se passa com o amor. Uma coisa que parecia antes uma forma de magnetismo natural que atraía os seres, passou agora a ser um exercício esforçado com técnicas laboriosas, mecanismos de precisão e manual de utilização. Aquilo que parecia uma força interior firmemente inexplicável foi agora substituído por uma ginástica cheia de exercícios de manutenção que obrigam o amante a uma dedicação de estudo e prática digno de um 'entertainer' profissional que prende pelo apelo genial de cada gesto e de cada surpresa. Ora, essa atitude do amante substitui a marca pelo seu genérico e fica, por isso, disponível para qualquer bolsa.
Isto não é um queixume. É uma constatação. Eu podia ter-te informado mais cedo sobre a minha decisão se eu soubesse ler melhor os sinais exteriores de tristeza. Porque a imagem da corda é uma boa imagem mas não é mais do que uma imagem. Porque há momentos, de maior ou menor lucidez - não sei - em que, agora, tantos anos depois, me parece que houve um instante que não sei precisar, depois do qual tudo se tornou irreversível e em que os actos, a voz, o respirar, o pó dos livros, o miar do gato e o arrastar dos pés dos vizinhos, colaboraram todos para eliminar a robustez dos fios de sisal.

Aibieme

segunda-feira, março 20, 2006

Trio

É sempre legítimo dizer coisas horríveis acerca da humidade.
Faz-se o mesmo com as coisas altas e com as coisas baixas.
E com isso, sendo isso as palavras e os sons que se não percebem, arrumam-se de uma vez só várias questões fracturantes.

Mas eu não desdenho a humidade.
Nenhuma humidade.

Lá em cima, no lugar onde penso sempre ser o topo, é também o lugar onde as nuvens se formam.
Às vezes, com tempo, com bom tempo, fico no meio delas, oscilando entre o horror de não ter horizonte e o prazer de ser vivo.
Nesses dias sinto-me a água que como eu, desce a montanha a correr, e formo-me em gotas que tombam brincando com a gravidade dos factos.
Ser água é não ser mágoa, é escorrer pelos caminhos feitos de tempo e escolher sem escolher o lugar preferido para evaporar de novo.

Às vezes sou vapor.
E como vapor subo, ascendo ao topo, ao lugar onde as pressões já não me comprimem.
É como vapor que me vêem os olhos dos que olham para os textos e não lêem.
E é isso que é bom no vapor: ser a metamorfose de uma coisa que é o nada e nada é.

Como vapor sou sonho; como líquido sou intenção; como sólido sou morte.
Voar, andar ou morrer.

Um dia serei gelo.
Pedra partida e seca, morta, despenhada no caminho, veneno reversível.
E isso, isso de ser gelo morte e tudo, deixarei para depois, para quando já me tiver esquecido.
Também podia ser assim: sonhar, lembrar, esquecer.

Entretanto, entre tanto sonho, entretenho os dias mudando de estado, viagem à volta dos lugares e de volta aos lugares em que cristalizo sombras.
Desço rápido a montanha que me abriga; recupero o tempo dando-lhe outra forma; ascendo às alturas por força de um vento poderoso; e não me canso, não me canso, não me canso...

