terça-feira, fevereiro 07, 2006

Regresso

Talvez tenha acabado de vez o inverno. Talvez estes dias que agora parecem mais longos e mais quentes tenham vindo para ficar.
Quero que sim porque este lugar que tenta desesperadamente ser moderno e desempoeirado é deprimente e só me pode servir de teste ao estado de espírito.
Passar por aqui de manhã para tomar o café e sobreviver é sinal de que se instalou no peito uma força e uma resistência inultrapassáveis.
Tem muitas janelas este café.
Por uma vê-se o correr de lojas por onde não passa ninguém e cujos negócios, a existirem, serão virtuais, por telefone e, quem sabe, negócios escuros.
Pela janela a seguir vê-se o longo tapete de relva que esforçados ucranianos, recrutados pela câmara nos centros de desemprego, vão mantendo ilusoriamente verde.
Pela terceira janela vejo os carros a passarem; num outro plano aparece de vez em quando uma bola de basquetebol a tentar as tabelas e os cestos; noutro plano ainda, passa, às vezes, o comboio vermelho.
Outra janela mostra mais relva e o sinal luminoso que detém os carros quando alguém quer atravessar a rua.
Antes desta janela havia uma outra mais pequena, mas maior porque tem marca - sony - e mostra, hoje, o habitual desespero da tvi a tentar prender-me a atenção.
Depois há uma janela que é também a porta e por onde se vê o lado de lá e as escolas com os miúdos que, adivinho, gritam a energia dos intervalos.
Há ainda mais duas janelas que me são oblíquas e que não me apetece fazer o esforço de ver o que se vê por elas.
No ar há um som reverberante contínuo de chávenas e pires e pratos a baterem furiosamente uns nos outros. Às vezes as empregadas - de sotaque brasileiro - vêm arrumar as mesas e atiram energicamente com as cadeiras para o seu lugar. A televisão grita a sua razão definitiva e salta por cima das vozes, pobres vozes, tristes vozes que saem esganiçadas das poucas mesas ocupadas. Por vezes irrompe o moinho de café no seu rugido que nem chega a ser aromático, por defeito, certamente, dos sentidos.
A televisão mostra agora as bichas a entrar em Lisboa. Seja como for a televisão está sempre a mostrar bichas e as pessoas, estranhamente, dão audiência às bichas fazendo desconfiar que não são só dez por cento.
As mães contam a plenos pulmões, tentando sobrepor-se às chávenas, à televisão, às cadeiras, ao moinho de café e às outras vozes, os disparates dos filhos, dando um ar muito engraçado à sua perda de autoridade. Uma filha bate ritmadamente os calcanhares contra a madeira ressonante do banco onde está sentada.
Talvez tenha acabado de vez o inverno.
Consegui permanecer aqui o tempo de um 'post' sem ter saído a meio emitindo terríveis blasfémias contra o resto da humanidade.
Agora posso ir: hoje passei no teste.

Artur Torrado

Sem comentários: