sexta-feira, abril 27, 2007

Marcas de água

Vês? Agora o país está vazio. Bastou um momento e tudo debandou. Movem-se em bandos à procura de outros lugares. É sempre outro o lugar onde se esconde a salvação, e há que ir à procura dele, indefinidamente, sempre.

Um dia que seja de folga e aí vai a trupe, a toda a força, queimando alegremente a essência, indiferentes a um futuro que não seja o minuto já a seguir. Sábios de leis e de segredos da monarquia, da vida luminosa dos eleitos e preenchidos com os ícones que oferecem a volúpia na compra de modelos exclusivos.

Na corrida à procura do destino, na rápida sucessão dos passos decididos, estão entre as bagagens feitas à pressa e a velocidade do olhar, os sons ténues de uma fuga, ensaiada todos os dias na repetição cruzada de ideias simples conseguidas por empréstimo a juro reduzido.

Ver a correr tudo, para sentir que se toma posse de paisagens que outros contam como mágicas e indispensáveis. Passar pelos lugares e averbar os nomes na caderneta; fazer mais um risco na coronha do revólver das recordações. E ter sempre outra meta logo a seguir para não deixar aquecer o lugar nem arrefecer a emoção.

É fácil respeitar este cinema. Concordar com todas as razões brilhantes, mesmo que a revolta esteja ali mesmo, à tona da garganta. Há o cansaço e há a dúvida. A poderosa ofensiva da solidão, medida em milhares de pessoas juntas à volta do seu próprio ardor. Comunidade de ausências, concílio de desconsolos.

E custa parecer sempre o velho do Restelo, que tem razão de vez em quando, logo que cada vitória se torna um marco outra vez perdido, e as lantejoulas se gastam da sua alegria. Dizer outra vez o que já foi dito, apenas por descargo de consciência, ou por descargo de bílis, ou por outra pouco razoável razão.

Em todo o lado se carimba com êxtase a marca do desespero. De fora, da esquina a seguir àquela que se sonhava ontem, diz-se que algumas pessoas souberam derrotar o medo. E esse desejo, esse absurdo desafio de, de repente, por magia, passar a ignorar a traficância das emoções telúricas, empurra a alma para a nova terapêutica de esconjuro.

Mas eu sei que não há alternativa. No interior falta a pressão da vontade, e tecer caminhos próprios custa mais do que caminhar pelos carreiros eloquentes dos que sabem guiar. Mesmo que não seja assim, é o que me ocorre quando percebo que para não ter à noite a voz a ecoar nas paredes obtusas do vazio, tenho que ignorar a cantilena da razão e deixar como verdadeira a mímica festiva da liberdade.

Artur Torrado

3 comentários:

P disse...

"É sempre outro o lugar onde se esconde a salvação, e há que ir à procura dele, indefinidamente, sempre."
Excelente!

Artur Torrado disse...

Obrigado, Baudolino. Fiz uma visita rápida ao teu lugar. Vou voltar com tempo para saber se é lá que ela se esconde...

Maria Carvalhosa disse...

Texto excelente. Escrita limpa, sem mácula. Tema fascinante.

Um abraço.