Em tempos quis um mundo perfeitamente racional. Parecia que todas as oscilações do tempo haveriam de ser enquadradas pela consciência e cada passo a dar poderia ser, do ponto de vista interior, um passo certo, claro e determinado. Das equações da vida bastava conhecer as variáveis mais relevantes para que o destino se tornasse uma brincadeira de risos e cânticos. Era assim que parecia que iria ser o futuro. Como em todas as situações técnicas era uma questão de domínio do saber que determinaria o longe que se conseguiria ir.
Posso dizer que durante anos mergulhei na perplexidade de o sistema não funcionar. Revia os cálculos, reavaliava as equações, tomava de novo o peso às variáveis... Com falta de tempo, deixava para mais tarde a angústia de perceber o que é que falhava.
O choque veio aos poucos. Instalou-se primeiro como dúvida, depois como incerteza, mais tarde como desvio. O modelo inicial estava errado. Não havia lugar onde chegar percebendo o mundo como ocasião definitiva e clara. Afinal, aquilo que desde o início parecia limitar a comunicação e a linguagem, era uma espécie de névoa que tudo encobria e a tudo tirava a definição límpida que as equações prometiam.
Ainda assim, perante a evidência, levei tempo a aceitar que teria que ser eu a mudar. O mar de racionalidade que eu me tinha proposto, o esquema mental que dava a cada coisa o seu lugar e a sua significação, não correspondia a mais do que uma simplificação para consumo infantil. Era belo, sim, como as construções puras, formal, arrumado, liso. Inviável também. Provavelmente aborrecido.
Não sei dizer agora se foi uma perda de tempo porque entretanto tento aprender que todo o tempo se perde ou que nenhum tempo se perde, o que é o mesmo. Por enquanto, e tornei-me assim céptico ao definitivo, vou olhando à volta e evitando os raios demasiado intensos do sol. Digamos que espero pacientemente e não me deixo impressionar sabendo, no entanto, que é nesses lugares em que nos deixamos impressionar que decorre sem solenidades a vida.
Há, então, um fôlego desconhecido que sobrevoa as explicações e que não depende delas. Posso construir um elaborado conjunto de conceitos para determinar a minha vida, mas o seu valor será apenas o entretenimento que me deu fazê-los.
Como o 'software' de um computador, a 'alma' é um conjunto de camadas. Umas mais próximas do corpo - o 'hardware' - outras mais distantes e capazes de comunicar com o exterior - a 'interface' - a que chamamos consciência. A razão é uma aplicação que tenta pôr ordem nos processos de comunicação entre as camadas. Mas a sua acção apenas se faz sentir nas camadas mais exteriores, e o corpo, que tem programação autónoma e independente, segue o seu caminho indiferente ao polícia racional.
Quando há desacordo entre o 'hardware' e o 'software', há sofrimento. E não há nenhuma razão que o previna. Porventura há que deixar o corpo dizer o que quer.
2 comentários:
ou do desespero de um racionalista. ou, no último parágrafo, da eterna dialéctica corpo-alma tão querida ao Mishima.
foi um prazer conhecê-lo, caro Artur Torrado.
pensei que ías revelar a tua descoberta matemática! afinal saíste-me um ganda bite! ná... volta pra trás acaba lá esse raciocinio, arranja uma topologia, não sei, inventa tempo, uma quinta dimensão, um santo integral...uma surpresa!
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