sexta-feira, março 17, 2006

Sete anos de pastor Jacob

Uma tarde há dez anos, por recomendação de uma voz que vinha de um alto qualquer, fiquei a pensar, perdido e desgostoso, no que estivera a fazer dez anos antes. Palavra puxa palavra e pensamento esconde pensamento, já estava a imaginar-me dez anos ainda mais atrás, a ficar cansado deste exercício decimal e a culpar os dedos por serem tantos e organizarem o mundo tão eficazmente. De sete em sete anos não sobra no meu corpo um átomo anterior. Dizem. E eu acredito porque esqueço tudo, mesmo as coisas que terei feito distraidamente para me distrair.
E o que faço para me distrair é contar o tempo. Mais um segundo, mais um minuto, mais uma hora, mais um dia, mais uma semana, mais um mês, mais uma ano. O ano passado, por esta altura, a Terra - o planeta Terra - estaria, grosso modo, neste mesmo lugar relativamente ao sol, se é que se pode dizer assim. Mas eu sinceramente não me lembro. Talvez tenha acordado bem disposto nesse dia porque foi uma fase - nessa altura eu estava a atravessar uma fase - em que as coisas me correram bem, não querendo com isto dizer que houve uma maior velocidade na passagem dos segundos mas apenas que não aconteceu nada de extravagantemente mau, de que certamente me lembraria.
Não vem a propósito mas não gosto de 'snacks' nem de 'snakes'. No tempo em que andava diariamente por Lisboa era essa a fome que passava, mas era outro, esse tempo de vacas gordas. Ainda assim preferia a pastelaria ao 'snack'. Em todos os aspectos. Ou será um pastel de nata um 'snack'? Não deve ser porque comida que se veja, comida para pôr nome em alguma coisa, comida que se escreva, há-de ter um nome estrangeiro que se diz remodelando a posição dos lábios e franzindo a testa.
São muitas as músicas de que sei a letra de cor. Foi hábito de infância. Habituado a cantar sozinho cantava com as vozes da rádio. Sim da rádio. A minha infância ouviu rádio e estreou as cassetes. Fui aprendendo assim a letra de "Also sprach Zarathustra" do Strauss, a de "A truta" de Schubert, a do "Zero tolerance for silence" do Pat Metheny, a da "Copélia" do Delibes, a do "Clair de lune" de Debussy e as letras inesquecíveis das "Lieder ohne worte" de Mendelssohn.
Talvez por isso não me preocupasse em arranjar uma orquestra só para mim no caso improvável de me tornar milionário. Provavelmente nem teria tempo para isso. Suspeito das terríveis preocupações que me envolveriam se me tornasse milionário. Embora esteja disposto a fazer a experiência - sempre é melhor do que testar medicamentos novos - é provável que tivesse de passar grandes provações nesse imponderável estado. A primeira preocupação seria a de me manter milionário. Porque estas coisas Deus dá com uma mão e tira com a outra. E tenho para mim que o que Deus dá já é, por assim dizer, um envolvimento numa certa forma de corrupção. Um curto circuito, pelo menos. Uma movimentação de influência. Mas estamos só no domínio do suponhamos porque me parece que as conversas com Deus, ainda que aparentadas a 'lobbying', não são objecto de escutas telefónicas. A segunda preocupação seria uma espécie de corolário da primeira: como ficar ainda mais milionário. Como em tudo, a ideia de que roubar é proveitoso, uma vez comprovada, só terá tendência a repetir-se. A terceira preocupação seria o perfil a adoptar: manter o 'low profile' de pobre com experiência ou a extravagância de novo rico. Ambas têm vantagens e dificuldades mas não quero começar já a preocupar-me com isso. No entanto a minha quarta preocupação seria consequência da terceira e certamente se optasse por continuar a parecer pobre haveria de tentar candidatar-me ao rendimento mínimo garantido. Deveria haver outras coisas que eu faria se fosse milionário mas a partir daqui a minha imaginação já não consegue acompanhar.
No essencial não gosto de fazer nada. Ou dito com mais propriedade: gosto de fazer nada. Mas trata-se de um projecto utópico. Há uma espécie de compulsão para fazer sempre qualquer coisa mesmo que seja um disparate. E aqui não me estou a referir a actividades primárias. Tenho que respirar, evidentemente, e faço isso bastante bem. Posso mesmo dizer que é uma das coisas que me agrada significativamente. Mas talvez devesse pensar em coisas mais elevadas. Gosto de andar na beira dos passeios ou a equilibrar-me em cima de carris de comboio. Gosto de implodir centros comerciais. Nunca o fiz, mas também nunca fui milionário, portanto... Gosto de deixar cair televisores de uma varanda de um quinto andar. Gosto de ver equipas pobres a ganhar a equipas ricas - um trauma de origem neo-realista. Gosto de parar nas passadeiras para deixar passar velhinhos de bengala muito lentos. E não pensem que é por bondade. É mesmo por maldade, para sentir a fúria dos outros automobilistas atrás de mim.
Eu não tenho nenhuma máxima utilizável assim em circunstâncias difíceis. Mas há sempre um momento em que, por evidente superstição, penso "nunca digas desta água não beberei". E por isso não serei muito taxativo a dizer que não voltarei a usar uma babete. Farei o que me for possível para não voltar a vestir um fato de treino, a colocar uma gravata, a usar um fato de casamento e ainda menos um fato de madeira. Mas não passa de uma intenção. Sei lá o que a sorte me reserva. E Deus. Imaginem que, só para me chatear, Ele me faz milionário. Fico-me pelas intenções.
É claro que agora deveria enumerar uma série de brinquedos que mostrassem a minha jovialidade, que demonstrassem o espírito jovem que está dentro da carcaça velha. Ficava-me bem, eu sei. Mas defendo que uma criança nunca brinca com brinquedos. Brinquedos são depois, são a memória, são os objectos que usávamos antes com toda a seriedade. Quando deixamos de levar a sério esses objectos passamos a chamar-lhes brinquedos. Daqui a dez anos talvez esteja capaz de falar do que hoje foram brinquedos. Hoje não. Hoje poderia falar dos brinquedos de há dez anos... se me lembrasse.
Seria engraçado que agora nomeasse outras vítimas para este processo de tortura. A minha luta pela defesa dos direitos humanos não o permite. Fica por aqui, à minha responsabilidade, certo de que vou com isto sofrer as naturais consequências de quebrar uma corrente. A vida é isto mesmo: interromper as coisas enquanto estão a correr bem, sete anos antes ou sete anos depois.

(Agradeço à Sem Cantigas a oportunidade que me deu de desmerecer um cobiçado Óscar)


3 comentários:

Mónica disse...

(sete anos de pastor jacob cheira-me a gozar da minha gralha, tás perdoado :-))

Mónica disse...

au claire de lune
mon ami pierrot
prete moi ta plume
pour ecrire a mot

ma chandelle est mort
elle n'as pas de fleu
ouvre moi la porte
pour amour de dieu

......
não sei o resto

foi o q me lembrei e vai mesmo com erros

mjm disse...

Odeio ler esta cena q vou escrever, mas ainda assim a escrevo, q depois explico:
Gostei muito de ler! :-)
..
Esta era a parte em q ao explicar daria a entender ter percebido as intenções do enunciante. Porém, a mim serviu-me dois propósitos:
. divagar sobre as minhas re(in)flexões e memórias
. aplaudir o achado dessa designação de 'brinquedo'
--
nota à margem: pertenço à fina lista dos q não relegam para a desimportância as vivências infanto-adolescentes - tudo o q se vive, é intensamente forte.