quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Tudo é água


Está de chuva. As estradas enchem-se de água. É um subúrbio mas a maior parte das pessoas movem-se de carro. Depois de anos na lama o conforto chama-se automóvel. Há quem fale, vagamente, em reduzir as emissões de cê-ó-dois. Seja qual for a razão, ainda há pessoas a circular pelos passeios, a lutar com um guarda-chuva penoso. Eu vou no meu carro, claro. É uma espécie de direito adquirido depois de trinta e oito anos a partilhar transportes públicos. No passeio, à direita, vem uma mulher pendurada no guarda-chuva. À minha frente, outra mulher enfrenta sem abrandar uma generosa poça de água e dá um banho de lama à derradeira pedestre da zona. Ensopada, a transeunte limita-se a temer que eu e o meu bólide lhe façamos o mesmo.
Xis é a mulher do automóvel e Ípsilon a mulher peão (peã?). Vamos supor, por instantes, que Xis vota sim no referendo. A preocupação dela é com as mulheres que têm direito ao seu próprio corpo e que, por isso, podem fazer com ele o que quiserem. Respeito pela mulher, portanto. De facto, quando falamos de respeito pela mulher, estamos a falar de uma mulher abstracta. Em alguns casos talvez se pense em mulheres concretas, mas genericamente não será em mulheres que vão no passeio da rua tentando proteger-se da chuva intensa, ela própria uma abstracção num país que tem quase sempre sol.
Mas também podemos supor, por instantes, que Xis vota não no referendo. A preocupação dela será, então, com o aglomerado de células chamado embrião. Preocupa-se, portanto Xis, talvez enquanto conduz, com uma abstracção invisível mas cheia de direitos. Numa daquelas hipóteses muito 'estrambólicas' - típicas da argumentação em referendos deste tipo - posso imaginar que Ípsilon, a transeunte, está grávida, e graças ao inesperado banho, apanha uma pneumonia, não está em condições de ir votar no dia certo e para cúmulo perde a criança. Aqui estou eu a criar a abstracção com que gostamos de viver quando não temos de tomar decisões sobre o nosso próprio problema.
Um filósofo qualquer da antiguidade, caiu num buraco enquanto olhava preocupado para as estrelas (estão aqui a dizer-me que foi Tales de Mileto). Esta é a abstracção simples, em que a concentração em objectivos distantes provoca o alheamento em relação ao que está ao alcance da mão. Mas a história tem mostrado muitas situações em que a criação de abstracções tem como único objectivo focar o olhar num problema marginal para o afastar dos lugares concretos onde o poder é decidido. É o método do ilusionista.
O concreto, o próximo, o pouco mediático elemento que está ao nosso lado todos os dias, tem muito menor importância que um vago feto nas entranhas de uma mulher abstracta.
Mas quem entra nos caminhos da abstracção, quem se comove essencialmente com o que é mediático, global ou de grande escala - o maior português, as sete maravilhas, o melhor jogador, o prédio mais alto, a batalha mais mortífera, ... - não tem hipótese de regresso, ficará para sempre refém do gigantismo e do número e não conseguirá olhar para o buraco onde vive.
Com tanto gosto pela abstracção os portugueses deveriam ser mais hábeis a matemática, mas, provavelmente, gastam toda essa capacidade nas peculiares relações humanas.

Artur Torrado

2 comentários:

Elipse disse...

é a pensar nessa mulher abstracta e nesse feto abstracto (que tem vida, que não tem vida, que é gente, que não é gente...)que muitas mulheres votam não, em pleno uso da sua consciência de cidadãs ou ao abrigo de leis morais castradoras ou civis normativas. Contudo, tendo que enfrentar uma situação indesejável - engravidar é uma coisa a que todas as mulheres estão sujeitas excepto aquela grande maioria que fez voto de castidade - estando em causa o seu corpo,o seu feto, a sua vida, a sua relação clandestina, aquele relacionamento instável, o dinheiro que não chega para dar condições aos outros filhos, a idade avançada (às vezes a menopausa finge que vem e não vem), a inversão dos planos de vida conjunta, enfim...
... nessa altura... o que fazer?

Esta metáfora está esclarecedora. A vida não é, de facto, uma abstracção. Parabéns pelo texto.

Maria Arvore disse...

Clarinho como água da chuva antes de tombar no chão. :)