Sísifo

sexta-feira, março 17, 2006

Sete anos de pastor Jacob

Uma tarde há dez anos, por recomendação de uma voz que vinha de um alto qualquer, fiquei a pensar, perdido e desgostoso, no que estivera a fazer dez anos antes. Palavra puxa palavra e pensamento esconde pensamento, já estava a imaginar-me dez anos ainda mais atrás, a ficar cansado deste exercício decimal e a culpar os dedos por serem tantos e organizarem o mundo tão eficazmente. De sete em sete anos não sobra no meu corpo um átomo anterior. Dizem. E eu acredito porque esqueço tudo, mesmo as coisas que terei feito distraidamente para me distrair.
E o que faço para me distrair é contar o tempo. Mais um segundo, mais um minuto, mais uma hora, mais um dia, mais uma semana, mais um mês, mais uma ano. O ano passado, por esta altura, a Terra - o planeta Terra - estaria, grosso modo, neste mesmo lugar relativamente ao sol, se é que se pode dizer assim. Mas eu sinceramente não me lembro. Talvez tenha acordado bem disposto nesse dia porque foi uma fase - nessa altura eu estava a atravessar uma fase - em que as coisas me correram bem, não querendo com isto dizer que houve uma maior velocidade na passagem dos segundos mas apenas que não aconteceu nada de extravagantemente mau, de que certamente me lembraria.
Não vem a propósito mas não gosto de 'snacks' nem de 'snakes'. No tempo em que andava diariamente por Lisboa era essa a fome que passava, mas era outro, esse tempo de vacas gordas. Ainda assim preferia a pastelaria ao 'snack'. Em todos os aspectos. Ou será um pastel de nata um 'snack'? Não deve ser porque comida que se veja, comida para pôr nome em alguma coisa, comida que se escreva, há-de ter um nome estrangeiro que se diz remodelando a posição dos lábios e franzindo a testa.
São muitas as músicas de que sei a letra de cor. Foi hábito de infância. Habituado a cantar sozinho cantava com as vozes da rádio. Sim da rádio. A minha infância ouviu rádio e estreou as cassetes. Fui aprendendo assim a letra de "Also sprach Zarathustra" do Strauss, a de "A truta" de Schubert, a do "Zero tolerance for silence" do Pat Metheny, a da "Copélia" do Delibes, a do "Clair de lune" de Debussy e as letras inesquecíveis das "Lieder ohne worte" de Mendelssohn.
Talvez por isso não me preocupasse em arranjar uma orquestra só para mim no caso improvável de me tornar milionário. Provavelmente nem teria tempo para isso. Suspeito das terríveis preocupações que me envolveriam se me tornasse milionário. Embora esteja disposto a fazer a experiência - sempre é melhor do que testar medicamentos novos - é provável que tivesse de passar grandes provações nesse imponderável estado. A primeira preocupação seria a de me manter milionário. Porque estas coisas Deus dá com uma mão e tira com a outra. E tenho para mim que o que Deus dá já é, por assim dizer, um envolvimento numa certa forma de corrupção. Um curto circuito, pelo menos. Uma movimentação de influência. Mas estamos só no domínio do suponhamos porque me parece que as conversas com Deus, ainda que aparentadas a 'lobbying', não são objecto de escutas telefónicas. A segunda preocupação seria uma espécie de corolário da primeira: como ficar ainda mais milionário. Como em tudo, a ideia de que roubar é proveitoso, uma vez comprovada, só terá tendência a repetir-se. A terceira preocupação seria o perfil a adoptar: manter o 'low profile' de pobre com experiência ou a extravagância de novo rico. Ambas têm vantagens e dificuldades mas não quero começar já a preocupar-me com isso. No entanto a minha quarta preocupação seria consequência da terceira e certamente se optasse por continuar a parecer pobre haveria de tentar candidatar-me ao rendimento mínimo garantido. Deveria haver outras coisas que eu faria se fosse milionário mas a partir daqui a minha imaginação já não consegue acompanhar.
No essencial não gosto de fazer nada. Ou dito com mais propriedade: gosto de fazer nada. Mas trata-se de um projecto utópico. Há uma espécie de compulsão para fazer sempre qualquer coisa mesmo que seja um disparate. E aqui não me estou a referir a actividades primárias. Tenho que respirar, evidentemente, e faço isso bastante bem. Posso mesmo dizer que é uma das coisas que me agrada significativamente. Mas talvez devesse pensar em coisas mais elevadas. Gosto de andar na beira dos passeios ou a equilibrar-me em cima de carris de comboio. Gosto de implodir centros comerciais. Nunca o fiz, mas também nunca fui milionário, portanto... Gosto de deixar cair televisores de uma varanda de um quinto andar. Gosto de ver equipas pobres a ganhar a equipas ricas - um trauma de origem neo-realista. Gosto de parar nas passadeiras para deixar passar velhinhos de bengala muito lentos. E não pensem que é por bondade. É mesmo por maldade, para sentir a fúria dos outros automobilistas atrás de mim.
Eu não tenho nenhuma máxima utilizável assim em circunstâncias difíceis. Mas há sempre um momento em que, por evidente superstição, penso "nunca digas desta água não beberei". E por isso não serei muito taxativo a dizer que não voltarei a usar uma babete. Farei o que me for possível para não voltar a vestir um fato de treino, a colocar uma gravata, a usar um fato de casamento e ainda menos um fato de madeira. Mas não passa de uma intenção. Sei lá o que a sorte me reserva. E Deus. Imaginem que, só para me chatear, Ele me faz milionário. Fico-me pelas intenções.
É claro que agora deveria enumerar uma série de brinquedos que mostrassem a minha jovialidade, que demonstrassem o espírito jovem que está dentro da carcaça velha. Ficava-me bem, eu sei. Mas defendo que uma criança nunca brinca com brinquedos. Brinquedos são depois, são a memória, são os objectos que usávamos antes com toda a seriedade. Quando deixamos de levar a sério esses objectos passamos a chamar-lhes brinquedos. Daqui a dez anos talvez esteja capaz de falar do que hoje foram brinquedos. Hoje não. Hoje poderia falar dos brinquedos de há dez anos... se me lembrasse.
Seria engraçado que agora nomeasse outras vítimas para este processo de tortura. A minha luta pela defesa dos direitos humanos não o permite. Fica por aqui, à minha responsabilidade, certo de que vou com isto sofrer as naturais consequências de quebrar uma corrente. A vida é isto mesmo: interromper as coisas enquanto estão a correr bem, sete anos antes ou sete anos depois.

