Várias pessoas me têm perguntado pela Chris. Perguntam assim como se costuma perguntar pela úlcera ou pelos ataques de asma. E perguntam por perguntar. Porque todos parecem saber da Chris e da maneira como ela condiciona a minha vida e, também, estão todos pouco interessados com o que se passa com a Chris, comigo e comigo com a Chris. E, já agora, também devo realçar que estes todos que eu digo que perguntam são, na realidade, muito poucos.
De facto, não sendo capaz de viver com a Chris em minha casa e percebendo que ela não iria embora tão depressa, saí eu. Eu sei que foi uma atitude irreflectida. A casa é minha e portanto ela é que teria que sair. Eu sei isso tudo. Há dez milhões de pessoas a dizerem-me a mesma coisa todos os dias. Mas foi assim que eu fiz. Tive uma reacção ilógica, instintiva, irracional, etc. etc. Mas fui eu que a tive e por isso não me estou a queixar.
Se eu já era um sem-abrigo mental, tornei-me um sem-abrigo total. Foi uma experiência nova e, como se costuma dizer, enriquecedora. Estrago tudo dizendo que estou a ser irónico mas se quiser ser honesto direi que a minha experiência de alguns meses de sem-abrigo me enriqueceu no aspecto de me tornar facilmente irónico. No momento em que digo que estou a ser irónico deixo de ser irónico.
Ao contrário de outras mulheres que amei, que já conhecia da infância, a Lilith começou a aparecer-me nos sonhos já da idade adulta. E digo sonhos porque não me parecia possível a existência de seres assim próximos de uma espécie de verdade universal. Existências que parecem sobrenaturais mas de quem, ao aproximarmo-nos, ficamos a ver leves flutuações de orgulho, brisas de dominada harmonia, flocos muito brilhantes de intenção e um cálido e envolvente saber. Levei meses a acreditar, como um ateu que forçado por um milagre incontestável tivesse que, roendo os seus instintos racionais, aceitar uma realidade que o transcendia.
Revelação ou não, ser real ou imaginário, Lilith, introduziu-se no meu destino como margem definitiva para os mitos e tradições, para os paradigmas e para as ilusões. Soube, nesse tempo e para sempre, que Lilith teria sido o traçado exclusivo para a evidência. Soube mas não quis. Temi, pelo exagero da oferta, estar a cair num logro. E, apesar de cravada no eterno, fiz como se esquecesse, fiz como se não tivesse sido.
É fácil nos dias de hoje, em que já poucas coisas se podem gabar de se nos impor pela materialidade, encarar o virtual como virtuoso, a rede como teia, o 'link' como ligação, o endereço de 'mail' como carne, o écran como universo. Lilith apareceu-me antes deste apelo programado à ilusão e trouxe-me, de uma forma quase incorrecta, um método impossível de olhar para o que se passava à minha volta. Lilith deu-me o passo único do que podia ser, em vez de me tentar, como é bem, iludir-me com a diversidade da inconstância.
Ainda hoje quando a vejo - como aconteceu há dias quando procurava um vão de porta onde encostar os ossos para mais uma noite - me ocorre a presença de uma dimensão diferente a que não posso ter acesso sem perder o respeito pelos meus respeitáveis preconceitos. Porque é que as formas hão-de ser melhores umas que as outras? Porque é que uma circunferência, a que foi dado um nome pela sua peculiaridade, é mais figura que um traço irregular que o dedo traça na poeira de um vidro? Porque é que seleccionamos da imensidade estes lugares comuns como eleitos e eternos?
A Lilith não me viu naquela noite. A minha prudência levou-me a caminhar indefinidamente para outro bairro. Não era suposto encontrar próximo do fim da linha uma palavra mágica capaz de remeter para o início. Não era suposto que no fundo das coisas houvesse ainda uma imagem, um reflexo capaz de iluminar um gesto já perdido e terminal. Não era suposto.
Ivo Cação
2 comentários:
Ivocação, valia a pena reeditares as tuas outras "mulheres". Não as deixes escondidas. Os nossos olhos merecem.
A escrita continua absolutamente fantástica.
:)
Lembro-me de ter lido este texto.
Só não sabia (e ainda não sei) onde.
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