segunda-feira, março 05, 2007

Importância

Há, nos gestos do dia a dia, um apelo muito forte ao esquecimento.
Enquanto se sobe a intransigente montanha, os pensamentos revesam-se até já não terem sentido.
O esforço de levar outra vez o pé para a frente do outro, esgota a sensibilidade e o entendimento.
É difícil que no topo ainda haja energia para fruir a paisagem.
Nada é comum quando os músculos se retesam para um último balanço.

Se eu tivesse um deus a que não chamasse acaso, di-lo-ia uma combinatória.
O meu olimpo tem uma fauna própria que não me aquieta.
Diverte-se a mitificar o número e a diversificar os caminhos.
Mesmo assim, o tédio é o patrono mais poderoso.
Acima do correr das nuvens já não mora a ameaça ou a salvação mas o vazio.

Nenhum acto é tão autêntico como o trabalho.
Quando queremos ser sérios e profundos dizemos que trabalhamos.
E é nesse gesto mágico e económico que se suportam os nossos sonhos.
A labuta como método de render homenagem à existência.
Culto do que não é oculto nem ficcional.

Nenhum passo é tão autêntico como o que não se deu ainda.
A energia potencial cresce enquanto as expectativas sobem aos lugares mais altos.
Há muito de irremediável na convivência com a solidão.
Diz-se a palavra e ela não chega a lugar audível.
Nem regressa.
Os sons atravessam o tempo como neutrinos.

Cada pensamento que se forma na escalada perde-se a seguir agarrado à gota de suor.
As melhores das intenções formam-se em nuvens de chuva ácida.
Neste olimpo não há nenhum deus a quem pedir clemência.
Não há também vontade de pedir, porque os que podem dar é porque roubaram.
O desequilíbrio equilibra os sentimentos.

Não fora a certeza de o poder poder não ser outra coisa que o acaso, e o ódio seria o atalho certo para a existência.
Não é aqui nesta montanha, mas é noutras em que se faz da vontade escravatura.
Lá em cima a vista é bonita.
Há muita beleza para escutar e sentir.
Mas antes disso há sempre um medo de perder qualquer coisa importante que não se sabe o que é...

Sísifo

1 comentário:

Elipse disse...

eu vejo ali a importância de uma primavera verde à espreita para viver.