sábado, abril 07, 2007

Postquinze

Às vezes gostava de ser tão grande que fosse capaz de te dar guarida nas minhas mãos e acalmar assim esses teus medos de coisas imaginárias que tu sabes que são reais mas que também sabes que, tratadas como imaginárias, têm menos peso e causam menos perturbação. Seriam, então, as minhas mãos, lugares de paz em vez de prisões que contrariam a todo o instante os desejos e as ilusões e propõem com inabilidade o vazio como local habitável. Nas minhas mãos terias os momentos de serenidade e o local seguro onde habitar na incerteza.

Às vezes gostava de ser tão belo que sobre mim pudesses lavar os olhos da angústia e ter no horizonte a forma rebuscada de um deus que definisse emoções com clareza e luminosidade. Seria, então, o meu corpo, o lugar onde descansam os sentidos e se aquietam as insatisfações, mural tinto de padrões eternos e pólo de infinita sobriedade. No meu corpo se guardariam as artes abstractas de desejo e sob as rigorosas lajes se acharia a rigidez determinada do absoluto.

Às vezes gostava de ser tão alegre que ao gesto simples de um olhar a tua face explodisse de riso e o entusiasmo rosado tivesse a temperatura excessiva da felicidade. Seria, então, o meu rosto, o lugar de múltiplos significados, expressão potente de hipóteses, de céus, de infernos e de ambições. No meu rosto estaria a salvo o teu, do tédio, da suspeita e da ingratidão.

Às vezes gostava de ser tão rico que o preço das coisas perdesse significado e o desejo da posse já fosse menor que a posse do desejo. Seria, então, na limpidez clara de um espaço induplicável, que sentirias a liberdade de não ter que ter e o verde dos campos a bastar-se no seu significado de beleza efémera. Na minha voz estaria multiplicado um canto sem reflexos, isento de vez da necessidade e da ilusão.

Às vezes gostava de ser tão inteligente que as palavras ditas em surdina fossem em si claras e de uniforme entendimento e os teus olhos brilhassem entre a surpresa e o deslumbramento ao encontro do texto soletrado e da ideia que ilumina. Seria, então, um oráculo da verdade, intérprete furtivo de emoções complexas e construtor sublime do sagrado. No plácido argumento das minhas mãos, expostas à fantasia e ao devaneio, encontrarias o conforto elementar da tua memória e o descanso flutuante dos sentidos.

Às vezes gostava de ser tão ágil, tão vertiginosamente ágil, que o meu corpo voasse sobre o teu em acrobacias rasantes, e a música da tua voz fosse o motor feliz dos meus movimentos harmónicos. Seria, então, a encarnação desejada do ritmo e fluiria sobre o teu desejo com a voracidade do génio e a intensidade da primavera. Na eufonia dos meus sentidos, arrebatados pela pueril extravagância de existires, estaria volátil a elegância infinita dos teus mínimos gestos.

Às vezes gostava de gostar de ser como sou e mesmo assim saber de ti.

Aibieme

1 comentário:

addiragram disse...

Magnífico poema! Só o Amor escreve desta maneira!