(Agradeço à Sem Cantigas a oportunidade que me deu de desmerecer um cobiçado Óscar)


terça-feira, março 14, 2006

A Lilith

Várias pessoas me têm perguntado pela Chris. Perguntam assim como se costuma perguntar pela úlcera ou pelos ataques de asma. E perguntam por perguntar. Porque todos parecem saber da Chris e da maneira como ela condiciona a minha vida e, também, estão todos pouco interessados com o que se passa com a Chris, comigo e comigo com a Chris. E, já agora, também devo realçar que estes todos que eu digo que perguntam são, na realidade, muito poucos.
De facto, não sendo capaz de viver com a Chris em minha casa e percebendo que ela não iria embora tão depressa, saí eu. Eu sei que foi uma atitude irreflectida. A casa é minha e portanto ela é que teria que sair. Eu sei isso tudo. Há dez milhões de pessoas a dizerem-me a mesma coisa todos os dias. Mas foi assim que eu fiz. Tive uma reacção ilógica, instintiva, irracional, etc. etc. Mas fui eu que a tive e por isso não me estou a queixar.
Se eu já era um sem-abrigo mental, tornei-me um sem-abrigo total. Foi uma experiência nova e, como se costuma dizer, enriquecedora. Estrago tudo dizendo que estou a ser irónico mas se quiser ser honesto direi que a minha experiência de alguns meses de sem-abrigo me enriqueceu no aspecto de me tornar facilmente irónico. No momento em que digo que estou a ser irónico deixo de ser irónico.

Ao contrário de outras mulheres que amei, que já conhecia da infância, a Lilith começou a aparecer-me nos sonhos já da idade adulta. E digo sonhos porque não me parecia possível a existência de seres assim próximos de uma espécie de verdade universal. Existências que parecem sobrenaturais mas de quem, ao aproximarmo-nos, ficamos a ver leves flutuações de orgulho, brisas de dominada harmonia, flocos muito brilhantes de intenção e um cálido e envolvente saber. Levei meses a acreditar, como um ateu que forçado por um milagre incontestável tivesse que, roendo os seus instintos racionais, aceitar uma realidade que o transcendia.
Revelação ou não, ser real ou imaginário, Lilith, introduziu-se no meu destino como margem definitiva para os mitos e tradições, para os paradigmas e para as ilusões. Soube, nesse tempo e para sempre, que Lilith teria sido o traçado exclusivo para a evidência. Soube mas não quis. Temi, pelo exagero da oferta, estar a cair num logro. E, apesar de cravada no eterno, fiz como se esquecesse, fiz como se não tivesse sido.
É fácil nos dias de hoje, em que já poucas coisas se podem gabar de se nos impor pela materialidade, encarar o virtual como virtuoso, a rede como teia, o 'link' como ligação, o endereço de 'mail' como carne, o écran como universo. Lilith apareceu-me antes deste apelo programado à ilusão e trouxe-me, de uma forma quase incorrecta, um método impossível de olhar para o que se passava à minha volta. Lilith deu-me o passo único do que podia ser, em vez de me tentar, como é bem, iludir-me com a diversidade da inconstância.
Ainda hoje quando a vejo - como aconteceu há dias quando procurava um vão de porta onde encostar os ossos para mais uma noite - me ocorre a presença de uma dimensão diferente a que não posso ter acesso sem perder o respeito pelos meus respeitáveis preconceitos. Porque é que as formas hão-de ser melhores umas que as outras? Porque é que uma circunferência, a que foi dado um nome pela sua peculiaridade, é mais figura que um traço irregular que o dedo traça na poeira de um vidro? Porque é que seleccionamos da imensidade estes lugares comuns como eleitos e eternos?
A Lilith não me viu naquela noite. A minha prudência levou-me a caminhar indefinidamente para outro bairro. Não era suposto encontrar próximo do fim da linha uma palavra mágica capaz de remeter para o início. Não era suposto que no fundo das coisas houvesse ainda uma imagem, um reflexo capaz de iluminar um gesto já perdido e terminal. Não era suposto.

Ivo Cação

(post anterior de Ivo Cação)

domingo, março 12, 2006

Queda

(relativamente a uma bela fotografia do Revelações Avulsas)

Houve um tempo em que eu quis voar.
Estava aberta a porta e eu saí, como se fosse ali fora apenas para respirar outro ar e saber novidades.
Não sei bem se é assim que se começa a querer voar mas foi assim que aconteceu comigo.

Do lado de lá da porta - e a mim interessa-me aquilo que está do lado de lá da porta - sentia que o espaço era mais largo, fosse isso o que fosse.
Porque eu não sabia.
O que eu sabia era apenas o resultado de uma operação de elementar inteligência: não há abismos; nada acaba abruptamente; a seguir há sempre mais e mais.
Dir-se-ia que o meu horror ao vácuo era pura descrença.

A primeira palavra que terei dito, fora do expectável da criança que aprende a falar, foi 'aquilo'.
Mas isso foi muito antes de ter essa impressão de que poderia voar.
Muito antes de pensar que havia um lado de lá desejável e promissor.
Mas gosto de pensar - pura vaidade - que aquilo a que o meu 'aquilo' se referia, era já a incógnita de um lugar que ainda não sabia.
Era já o espaço onde tudo existe em potência.

Os gatos raramente se preocupam com o que vêem.
As ansiedades que os tomam são sempre estranhezas e ausências - o que se não vê mas está presente na forma oculta ou disfarçada.
O meu voo, naquela ocasião de porta aberta, naquele desejo de um lugar de estranheza e sobreposição, nascia inocente, do querer olhar para trás e conseguir ver a totalidade.
Voar seria então, estar à altura do impensável, coabitar com o infinito, ver o invisível.

À tarde o avô levava-me ao jardim e os pombos vinham comer as migalhas das bolachas aos meus pés, antes de ousarem bicar com perícia a palma da minha mão.
Estranhava que podendo eles voar, podendo eles seguir um rumo de excesso para a distância em que se vê um largo horizonte, preferissem ficar ali comigo, na magreza de uma migalha.
Embora não compreendesse agradava-me aquela dedicação.
Num momento, infância, é-se o centro, a importância, o filho, o neto, a causa.

Só mais tarde dei conta de as novidades durarem apenas um instante.
Só muito mais tarde percebi que o mundo é uma metáfora de si próprio.
Só ainda mais tarde acreditei que acabamos sempre trocando voos por migalhas.

Sísifo

quinta-feira, março 09, 2006

Fim de um circo...


Num certo sentido só hoje se completa o processo democrático iniciado no 25 de Abril. A promessa era a de que o povo decidisse sobre todas as questões do país, mas por uma razão ou outra, houve sectores que, no meio político, resistiram à ideia de que até nos seus redutos, o povo poderia meter o pé. Acreditava-se que o povo saberia escolher entre os seus, os melhores para cada uma das diversas posições que era necessário ocupar no sistema.
E assim foi. Sempre que pôde o povo soube procurar entre os seus, aqueles que melhor considerava para estarem nos melhores lugares de relevo e de decisão. A longo de trinta anos o povo foi, por aquisição de conhecimento, por amadurecimento, por dedicada postura de aprendizagem e esforço, recompensando os melhores, primeiro nas suas esferas de proximidade, depois em círculos mais alargados, até que hoje consegue colocar um dos seus na mais elevada cadeira de representabilidade.
Suponho que só nos resta comemorar o facto. Admitindo que existem mesmo ciclos, temos que admitir também que depois de se atingir um ponto máximo, mais tarde ou mais cedo se começará a descer. Claro que poderá ser desagradável pensar que tempos melhores só virão depois de nós cá não estarmos, e que por isso, para o bem e para o mal, este é o tempo que vai ser para sempre o nosso.
Reconheço: vivo na clandestinidade. Não compreendo como é possível reconhecermo-nos com tanto empenho, nesta mediocridade. Como é possível termos deixado de nos questionar sobre o valor das coisas e como aceitamos com tanta facilidade o banal. Como substituímos com prazer, o valor do esforço pelo da futilidade. Agora, durante anos, muitos anos, vamos mergulhar ainda mais numa idade de trevas, de pensamento manietado ou ausente, uma Idade Média de ideias laminares, de espessura nula, de frivolidade e vaidade, de zero, de vazio de conteúdo. Terão de passar várias gerações para que este efeito de ausência mental se perca e possa ser substituído por alguma coisa parecida com identidade e indivíduo, por uma sociedade de seres pensantes, apaixonados, razoáveis e sem uniforme. Eu sei que isso é um sonho. Foi sempre um sonho.

Artur Torrado

Rugosidade

Eu sei que não sei contar histórias. Sei que só falo de acontecimentos em que nada aconteceu. O meu propósito é, quase sempre, que não haja propósito nenhum e espero da maioria das coisas que de facto não existam.
Quando pego num assunto, digamos assim, é sempre na perspectiva que o assunto não tenha tema e não se ligue a nada que possa parecer verdade. É uma perspectiva e é uma expectativa. Apesar de, acima de tudo, eu não esperar nada e não ter, por isso, de sentir que perco o meu tempo com estas coisas.
Pressinto que o meu pensamento é rugoso. Assim como uma papel amassado. Não digo um papel amassado furiosamente, e por isso de maneira superficial, mas um papel amassado com intenção, com método, com vontade. E um pensamento rugoso, de volume variável e superfície baça, não reflecte, não transmite, não passa, nem no tempo nem no espaço, para além dos limites vagamente definidos do presente.
Não se trata de um jogo de palavras. Ou trata-se, na medida em que a tudo se pode dar o título de jogo. Mas só nesse caso, só nessa rugosa acepção. Porque de outra maneira não gosto de jogo. Não por a alguns parecer que durante um jogo acontece alguma coisa. Que não acontece. Nada acontece num jogo.
Um dia, com mais tempo, também farei a minha teoria dos jogos. Por agora direi apenas da perplexidade perante o relato de um jogo. Pela fantasmagórica atitude de ouvir com atenção alguém que descreve - eles dizem narra - um jogo. De que é que falam esses narradores?
Mas falar disso já seria narrar a narrativa de um jogo, ou descrevê-la, dar-lhe um volume, uma cor, uma intensidade, uma emoção. E no jogo que chega a nós por interposta pessoa, isto é, num jogo em que não jogamos, em que não somos intervenientes, em que somos, como se diz, espectadores ou receptores secundários de narrativas, materializam-se emblemáticas formas de ficção que, como sempre, dão a quem especta a imortal sensação de sentir e viver.
E eu não sei contar histórias. Ocasionalmente apercebo-me que acontecem coisas. Mas não as percebo. Não as consigo inscrever numa convergência de rectas e, pelo tempo que as une, parece sempre que há um lugar a mais, uma direcção que falhou, um gesto de indecisão que foi levado a sério.
Um dia, talvez depois de fazer a minha teoria dos jogos, hei-de tentar, para me entreter, perceber porque é que o tempo passa como se fosse uma ave migratória, voando sobre nós como se não fizéssemos parte da história. Sei que não é tema que dê para contar uma história. Mas talvez esteja aí o sublime da situação: uma história que não faz parte da história e que por isso não se conta a não ser que possa ser relatada como um jogo em que ninguém joga e todos são espectadores.

Prólogo

terça-feira, março 07, 2006

Postcinco

Sabes que eu tenho que estar a uma certa distância das coisas para as saber olhar. Faço isso como ninguém, e não estou à espera de conseguir libertar-me deste peso e reconsiderar a direcção que os meus passos levam.
Também sabes que à distância a que percebo as coisas há apenas ecos e não ouço nada do que é som próprio do momento. Os gritos chegam já tarde à minha imaginação e eu não espero que eles tenham sentido. Não espero nada. Mesmo que não seja bem assim como me ocorre agora dizê-lo, porque há sempre estas palavras que não chegam, que não são suficientes para que me percebas.
Não, não tenho gestos bruscos. Não procuro na impaciência a razão que sei ter ficado escondida num quarto escuro da infância. O que sobra de cada momento não chega para ocultar esse vício que tenho de chamar verdade ao que vejo. E não oscilo. Não mudo o meu papaguear apenas para que possas por momentos ouvir o meu silêncio.
É certo que houve um tempo em que gostavas das minhas palavras. Eu tinha aberto o sótão das tristezas e a brisa nova parecia levantar a cabeça para o alto das transgressões e dos movimentos aleatórios. Vinha-me o riso, assim de repente, conflito de interesses entre o meu rosto fechado e a vontade de saltar com gritos de adolescente.
Preparei-me para quase tudo. Era esse o meu entretenimento favorito: ficar à espera de surpreender o acaso com uma mostra de conhecimento antecipado de tudo o que ele me pudesse trazer. Obsessão minha. Erro. Há demasiada diversidade na imaginação do tempo. Por mais seguro que estivesse vinha sempre uma vaga inesperada. E as ocasiões de voar eram poucas. O sentido da voz vinha sempre deturpado e o gesto oculto era revelado como parte integrante do dia e da moda.
Que é que me fez parar? Pergunto às vezes o que é que me fez parar. Porque eu sabia tudo. Sabia o resto de todas as histórias e as surpresas tinham ficado todas no passado, na angústia do passado.
Falta-me distância para perceber. Falta-me estar já noutro lado para compreender o erro de não estar aqui. Deve ser este o melhor método para perder sempre.

Aibieme